O combate à corrupção e à criminalidade organizada é uma farsa no Brasil. Segundo o juiz Luís Carlos Valois, isso acontece porque os meios usados pelo Estado apenas perpetuam um ciclo vicioso de impunidade, que reforça a descrença nas leis e nas autoridades ao mesmo tempo em que mostra aos corruptos e criminosos os limites para agir sem inibir suas práticas.
“A grande questão da ‘lava jato’ não é a corrupção, mas sim mostrar que ela já estava descarada. O que vai acontecer é que as empresas vão continuar com a mesma corrupção, mas não de maneira escancarada, e sim voltarão a fazê-la escondida, no escuro do escritório e sem deixar vestígios”, explica o magistrado, que é titular da Vara de Execução Penal de Manaus.
Para Valois, o Direito Penal está sendo usado demais, o que desfigura seu propósito. Ele também lembra que esse uso excessivo é um meio de colocar o punitivismo como uma distração para os reais problemas.
“Aumentamos a pena como se um criminoso, ao cometer o crime, usasse uma calculadora e dissesse: ‘Olha, vou cometer um estupro só porque a pena ainda não aumentou, só aumentará na semana que vem. Ou vou praticar um latrocínio porque a pena ainda está baixa.’ Não é assim que funciona, a pessoa não comete crime só se tiver a certeza de que será punida.”
Responsável pela situação de todos os presos do Amazonas, ele também não acredita na prisão como punição. “A pena não precisa necessariamente ser relacionada à prisão. Se todos que cometessem um crime recebessem uma advertência, por exemplo, e tivesse que ir à delegacia, assinar um termo e ouvir um sermão de um delegado, a criminalidade diminuiria com certeza”, diz.
Ainda sobre a as penas, mas analisando a situação de quem as aplica, Valois diz que os juízes garantistas são perseguidos, e que o sistema não gosta nem um pouco desse "comportamento". "Com o Judiciário se colocando como órgão de segurança, respeitar a lei é perigoso. O juiz que respeita a lei e faz valer a Constituição é considerado um juiz progressista atualmente. Antigamente, para ser progressista, era preciso fazer algo além da lei. Agora, parece que está violando a segurança e as diretrizes, e acaba sendo perseguido."
Leia a entrevista:
ConJur — O Direito Penal está sendo usado no Brasil para solucionar conflitos que fogem da sua competência?
Luís Carlos Valois – O Direito Penal está sendo usado para tudo. A pessoa não consegue resolver um problema e cria um crime, não consegue resolver outro problema e cria outro crime. E quando o crime já existe, mas não consegue resolver o problema, a pena é aumentada. O Direito Penal não é remédio para tudo. As pessoas vão construindo jurisprudências e teorias para que o Direito Penal resolva tudo, mas ele não resolve.
ConJur — Esse excesso de Direito Penal é um paliativo para a falta de fiscalização no Brasil?
Valois – Cesare Beccaria já dizia que o que leva ao cometimento de crime é a impunidade. Basta a pessoa pegar uma pena de dois dias para ela não cometer o crime. Não precisa aumentar para 30 ou 40 anos. Zaffaroni diz que ainda estamos na época das cavernas, quando o ser humano fazia pinturas rupestres pensando que isso o ajudaria na próxima caça, como se desenho tivesse força. E fazemos leis desse mesmo modo, como se fizéssemos essas pinturas rupestres, pois pensamos que a lei diminuirá a criminalidade. Aumentamos a pena como se um criminoso, ao cometer o crime, usasse uma calculadora e dissesse: “Olha, vou cometer um estupro só porque a pena ainda não aumentou, só aumentará na semana que vem".
ConJur — O Brasil tem fetiche por cadeia?
Valois — O Brasil pensa que vai acabar com a corrupção com polícia, e não só com cadeia. A polícia é um paliativo e deveria existir apenas para casos excepcionais. Mas querem jogar tudo para a polícia resolver, e por ela não dá mais conta de nada. Além de desmoralizar a própria polícia, isso passa para a sociedade uma sensação de que a lei não funciona. Tem lei para tudo, mas nunca é cumprida, então não funciona. Quando pensamos em fazer uma pena para diminuir a criminalidade, ao contrário, vai aumentar: quem comete crime tem uma sensação de impunidade que o leva a cometer mais delitos. Ele vê alguém sendo preso enquanto faz a mesma coisa e não é detido e pensa: “O outro que foi bobo, eu não, porque aumentou a pena, mas ainda estou aqui”. O meio criminal pensa diferente do resto da sociedade. Quem já está cometendo crime acha que é a maior vantagem, inclusive, quando a pena é maior. Estamos fazendo tudo errado. O que é desvantagem é ser preso, não ter uma pena maior.
ConJur — Então o criminoso só se preocupa em ser pego?
Valois — E em ser punido, porque a pena não precisa necessariamente ser relacionada à prisão. Se todos os que cometem crime recebessem uma advertência, por exemplo, e tivesse que ir à delegacia, assinar um termo e ouvir um sermão de um delegado, a criminalidade diminuiria com certeza. Não precisava prender ninguém.
ConJur — Corrupção se resolve com cadeia?
Valois — Claro que não. Corrupção se resolve com educação e mudança cultural. Algumas técnicas da burocracia ajudam a solucionar a corrupção. Por exemplo, quando fui a Washington, estacionei o carro que usei em um lugar onde era proibido em determinado horário e o guincharam. Isso aconteceu em uma sexta-feira e pensei que não veria o carro até a segunda-feira seguinte, por causa de pátio e outras burocracias, assim como funciona no Brasil. Mas não. Liguei em um número marcado na multa e o atendente me informou onde o carro foi estacionado pelo guincho. Isso mostra que a tecnologia, quando reduz o contato humano, diminui a corrupção. Nesse caso, não precisei falar com o cara do guincho ou com o responsável pelo pátio, simplesmente paguei a multa.
ConJur — Então por que o excesso de prisões?
Valois — Prender e punir só vai afastar aquele corrupto em especial, mas a corrupção vai ficar. Atualmente temos setores de criminal compliance nas empresas que as orientam a agir de forma correta, mas também podem orientar essas companhias a atuar incorretamente sem serem pegas pela polícia. A “lava jato” chegou em um momento em que a corrupção estava tão alastrada no Brasil que se passava dinheiro no restaurante, ao meio-dia, ou na praça em plena luz do Sol. Já não se tinha nenhuma vergonha na cara. A grande questão da “lava jato” não é a corrupção, mas sim mostrar que ela já estava descarada. O que vai acontecer é que as empresas vão continuar com a mesma corrupção, mas não de maneira escancarada. Voltarão a fazê-la escondida, no escuro do escritório e sem deixar vestígios. As companhias, o capital e as instituições financeiras têm uma estrutura muito maior do que as autoridades, sejam elas a Polícia ou a Justiça Federal, por exemplo.
ConJur — A polícia e o sistema penitenciário são bodes expiatórios para a estrutura perversa do Estado?
Valois — A polícia e o servidor carcerário estão na ponta do problema. Eles não estão ali para resolver o problema. São sempre medidas paliativas. Ali já é o ralo da coisa. Nós temos um abismo social muito grande. De um lado há uma população pobre e miserável que é para onde está apontada a mira do sistema de segurança pública. Do outro é onde se pensa a segurança pública. Por que só pensa em segurança pública com mais viaturas, armamentos e prisões? Porque esse pessoal almoça com o governador. O governador almoça com o dono da concessionária de carro, da fabricante de armas, da fábrica de cimento. Para o dinheiro não passar para o outro lado do abismo social se pensa em segurança apenas com isso. E o dinheiro fica circulando no mesmo meio. Para passar o dinheiro para o outro lado é preciso usá-lo em saúde, educação, saneamento básico. Só que isso daria bens para o outro lado, e o meio onde o dinheiro circula é muito egoísta.
ConJur — O fato de boa parte do Judiciário vir da elite influencia no punitivismo?
Valois — Com certeza. Temos um Judiciário protegido pela elite. Essa proteção é dada, por exemplo, com bons salários e auxílios. O auxílio-moradia é uma coisa que é discutida no Judiciário, mas não tem muita justificativa, porque a maioria dos magistrados tem casa.
ConJur — O Judiciário e o Ministério Público são coniventes com a violência policial?
Valois — Não é ser conivente, mas participar de uma engrenagem policial onde o juiz se coloca como mais um integrante da segurança pública. Esse é um discurso bem presente no Judiciário. Constró-se jurisprudência para auxiliar a prisão.
ConJur — Em que sentido?
Valois — Por exemplo, o entendimento que permite condenar uma pessoa apenas com prova policial, que autoriza a invasão de domicílio, que permite a prisão antes do trânsito em julgado da condenação. São jurisprudências policiais, e não em prol da Justiça e do desenvolvimento da sociedade.
ConJur — O que achou da decisão que garantiu indenização a presos em situação degradante?
Valois — É uma decisão paliativa, mas é sempre bom colocar o assunto em pauta. É uma provocação, porque se o Estado tiver que pagar R$ 2 mil por cada preso do Brasil, pois todos os presos no Brasil estão em situação degradante, é uma fortuna. O Judiciário, nesse ponto, com debates sobre a concessão de prisão domiciliar quando não há vaga no semiaberto, está assumindo discussões que ficavam restritas ao Supremo Tribunal Federal. Normalmente o cidadão não pensa no sistema penitenciário. Nem o juiz pensa. E o STF está sendo posto para pensar o sistema penitenciário. Vamos esperar as consequências.
ConJur — A magistratura brasileira está se sentindo justiceira?
Valois — Rubens Casara tem uma tese de doutorado, baseada em uma pesquisa feita por ele no Rio de Janeiro e que virou o livro Mitologia do Processo Penal, em que mostra que 80% dos juízes de lá acham que trabalham em função da segurança pública. O juiz que acha que trabalha em função da segurança pública não é juiz. Ou é juiz ou é Batman. O juiz acha que tem que mandar prender ou manter prisão em prol da segurança pública. O papel dele, de juiz de Direito, de ver se aquela questão é verdadeira ou falsa, fica em segundo plano.
ConJur — Há exemplos disso?
Valois — Uma das provas de que o Judiciário está trabalhando em prol da segurança pública e abandona os princípios de Justiça e de equidade foi a punição da desembargadora Kenarik Boujikian, que soltou uma pessoa que já tinha cumprido pena. Quando o Judiciário pune um magistrado que solta uma pessoa que já cumpriu pena é a prova cabal de que princípios de Justiça estão relegados ao segundo plano em nome de uma suposta segurança pública, se é que dá para chamar isso de segurança pública.
ConJur — O Judiciário trabalha com rigor excessivo para desviar o foco de seus problemas?
Valois — Com certeza. Todo poder punitivo, inclusive o da polícia e o do governo, desvia a atenção dos problemas principais. Quando você prende pessoas, está desviando a atenção, inclusive, da criminalidade. Sabemos que a impunidade é grande e que vários crimes estão acontecendo todo dia e essas pessoas que estão sendo presas são suficientes para a população achar que se está fazendo algo na segurança pública. O Judiciário é a mesma coisa, porque ele se mantém intocável ao exercer esse poder.
Brenno Grillo é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 24 de fevereiro de 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário