Monitoramento varia de acordo com o caso e com a determinação do juiz; especialistas apontam falta de pessoal e estrutura para o controle.
SÃO PAULO – O último levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que, em 2014, havia 147,9 mil presos cumprindo prisão domiciliar no Brasil. O Código de Processo Penal regulamenta e estipula os critérios para que essa medida seja aplicada, mas não determina como a fiscalização de todas essas pessoas será feita.
A prisão domiciliar não deixa de ser uma privação de liberdade e consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo sair com autorização judicial. Além disso, o juiz pode impor algumas restrições de acordo com o caso, sejam as previstas em lei - como comparecer em juízo periodicamente, não frequentar determinados lugares ou ter contato com determinadas pessoas - ou outras que ele considerar necessárias.
Garantir que essas determinações sejam cumpridas é outra história. “Da mesma forma que a gente não garante que um celular não vai entrar na prisão, não tem como garantir que essas regras se cumpram”, diz Maíra Zapater, advogada especialista em Direito Penal. O professor de Processo Penal do Instituto Paranaense de Ensino (IPE) e servidor público no Ministério Público Federal do Paraná, Neemias Moretti Prudente, afirma que o controle do cumprimento das regras fica, na prática, ao acaso, dependendo somente da pessoa que cumpre a decisão. “Não há pessoal nem estrutura suficientes para fiscalizar toda e qualquer prisão domiciliar”, afirma.
Porém, algumas ações podem ser colocadas em prática, se assim o juiz determinar, como o uso de tornozeleira eletrônica, vigilância 24 horas por dia feita por agentes da Polícia Federal ou Militar, câmeras de vigilância ou escolta policial nos casos em que o preso pode sair para cumprir atividades permitidas pela Justiça, como estudar e trabalhar.
Restrições judiciais. Umas das medidas cautelares que podem ser adotadas pelo juiz é o comparecimento periódico em juízo. Maíra explica que, nesses casos, quem fiscaliza é o próprio juiz. Quando o acusado precisa ficar longe de vítimas ou testemunhas, o controle e aviso à Justiça da violação da regra são feitos pelas próprias pessoas.
Na recente decisão judicial de converter a prisão preventiva em domiciliar da ex-primeira dama do Rio Adriana Ancelmo, o juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio, estabeleceu que ela não poderia sair de casa nem ter acesso a telefone e internet - bem como não receber visitas que portem celular ou outros dispositivos com acesso à internet. Ela só poderá receber advogados e parentes até 3º grau.
Segundo a advogada Fernanda Prates, não há uma disposição legal que coloque a proibição de acesso a telefone e internet como uma condição obrigatória para prisão domiciliar. “Normalmente, nas decisões, esse não é o tipo de condição que a gente vê, mas é possível a aplicação, e o juiz entendeu cabível nesse caso concreto”, diz.
Davi Tangerino, professor de Direito Penal da FGV Direito SP, considera o caso da ex-primeira dama uma “excepcionalidade”. “A Justiça Federal ou a PF terão de montar um esquema específico para acompanhar o regime dela, porque não bastaria o monitoramento eletrônico, pois não se trata apenas de onde ela tem de estar e em que horário. É uma espécie de [regime] fechado domiciliar sem previsão legal específica, e o sistema de controle terá de ser único, personalizado para ela”, diz.
O professor do IPE explica que as pessoas autorizadas ou não a entrar na casa de um preso domiciliar são descritas pelo juiz ao conceder a prisão. Em alguns casos, quem vai visitar a pessoa deve deixar celulares ou outros aparelhos proibidos na portaria do prédio. Mas o especialista reforça a falta de monitoramento. “Em muitos casos não há fiscalização. Ela fica por conta única e exclusivamente do beneficiário, ou seja, ele cumpre se quiser”, diz. Caso as regras não sejam cumpridas, a decisão pode ser revogada.
A Justiça Federal do Rio de Janeiro, por meio de assessoria, informou que Adriana não vai usar tornozeleira eletrônica. A Polícia Federal poderá fazer inspeções a qualquer dia e hora no apartamento da ex-primeira dama, no período das 6h às 18 h, sem comunicação prévia.
Os especialistas concordam que a prisão domiciliar não é uma determinação comum. “Acredito que a medida não é utilizada de forma mais ampla devido à falta de meios para fiscalizá-la. Isso sempre foi alvo de críticas”, diz Prudente. Maíra afirma que é comum a defesa pedir o benefício, mas a decisão é menos concedida do que se espera.
Monitoramento eletrônico. O uso de monitoração eletrônica está prevista no artigo 319 do Código Penal, mas só é condição obrigatória se for determinada pelo juiz. Por isso, segundo o Ministério da Justiça, não são todos os presos domiciliares que utilizam o equipamento. De acordo com um diagnóstico realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), com dados de fevereiro a julho de 2015, 18,2 mil pessoas eram monitoradas simultaneamente no Brasil.
O equipamento funciona com tecnologia GPS, que capta sinais via satélite para determinar a localização da pessoa e transmite informações por meio de sinal de celular. Tudo é enviado de forma criptografada a fim de evitar fraudes e criação de clones, explica Savio Bloomfield, presidente da Spacecom, empresa de monitoramento de sentenciados.
Uma central acompanha o preso diariamente, 24 horas por dia, e gera relatórios que ficam à disposição da Justiça por meio de um canal privado. Caso a tornozeleira seja rompida, o sinal GPS se perca, a pessoa saia de uma área de cobertura de celular ou qualquer regra seja quebrada, uma notificação é emitida na central e a Justiça é avisada imediatamente.
O mesmo vale para quando a bateria do aparelho não é recarregada, ação que deve ser feita pela pessoa que o possui. Todas as informações que eventualmente deixam de ser registradas em tempo real são armazenadas e descarregadas assim que o equipamento volta ao estado normal, ou seja, dentro da área de cobertura ou é recarregado.
A adoção do monitoramento eletrônico pela Justiça é feita por meio de uma licitação. A Spacecom atende 17 Estados brasileiros e monitora hoje mais de 21 mil pessoas no País. Bloomfield diz que esse número vem aumentando, pois, segundo ele, trata-se de uma alternativa à superlotação dos presídios.
“Isso traz benefício econômico para os Estados. Uma tornozeleira eletrônica custa, em média, R$ 250 por mês, cerca de 15% do que o governo gasta para manter uma pessoa aprisionada”, diz. Atualmente, um preso no Brasil custa R$ 2,4 mil por mês, segundo a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Cármen Lúcia. Segundo Bloomfield, a medida também evita o contato do preso com facções criminosas e a desagregação familiar.
Acontece em Brasília, nesta quinta e sexta-feira (30 e 31/3), o I Congresso de Direito de Polícia Judiciária, organizado pela Escola Superior de Polícia. O evento terá palestras de delegados das polícias Civil e Federal, além de exposição do diretor do Brazil Institute at King's College London. Entre os participantes estão os colunistas da ConJur Márcio Adriano Anselmo, Rodrigo Carneiro, Henrique Hoffman e Ruchester Marreiros Barbosa. Também colunista, o criminalista e professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho fará a palestra de abertura. Os temas em debate vão de inquérito policial a assuntos administrativos e cooperação internacional.
Se um homem é preso preventivamente por descumprir medida protetiva judicial que o obrigava a se afastar da ex-mulher, não há razão para condená-lo pelo crime de desobediência, pois foi observada a sanção elencada na Lei Maria da Penha (11.340/06). Com esse fundamento, a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul absolveu um homem denunciado pelo crime de desobediência — deixar de acatar ordem legal de funcionário público —, tipificado no artigo 330 do Código Penal.
Segundo o processo, que tramita em segredo de Justiça, o homem aproximou-se da ex-companheira, que estava saindo da delegacia de polícia, e a ameaçou de morte. Por essa conduta, foi denunciado também pelo crime de ameaça, definido no artigo 147 do Código Penal, com as disposições constantes na Lei Maria da Penha. Segundo o Ministério Público, o réu estava proibido, por ordem judicial, de aproximar-se e de manter contato com a ex.
Na comarca de origem, a denúncia do MP foi julgada totalmente procedente, sendo o réu condenado à pena de sete meses de detenção, em regime inicial aberto. A pena foi substituída por prestação de serviços à comunidade. Dessa decisão, a defesa interpôs recurso de apelação, suscitando, em razões de mérito, insuficiência probatória e atipicidade da conduta do réu.
Posição firmada no STJ
O desembargador José Antônio Cidade Pitrez, presidente do colegiado, revisor e voto condutor no julgamento, manteve a condenação por ameaça, mas absolveu o réu da imputação por desobediência, com base no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal — o fato não constitui infração penal.
Ele observou que o réu já foi preso preventivamente, com base no inciso III do artigo 313 do Código de Processo Penal, pelo descumprimento da medida protetiva. ‘‘Portanto, já tendo o réu sofrido sanção pelo descumprimento de ordem judicial, razão assiste à defesa ao pleitear o reconhecimento da atipicidade do segundo fato descrito na denúncia’’, anotou no acórdão.
Em seu voto, Pitrez citou parecer do procurador de Justiça com assento no colegiado, Glenio Luiz Biffignandi. Segundo o membro do MP, o Superior Tribunal de Justiça, em abril de 2016, decidiu que o descumprimento de medida protetiva de urgência, prevista na Lei Maria da Penha, não configura crime de desobediência.
‘‘A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça está pacificada no sentido de que o descumprimento de medidas protetivas estabelecidas na Lei Maria da Penha não caracteriza a prática dos delitos previstos nos arts. 330 e 359 do Código Penal, em atenção ao princípio da ultima ratio, tendo em vista a existência de cominação específica nas hipóteses em que a conduta for praticada no âmbito doméstico e familiar, nos termos do art. 313, III, do Código de Processo Penal’’, escreveu, na época, o relator do Habeas Corpus 305.409/RS, ministro Ribeiro Dantas.
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou julgamento do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) que condenou duas empresas ao pagamento de indenização por danos morais por considerar que elas constrangeram uma terceira empresa após determinação cautelar de busca e apreensão de bens supostamente falsificados. A decisão, tomada de forma unânime, afastou apenas a condenação de uma das empresas por litigância de má-fé.
No pedido de indenização, a empresa Mahe Comércio de Jóias alegou que sofreu constrangimento ilegal em virtude da execução de medida cautelar de busca e apreensão. A medida foi determinada em ação na qual as empresas Mormaii e J.R. Adamver afirmaram que a Mahe comercializava produtos falsificados das marcas autoras. A ação foi posteriormente julgada improcedente.
Segundo a Mahe, o constrangimento não seria fruto da decisão judicial, mas da abordagem sofrida pelos representantes das empresas após a determinação de busca e apreensão, que foi considerada excessiva.
Autorização do Judiciário
O pedido de indenização foi acolhido em primeira instância, com o arbitramento de compensação por danos morais no valor de R$ 2 mil. A sentença foi mantida pelo TJSC, que ainda condenou a Mormaii por litigância de má-fé.
No recurso especial, a Mormaii argumentou que o procedimento de busca e apreensão foi realizado de forma regular, com autorização da justiça, o que afastaria eventual dano moral a ser compensado. A empresa também contestou a condenação por má-fé, já que o cabimento de danos morais no caso discutido não seria pacífico na jurisprudência.
Dano comprovado
A relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou inicialmente que, para que a execução de medida cautelar de busca e apreensão seja capaz de causar dano moral indenizável à pessoa jurídica, é preciso que sua reputação e seu nome tenham sido comprovadamente ofendidos.
No caso concreto, a ministra ressaltou que o TJSC condenou a empresa por ter reconhecido que o procedimento de busca e apreensão foi realizado durante o funcionamento da loja, inclusive na presença de clientes e funcionários.
“Observa-se, assim, da moldura fática delimitada no acórdão recorrido, que o tribunal de origem entendeu, com base nas provas produzidas nos autos, ter ficado demonstrada a ocorrência de ofensa à honra objetiva da recorrida, relacionada à sua reputação e à qualidade dos produtos que comercializa”, concluiu a ministra ao manter a condenação por danos morais.
Todavia, acompanhando o voto da relatora, o colegiado afastou a condenação de segunda instância por litigância de má-fé. Para a turma, a Mormaii “interpôs o recurso de apelação, o qual era o único e regularmente cabível para a impugnação da sentença que lhe tinha sido desfavorável, não tendo ficado, com isso, caracterizado seu intuito de protelar o deslinde da controvérsia, tampouco sua deslealdade com a parte adversa”.
Em audiência pública, subprocuradora-geral defendeu alinhamento da legislação brasileira às normas internacionais sobre a matéria
Foto: Leonardo Prado - Secom/PGR
A instituição das audiências de custódia é um importante avanço para a garantia da dignidade da pessoa humana, afirmou a subprocuradora-geral da República Cláudia Sampaio Marques na manhã desta quinta-feira, 30 de março, em audiência pública no Senado Federal. Representando a Câmara de Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional do Ministério Público Federal (7CCR/MPF), Cláudia Marques apresentou contribuições ao Projeto de Lei do Senado 554/2011. O PL determina prazo de 24 horas para a apresentação do preso à autoridade policial depois que é efetuada a prisão em flagrante.
A representante do MPF destacou a importância de alinhar a legislação nacional ao tempo de apresentação do detento determinado por normas internacionais para a realização das audiências. “Não podemos admitir protelação de prazos exigidos pelas leis e convenções internacionais”, frisou a subprocuradora-geral. Cláudia Marques expôs condenações pela Corte Interamericana de Direitos Humanos de dois países – México e Equador – pela apresentação de presos ao juiz fora do prazo.
A subprocuradora-geral entende que, num país com dimensões territoriais extensas como o Brasil, o cumprimento de determinados prazos para reunir, em audiência, todos os participantes pode vir a ser “impraticável”. Nesses casos específicos, defendeu a possibilidade da realização de audiências de custódia por meio de videoconferência. “Nós temos recursos que podem viabilizar a realização das audiências de custódia no prazo razoável”, afirmou. Ela destacou, no entanto, que a ferramenta seja utilizada em casos excepcionais, já que, em regra, as audiências devem primar pela pessoalidade.
Competência – Cláudia Sampaio Marques expôs o posicionamento do MPF quanto à delegação de competência ao juiz estadual para a realização de audiências que tratem de crimes federais. Para ela, trata-se de uma delegação inconstitucional. A subprocuradora-geral argumenta que a Justiça Federal já está interiorizada no Brasil. Para ela, existe hoje a possibilidade de ter próximo, ou a uma distância pequena, um juiz federal que possa participar da audiência. Caso não seja possível, lembrou novamente da possibilidade de uso de ferramentas como a videoconferência.
O valor probatório das informações colhidas nas audiências de custódia também foi abordado na discussão. Para o MPF, os depoimentos prestados em audiência de custódia devem ter o mesmo valor probatório dos depoimentos colhidos no auto de prisão em flagrante, quando estão presentes apenas o réu e as autoridades policiais. De acordo com a subprocuradora-geral, o depoimento apresentado ao juiz durante as audiências – com a presença do Ministério Público e de um defensor – devem ser levados em consideração como meio de prova. Para ela, a audiência é um momento ímpar para se ouvir a versão do réu, em um momento de autodefesa.
Eficiênciaprocessual - A subprocuradora-geral lembrou ainda as contribuições do MPF em trabalho desenvolvido para sugerir medidas de modernização da investigação criminal. O modelo foi proposto pela 7CCR, em parceria com as Câmaras Criminal e de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal. Dentre as medidas sugeridas para a celeridade e eficiência do processo penal, o grupo propôs possibilidades para a efetividade das audiências de custódia. De acordo com a proposta do MPF, nos crimes de menor potencial ofensivo, o juiz já poderia adotar medidas como o julgamento célere da causa, a imposição de penas alternativas ou de medidas despenalizadoras.
A audiência pública também contou com a participação de representantes da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Militar, do Defensor Público do Estado de São Paulo Carlos Weis, do juiz militar Marcos Faleiros da Silva e do promotor de Justiça do Piauí Paulo Rubens parente Rebouças.
Tramitação – O Projeto de Lei do Senado 554/2011 busca regulamentar as audiências de custódia. A proposta busca alterar o parágrafo 1º do art. 306 do Código de Processo Penal. O projeto estabelece prazo de 24 horas para que toda pessoa presa em flagrante seja levada à presença de um juiz, de um defensor ou advogado e do Ministério Público. Na audiência, o juiz decidirá sobre a validade e legalidade da prisão. A medida busca garantir os direitos do preso e evitar tortura, maus-tratos, ou outras formas de abuso de poder.
“Trate as pessoas como lixo e elas serão lixo. Trate-as como seres humanos e elas se comportarão como seres humanos.”
Balsa a caminho da prisão Bastoy, 11 de abril de 2011.
ILHA BASTOY, NORUEGA – "Prisão", pergunto aos dois marinheiros, ao chegar à balsa.
Sim, respondeu um deles, esfregando as mãos por causa do frio. Ele me olhou de cima a baixo, com olhos azuis e arrogantes. "Mas, sinto muito, é só para homens." Ele riu. "Venha, venha, você está no lugar certo."
Olhei para o mastro e notei que lá em cima havia um cisne empalhado.
"Encontramos congelado num bloco de gelo, anos atrás", disse o outro marinheiro, que usava um gorro de esqui e tinha uma cara enrugada e afável.
"É meio assustador", disse eu.
"Você acha? É nosso mascote. Você tem medo de criminosos?", perguntou ele de repente. Antes que eu pudesse responder, "Nós somos criminosos". Olhei nos olhos dele; estavam rindo. Será que era piada?
"Verdade. Somos criminosos. Você está com medo?"
"Por que estaria?", respondi, dando de ombros. Ainda não tinha certeza de que ele estava falando a verdade.
"Sou Wiggo", disse ele, estendendo a mão. Ele realmente era um detento, cumprindo pena de 21 anos, a máxima na Noruega. Mas provavelmente ele vai ser solto no ano que vem.
Cato, o outro marinheiro, estava cumprindo um ano e meio por intenção de cometer ato criminoso, apesar de insistir em sua inocência. Ele e Wiggo me levaram a uma sala para me mostrar sua rotina diária, afixada numa parede.
"Trabalhamos no turno das seis ao meio-dia", disse Cato. "Aí voltamos para a prisão e relaxamos ou fazemos exercícios. Venha, quer conhecer o capitão? Ele não é prisioneiro. É o único desse barco que não é."
No andar de cima, o capitão apertou minha mão.
"Você está conversando com esses bandidos?", disse ele, rindo. Eu estava entrando nessa brincadeira de "criminosos perigosos". Claramente não havia motivo para sentir medo.
É o desaparecimento completo das barreiras entre 'nós' e 'eles'.
Quando a balsa zarpou, observei Bastoy, um conglomerado de pinheiros altos em um mar cinza que se estendia ao cinza do céu. Na pequena sala do barco, Cato sentou-se ao meu lado e ligou a TV, sintonizando no History Channel.
"Você está no Facebook?", ele perguntou.
"Você pode entrar no Facebook? Na internet?", retruquei.
"Lá, não", disse ele, apontando para os pinheiros. "Mas sim quando temos indultos." Anotei meu nome num pedaço de papel. Pela primeira vez desde a minha chegada, deu pra ver um pedacinho de céu azul.
"Dizem que Bastoy é um acampamento de verão", disse Wiggo, quando eu me preparava para desembarcar. Ele estava quase me repreendendo. "Talvez você ache isso. Mas não, é uma prisão. Acredite. Nossa vida é interrompida. Congelada."
Apontei para o cisne. "Como o mascote. Congelado. Mesmo numa linda ilha."
Wiggo concordou, meneando a cabeça.
"De volta ao continente!", disse ele para Cato, pronto para mais uma viagem. Carontes dos dias de hoje, pensei. Transportando novas almas através do rio para o submundo.
Mas não parecia nada com o submundo. Wiggo estava certo; parecia um acampamento de verão. Folhas secas caíam sobre os ciclistas – sim, prisioneiros de bicicleta --, e uma charrete cruzou o caminho. Casinhas arrumadas estavam por toda parte; todas amarelas, com detalhes verdes e telhados vermelhos. Vi ovelhas e vacas, mas nenhum sinal de muros ou arame farpado.
Bastoy é uma prisão aberta, conceito nascido na Finlândia nos anos 1930 e agora norma em toda a Escandinávia. Alguns presos podem manter seus empregos enquanto cumprem suas penas, indo e voltando todos os dias. Um terço das prisões norueguesas são abertas, e Bastoy, um reformatório para meninos convertido em prisão em 1982, é considerada a joia da coroa.
Uma pequena van amarela dirigida por um guarda sorridente me leva até uma cabana, onde deixo meu telefone, a primeira coisa que remotamente sugere "prisão". Tom, o governador – não diretor nem superintendente, mas governador – parece Kevin Costner. Ele me oferece um café, e nos sentamos em seu escritório, que, com suas cortinas floridas, plantas e ligeiro perfume, me lembra de uma pousada do nordeste dos Estados Unidos.
"Não funciona. Só fazemos assim porque somos preguiçosos", disse Tom. Ele estava falando do sistema prisional tradicional, no qual trabalhou durante 22 anos antes de tornar-se diretor de Bastoy. Uma mosca faz barulho perto da janela enquanto ele continuou.
"Comecei bastante cético. Mas isso mudou bem rápido. Mais prisões deveriam ser abertas – quase todas deveriam ser assim. Aceitamos o número máximo aqui, mas não temos lugar para todos." Presos de todo o país podem pedir transferência para uma prisão aberta como Bastoy quando estão a três anos da liberdade. A ilha acomoda cerca de 115 homens, sob a supervisão de 70 funcionários. A lista de espera tem 30 detentos.
"Existe a percepção que diz: 'Ah, é uma prisão light; vocês só aceitam os caras legais para um acampamento de verão'. Mas não é assim. Nossos caras estão metidos numas merdas grandes, se você perdoa minha linguagem. Drogas e violência. E a verdade é que alguns que são problemáticos em outras prisões parecem tranquilos aqui. 'Esse é o cara que você disse que é difícil?' É muito simples: trate as pessoas como lixo e elas serão lixo. Trate-as como seres humanos e elas se comportarão como seres humanos."
Ele abre a janela e deixa a mosca sair.
"Venha, vamos dar uma volta."
'Trate as pessoas como lixo e elas serão lixo. Trate-as como seres humanos e elas se comportarão como seres humanos.'
Caminhamos pela floresta, passando por cavalos, uma área onde as aves se reproduzem, uma estufa e uma churrasqueira, onde os homens podem preparar o almoço. Os homens vivem em casas compartilhadas que parecem cabanas de madeira. Um cheiro delicioso de lenha queimando perpassava o ar, e a Robben Island, na África do Sul, veio à mente. Bastoy é o extremo oposto: uma versão humana daquela ilha infernal.
"Não se trata de administrar uma prisão, mas sim uma ilha", explica Tom. "A agricultura é parte da nossa filosofia. Somos ecológicos. Os animais também têm função social, ensinam empatia. Todo mundo trabalha com a terra."
Uma reserva natural é responsável por cerca de 25% da comida. A maioria dos carros é elétrica, e tudo é reciclado.
"Você mora na ilha?", pergunto.
"Vou e volto de balsa todos os dias. Amo isso aqui. Nada de pegar trânsito para ir a Oslo. Eu não sabia de nada disso. Era só um cara da cidade. Agora minha vida melhorou muito. Assim como a dos presos."
Tom me mostra uma igreja de madeira ornamentada com um candelabro de metal. "A Noruega é secular, então esse espaço é mais cultural; o chapelão é mais um terapeuta que uma figura religiosa", explica ele. Tom também me leva para um mercado que vende chocolates caros e suco de aloe vera. Cabines telefônicas podem ser usadas à vontade, e Tom acredita que celulares e internet deveriam ser liberados em todas as prisões.
"Temos medo de que? Não dá para matar ninguém pela internet ou pelo telefone", diz ele.
Pergunto sobre o estigma e a reentrada na sociedade.
"Na Noruega, quando você é solto, é solto", responde ele. "Sem grandes estigmas. Um cara passou 18 anos na prisão e agora mora no meu bairro. Um velho normal. Ninguém se importa. Você vê muito disso. Tenho muitos amigos que estiveram presos. Os noruegueses são capazes de perdoar." Ele faz uma pausa. "É estranho, porque nem sempre fomos assim."
É muito mais que isso. Esta é a terra dos vikings saqueadores e das sagas nórdicas, retratadas nos frisos de madeira do exterior da prefeitura de Oslo, que eu tinha visitado dias antes. As sagas contam histórias de violência, assassinatos, ciúme e vingança. É fascinante pensar que em algum lugar do passado norueguês a maré virou, e uma cultura de paz e perdão foi capaz de triunfar.
No almoço, Tom continua a me impressionar. Ele explica que, embora o partido conservador daqui seria considerado liberal em qualquer outro lugar, esquerda e direita concordam em quase tudo no que diz respeito à política correcional. Mas o influxo de imigrantes, o aumento da xenofobia e a política conservadora ameaçam o sistema progressista do país.
O Partido do Progresso, anti-imigração, faz parte do governo conservador e combate o que chama de exagero do sistema de seguridade social. Nos últimos anos, um jornal local afirmou que 80% dos noruegueses defendem penas mais duras. Uma pesquisa de 2010 apontou que a maioria da população considera as penas brandas demais.
"Sua mídia também é responsável", diz Tom, mordendo uma fatia de torrada integral com queijo. "Os programas de TV americanos com prisões duras e conversas de 'endurecer contra o crime'. Isso influencia as pessoas aqui. Mas isso começa a mudar. Todo o noticiário negativo dos últimos anos faz com que não levemos vocês tão mais a sério. Especialmente nas eleições. Nos discursos políticos, as referências bíblicas em um país secular? E Sarah Palin? As pessoas riem e choram – esse é o país que queremos imitar?"
Eu suspiro. É perturbador notar como a mídia pode criar e acabar com o problema. Digo isso, e ressalto que a culpa é da cultura do medo. Conto da minha experiência na Austrália e a mídia de Rupert Murdoch.
"Sim", concorda Tom. "Converse com pessoas numa festa e todos – perdoe meu linguajar – os idiotas vão insistir que há mais crimes do que se vê por aís. Mas as estatísticas dizem que não há nada a temer."
Nada representa tão bem o modo de vida norueguês como seu sistema prisional.
Um estudo sobre indultos na Alemanha, digo, mostra que mero 1% dos detentos não volta para a cadeia.
"Exatamente", diz Tom. "Aqui há casos em que presos cometem crimes quando têm indultos, mas são muito poucos. Não se pode construir um sistema judicial em torno de uma ou duas exceções."
"Digo para as pessoas: 'estamos soltando seus vizinhos'. Você quer que os soltemos como bombas-relógio? É esse tipo de pessoa que você quer como vizinho? Ei"— ele larga a torrada – "você viu o filme sobre o diretor da prisão americana de Attica?"
Um recente documentário finlandês mostra um ex-diretor da prisão americana visitando Halden, outra prisão norueguesa focada em reabilitação e recuperação. Onde as autoridades norueguesas enxergam reabilitação e recuperação o americano enxerga risco e perigo. A interação dos funcionários de Halden com os presos – jogando cartas, por exemplo – é essencial para a ideologia de Halden. O americano diz que isso não é permitido em Halden.
Em resposta, Tom me diz: "Como você vai ajudar os presos se não compartilha, se não fala de você e de sua família? Os homens aqui conhecem meus filhos, sabem onde moro, tudo. Por que deveria sentir medo?"
Se já existiu uma utopia, a Noruega tem a reputação de sê-la. É um país rico em petróleo. Educação e saúde de qualidade são fornecidos quase inteiramente pelo estado. A cultura de igualdade, segurança e comunidade tem longa data. Em vez de feudos e servidão, a vida econômica da Noruega durante séculos se baseou em pequenos vilarejos e autogoverno local e democrático; a nobreza foi abolida há mais de 200 anos e nunca houve uma classe superior distinta. O clima e a geografia limitaram a imigração, e a coesão se fortaleceu com a população uniforme.
Nada representa tão bem o modo de vida norueguês como seu sistema prisional, que adota o "princípio da normalidade": a punição é a privação da liberdade, e ninguém deve cumprir sua pena sob circunstâncias mais estritas do que as exigidas pela segurança da comunidade.
O criminologista John Pratt resumiu a abordagem escandinava usando o termo "excepcionalismo penal", referindo-se aos baixos índices de aprisionamento e às condições humanas das cadeias. As prisões aqui são pequenas – a maioria abriga menos de cem detentos, algumas delas apenas um punhado. Elas estão espalhadas por todo o país, o que permite que os presos estejam perto de suas famílias e comunidades. E todas são planejadas para reproduzir o máximo possível a vida do lado de fora.
A comunidade do preso continua cuidando de sua saúde, sua educação e de outros serviços sociais durante o cumprimento da pena. O modelo norueguês de importação, como é conhecido, mantém os presos em contato com os mesmos serviços de bem estar social usados pelos outros cidadãos, o que permite que a sentença não tenha "sobressaltos" – a pessoa pertence à mesma municipalidade antes e depois da prisão. As penas são curtas – oito meses, em média – em comparação com os Estados Unidos, que em 2012 foram de quatro anos e meio, em média. Quase ninguém cumpre a totalidade da pena. Depois de cumprido um terço do tempo de encarceramento, o detento pode pedir para passar até metade da pena restante fora da cadeia.
Mas a característica mais marcante do sistema norueguês é que ele parece funcionar. Os índices de criminalidade são muito baixos, e as taxas de reincidência são de meros 20%.
A característica mais marcante do sistema norueguês é que ele parece funcionar.
Depois da minha visita, enquanto aguardava a van amarela me levar de volta à balsa, um homem com um dente da frente quebrado parou ao meu lado.
"Você é americana? Deve achar esse lugar maluco, hein?" Sem me deixar responder, ele continuou.
"Mas, se você trata as pessoas como merda, elas serão uma merda. Por que os Estados Unidos não entendem? Engraçado, porque Tony Robbins é tão inteligente e é americano." Ele estava falando do guru da auto-ajuda conhecido pelos informerciais e livros. O homem soltou uma risada nervosa.
"O que o senhor está fazendo aqui?", perguntei. O casaco azul dele dizia ENGENHARIA, então imaginei que estivesse fazendo algum conserto.
"Eu? Estou sentado aqui. Vou ao médico, porque talvez tenha de ser transferido para outra prisão aberta. Estou ficando com alergia aos cavalos."
Ah -- ele está preso aqui. Não fazia ideia.
Achei minha ignorância profundamente comovente. Ele e eu éramos dois seres humanos. Como meu encontro com os marinheiros da balsa, Wiggo e Cato, aquela interação casual era um contraste enorme com as várias entrevistas que fiz em prisões ao longo dos anos; é o desaparecimento completo das barreiras entre "nós" e "eles".
Na balsa de volta, conversando comigo como se fosse uma amiga antiga, ele me contou que trabalhou na indústria petrolífera e viajou pelo mundo. Apesar de manter contato com a família e a comunidade graças aos indultos, ele disse que não vai ser fácil voltar a viver uma vida normal quando estiver em liberdade, no ano que vem.
"Mas tenho esperanças. Na prisão, você pode escolher entre olhar para o céu ou para o musgo no chão. Olho para o céu."
Este é um trecho modificado de "Incarcerating Nations: A Journey to Justice in Prisons Around the World" (Nações Encarceradas: Uma viagem à justiça em prisões ao redor do mundo, em tradução livre) (Other Press; 2016), de Baz Dreisinger.
O Judiciário deve intervir na questão da descriminalização das drogas quando os outros Poderes não atuam pelo fim da criminalização das substâncias. Mas, no combate à guerra às drogas, que já se mostrou ineficiente, é preciso analisar bem a realidade social, pois, ao definir o porte mínimo para consumo pessoal, se o valor for muito baixo, a nova política pode não surtir efeito algum, ou piorar a situação carcerária.
Essas foram algumas das opiniões que o ex-presidente colombiano César Gaviria (1990-1994), conhecido por liderar o país na caçada ao traficante Pablo Escobar e todo o cartel de Medellín, apresentou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. “Quando o Legislativo nem o Executivo assumem esse importante papel de por um fim à criminalização da posse de drogas para uso pessoal, a Suprema Corte deve intervir.”
Questionado sobre a ação no STF que analisa a descriminalização de pequenas quantidades de droga para consumo próprio, ele lembra que isso aconteceu em seu país em 1994. À época, a Corte Constitucional colombiana descriminalizou a posse para uso pessoal e reafirmou a decisão nos anos 2000, quando uma reforma constitucional tentou criminalizar novamente o ato.
“Quanto a adotar parâmetros para identificar o que seria exatamente essa posse para uso pessoal, há uma ferramenta mundial adotada com relativo sucesso em diversos países. A chave aqui é ter limiares compatíveis com o padrão de consumo nacional, ou irá ocasionar um erro entre as equipes de segurança. No México, por exemplo, onde esse parâmetro é muito baixo, a descriminalização falhou e mais pessoas acabaram sendo presas”, exemplifica.
Para o ex-presidente colombiano, a descriminalização da posse de droga para uso pessoal independe do tipo de substância, apontando ainda que a criminalização pode ter um efeito reverso ao pretendido, pois aumenta o alcance das facções criminosas — que também dominam cadeias colombianas — ao misturar pequenos traficantes, ou simples usuários, com criminosos já conhecidos e perigosos.
“Há dois lados para essa questão que nós, na Colômbia, aprendemos do jeito difícil. Um é que, ao prender criminosos não violentos e usuários de drogas, estamos entregando nossa juventude nas mãos do crime organizado, ao encarcerá-los junto a criminosos violentos em celas controladas por gangues”, afirma Gaviria, em um relato que se encaixa perfeitamente ao caso brasileiro.
Antonio Maria Patiño Zorz Juiz de Direito em São Paulo
Giane Silvestre Doutora em Sociologia pela UFSCar; Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (GEVAC); Integrante da pesquisa "Audiência de Custódia, Prisão Provisória e Medidas Cautelares: Obstáculos Institucionais e Ideológicos à Efetivação da Liberdade como Regra", financiada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Bruno Shimizu Defensor Público do Estado de São Paulo; Mestre e Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de São Paulo; Membro da Diretoria Executiva do IBCCRIM.
Helena Rodrigues Mestre em Saúde coletiva – Gestão de tecnologia e inovação em saúde – Hospital Sírio Libanês; Especialista em apoio institucional – Unicamp; Coordenadora do projeto de articulação intersetorial para pessoas que receberam concessão de liberdade em audiências de custódia no município de São Paulo.