O Habeas Corpus jamais pode ser concedido para prejudicar aquele a quem ele deve proteger. Por isso, e em nome do princípio da proteção judicial efetiva, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu conhecer de HC impetrado por réu cuja pena de prisão já havia sido extinta, o que é vedado pela Súmula 695.
A decisão seguiu o voto do relator, ministro Dias Toffoli, e fixou alguns precedentes importantes para a jurisdição criminal no STF. A primeira é que o Habeas Corpus, garantia constitucional do direito de ir e vir, pode ser conjugado com o princípio de que uma decisão judicial não pode ser reformada para prejudicar o autor do recurso — é a vedação ao reformatio in pejus.
O caso concreto é o de um militar condenado a cinco anos de prisão pelo furto de dois fuzis carregados do quartel. O crime foi enquadrado no artigo 303, parágrafo 2º, do Código Penal Militar: peculato-furto, ou o furto de um objeto de propriedade das Forças Armadas em benefício próprio. Ele foi condenado pela Auditoria Militar em Manaus e seu recurso foi negado à unanimidade pelo Superior Tribunal Militar.
A peculiaridade do caso é que o militar, depois de ter cumprido três anos de sua pena, recebeu o indulto presidencial em 2013. Havia cumprido um terço da pena, que não ultrapassava oito anos, conforme explica o artigo 1º do Decreto 8.172/2013. O que acontece com o indulto é que ele libera o preso para ir para casa, mas não elimina os demais efeitos da condenação. Ele sai da prisão, mas deixa de ser réu primário. E por isso a 1ª Turma do STF decidiu superar a Súmula 695 e analisar o caso.
Proteção adequada
No HC, o militar alegou duas nulidades em sua condenação, por isso pedia a anulação da decisão e um novo julgamento. A primeira é que ele não esteve presente durante as oitivas das testemunhas. A segunda, que não foi interrogado ao final da instrução processual, conforme manda o artigo 400 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 11.798/2008.
Só que quando o Habeas Corpus chegou ao Supremo, o militar já havia recebido o indulto e, portanto, não estava mais preso. Pelo que diz a Súmula 695, o Supremo não poderia julgar o caso, pois se trata de HC impetrado em favor de réu solto. Se o pedido era por um novo julgamento, caberia uma revisão criminal.
Mas o ministro Dias Toffoli entendeu que o texto da súmula, nesse caso, deveria ser superado. Isso porque o indulto só revoga a prisão, mas mantém os efeitos secundários da pena. E como o STM já havia negado o recurso do réu à unanimidade, “não haveria utilidade alguma em relegar a discussão da matéria, subtraindo-a, desde logo, da apreciação do Supremo Tribunal Federal”.
É a aplicação prática do princípio da proteção judicial efetiva. Toffoli cita em seu voto o doutrina do professor português Gomes Canotilho que diz que, “se a determinação dos caminhos judiciais for de tal modo confusa que o particular se sinta tão desprotegido como se não houvesse via judiciária nenhuma, haverá violação do princípio do Estado de Direito e do direito fundamental do acesso à via judiciária”.
Logo depois Toffoli arremata: “Desborda da razoabilidade e viola o princípio da proteção jurisdicional adequada reenviar a discussão da tese de nulidade do processo para a revisão criminal quando, de antemão, já se tem certeza de que seu resultado será desfavorável ao paciente”.
Esse entendimento ganhou com placar apertado na turma. Além de Toffoli, entenderam assim o ministro Marco Aurélio e a ministra Rosa Weber. Os ministros Luiz Fux e Luís Roberto Barroso eram contra o conhecimento do HC em apoio à jurisprudência restritiva do Supremo.
Mudar para melhor
Vencida a questão preliminar, a turma passou a discutir qual deveria ser o destino do Habeas Corpus. A primeira alegação de nulidade processual era que o réu não estava presente quando da oitiva das testemunhas.
Foi rejeitada, pois a jurisprudência do STF é que a ausência do réu nesse momento só é óbice processual se ele requerer comparecer às audiências. E no caso concreto, as testemunhas pouco acrescentaram para o caso e não souberam dar informações sequer vagamente relacionadas ao réu, segundo o voto do ministro Dias Toffoli.
A segunda nulidade alegada foi aceita pelos ministros. O militar alegou que, como não foi ouvido ao fim da instrução processual, sua condenação foi nula. A regra passou a constar do artigo 400 do CPP depois da edição da Lei 11.798/2008, mas o STM afirmava que, como é um ramo especializado da Justiça, não estaria sujeito a essa mudança, apenas ao que diz o Código de Processo Penal Militar.
Os ministros da 1ª Turma do STF discordaram. Citaram jurisprudência do próprio colegiado dizendo o contrário. Isso quer dizer, portanto, que o réu tem direito a novo julgamento. E aí entrou uma complicação peculiar ao caso concreto: o Supremou obrigou o STM a ouvir o réu e a fazer novo julgamento. Como será uma nova discussão, pode ser que o militar saia absolvido, mas também pode ser considerado culpado.
Por isso é que o ministro buscou o princípio da vedação à reforma de entendimento em prejuízo do autor do recurso. A solução encontrada por Toffoli foi garantir ao réu o novo julgamento, mas também garantir que, caso ele seja considerado culpado, que apenas os efeitos secundários da condenação sejam aplicados. Isso porque ele já havia sido beneficiado pelo indulto, e um Habeas Corpus não poderia resultar em situação pior para quem o impetrou.
Esse entendimento foi seguido quase à unanimidade. Os ministros Fux e Barroso, que haviam sido contra a admissão do HC, acompanharam o relator. O ministro Marco Aurélio ficou vencido, pois entendia que o processo deveria ser trancado, sem o novo julgamento.
HC 121.907/AM
Clique aqui para ler o voto do ministro Dias Toffoli.
Revista Consultor Jurídico, 20 de outubro de 2014.
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