Diante de indícios de má gestão, Ministério Público abre inquérito para investigar contas de instituição responsável por menores infratores no estado de São Paulo
Com orçamento de aproximadamente 1,2 bilhão de reais, aFundação Casa gasta atualmente cinco vezes mais com cada menor infrator do que o Brasil desembolsa com detentos federais. Na comparação com o custo dos presos do estado de São Paulo, a diferença é maior ainda. Os adolescentes envolvidos em atos infracionais representam um gasto quase oito vezes maior do que o presidiário comum. Quem olha esse montante tem a impressão de que São Paulo tem um sistema de recuperação de adolescentes de primeiro mundo. Mas é exatamente a discrepância entre o valor saído dos cofres estaduais e a situação precária nas unidades correcionais que chama a atenção do Ministério Público.
De acordo com os dados colhidos pelo MP, a instituição responsável pela ressocialização de menores consome todo mês aproximadamente 10 mil reais por menor infrator. Como a população de adolescentes envolvidos em atos infracionais é, em média, de 10 mil menores, isso representa um investimento muito superior ao realizado na recuperação de presos comuns. O governo federal gasta hoje em torno de 2 mil reais, a cada mês por detento. O próprio estado de São Paulo despende menos: 1,3 mil reais per capita. Apesar dos gastos elevados, a FundaçãoCasa tem um alfabeto inteiro de problemas. O Ministério Público listou de A a Z os principais problemas nas unidades do sistema: índice de reincidência de 54%, frequentes rebeliões e tumultos que resultam em morte, insalubridade nas condições de moradia, reclamações de maus-tratos e até déficit de profissionais em relação ao número de adolescentes no sistema, entre outros apontamentos.
Diante do cenário, a Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da capital resolveu instaurar um inquérito civil parar investigar as contas, as licitações e os contratos da instituição. CartaCapital teve acesso ao documento com exclusividade. Segundo os promotores, o problema não é o alto valor disponibilizado para a recuperação desses jovens, mas o resultado tão parecido com o sistema prisional comum. “Não estamos questionando a necessidade de se ter um investimento elevado. Ao contrário, é importante. O que a gente observa é o investimento muito elevado para uma contrapartida tão insatisfatória”, explica o promotor Tiago de Toledo Rodrigues. “Precisamos apurar se esse serviço, claramente deficitário e deficiente, é fruto de má-gestão, improbidade ou até crime.”
O inquérito é resultado de uma ação coordenada pelo procurador-geral de Justiça estadual, Márcio Fernando Elias Rosa. Ele separou os promotores em grupos e dividiu a atuação de cada um por temas considerados prioritários na Fundação Casa. Além da investigação nas contas, os promotores entraram em agosto com uma ação civil pública contra o governo Geraldo Alckmin, do PSDB, e a Fundaçãopor superlotação em 91,37% das unidades que compõem o sistema, como mostrou CartaCapital na edição 812. No caso do inquérito estarão envolvidos na análise dos contratos e licitações da instituição os promotores: Tiago de Toledo Rodrigues, Pedro Eduardo de Camargo Elias, Fábio José Bueno, Daniela Hashimoto, Santiago Miguel Nakano Perez, Ricardo Brainer Zampieri, Daniela Romanelli da Silva, Fernanda Chuster Pereira, Fernando Henrique de Freitas Simões, Elisa De Divitiis Camuzzo e Julisa Nascimento de Paula.
“Investigação a gente começa, mas não sabe como termina. Agora o ponto de partida é esse. Temos um orçamento bilionário de um lado e de outro uma estrutura caindo aos pedaços, insuficiente ao serviço a que se presta, reclamação de toda ordem e adolescentes mal recuperados. Eles acabam reincidindo logo depois. Então isso já é uma suspeita, um ponto de início para uma investigação”, argumenta o promotor Fábio José Bueno.
Os indícios de que as contas não vão bem estão no Tribunal de Contas do Estado. O órgão encontrou recentemente irregularidades tanto em uma licitação como em uma prestação de contas feita pela presidente da Fundação Casa, Berenice Maria Giannella. No primeiro caso, a Fundação Casa abriu processo para contratar uma empresa para fazer a segurança patrimonial de quatro unidades localizadas no interior de São Paulo: Franca, Ribeirão Preto, São Carlos e Sertãozinho. O pregão eletrônico foi fechado no valor de 5,3 milhões de reais. Passados 23 dias, o contrato foi assinado no valor de 5,9 milhões de reais, 600 mil a mais.
No outro caso, o problema foi em um convênio firmado entre a Fundação Casa e uma organização social chamada Fraternidade Santo Agostinho, para prestação de serviço dentro das unidades no valor de 1,5 milhão de reais, em 2010. No fim do convênio, tanto aFundação Casa quanto a entidade têm de prestar contas do que foi usado, porque a instituição não tem finalidade lucrativa. Mas não foi o que aconteceu. “Toda remuneração obtida em convênio precisa ser informada ao TCE. Se tiver saldo ao final do acordo, esse valor precisa ficar depositado e ser usado na próxima prestação de serviço. O que aconteceu? Não ficou esclarecido se houve saldo ou não”, diz o promotor Santiago Miguel Nakano.
O caso foi julgado pelo TCE neste ano e, como resultado, o órgão aplicou uma sanção de 200 unidades fiscais na presidente daFundação Casa, o que resulta em multa de aproximadamente 4 mil reais. Em ambos os processos a instituição ainda pode recorrer. O fato é que o MP tem agora ao menos 180 dias para descobrir por que tanto dinheiro não tem correspondido necessariamente a uma situação melhor para o tratamento dos menores de idade.
Berenice Giannella, presidente da Fundação Casa, se diz tranquila: “ Podem investigar, não tenho nada para esconder. Gasto de 70% a 80% com pessoal. Os promotores citam maldosamente os processos no TCE. Ainda podemos recorrer”.
Reportagem publicada originalmente na edição 819 de Carta Capital, com o título “Crime de desperdício”
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