Após a Lei 12.403/2011, que criou punições alternativas à prisão, a privação de liberdade do acusado só é opção caso sua necessidade seja demonstrada de modo claro e inequívoco. Assim deciciu a 5ª Câmara Criminal do Rio de Janeiro ao conceder Habeas Corpus a um cidadão de 43 anos, primário e sem antecedentes criminais, que fora preso em flagrante durante uma blitz. Havia a suspeita de quatro delitos: adulteração de chassi do veículo, posse de arma proibida, habilitação falsa e receptação do veículo que conduzia.
O acórdão, unânime, substituiu o encarceramento pela liberdade mediante compromissos. Segundo o desembargador-relator, Cairo Ítalo França David, a conduta praticada não autoriza automaticamente o encarceramento, “visto que, dos elementos coligidos nos autos, entendo que assiste razão ao impetrante quando afirma que inexistem motivos palpáveis que autorizem a decretação da prisão preventiva do imputado”.
A prisão, no entender do relator, só deve ser ordenada em casos extremos e, se a sua necessidade não foi demonstrada de modo claro e inequívoco, não pode ser decretada.
O compromisso exigido do réu foi o de comparecimento mensal em juízo, até o dia 10 de cada mês, para informar e justificar atividades e comparecer a todos os atos do processo sempre que intimado a fazê-lo. Além disso, há proibição de mudar de endereço residencial e de se ausentar da cidade por mais de oito dias, ou do estado do Rio de Janeiro por qualquer prazo, sem autorização judicial.
A prisão ocorreu em abril, e o pedido de liberdade foi negado pelo juízo de plantão, que entendeu por converter a prisão em preventiva, sob o argumento de que “estando o réu solto, prejudicaria o bom andamento da instrução criminal” e “para impedir que delitos de tal espécie continuem a ser praticados, garantindo a ordem pública e a plena aplicação da lei penal”.
Posteriormente, o mesmo juiz, para quem o processo veio a ser distribuído, manteve a prisão sob os mesmos argumentos. A denúncia somente foi apresentada e recebida em maio, e o acusado esteve pela primeira vez diante de um juiz após quatro meses de prisão cautelar.
O advogado criminalista Rodrigo de Oliveira Ribeiro, impetrante do pedido de Habeas Corpus, alerta para a importância dessa decisão. “Em um contexto em que recente estudo demonstrou que 39% dos presos no estado do Rio de Janeiro são provisórios — ou seja, cerca de 14 mil cidadãos — e destes somente 37,5% foram condenados ao regime fechado ou ao semiaberto, prisão como cumprimento antecipado da pena é uma subversão da própria simbologia da pena. Caracteriza um desvio na execução penal logo de início”, diz.
“Em uma sociedade que convive com decapitações e uma superpopulação prisional já anunciada como equiparável à tortura, aceitar que cidadãos sejam postos no cárcere sem estar na presença de um juiz, e sem serem devidamente julgados, baseados em cláusulas gerais da lei, pode ser interpretado como uma perigosa aproximação da banalização do mal ou da desumanização do processo penal”, acrescenta o criminalista.
Segundo ele, o “clamor público” e a “ordem pública” são abstrações jurídicas contra as quais a defesa técnica não pode ter artifícios para afastar, porque uma tentativa reeditaria as medievais provas diabólicas. “Como provar ainda que, no futuro, uma determinada pessoa não irá delinquir? O Direito Penal deve punir apenas as condutas já realizadas e devidamente apuradas.”
A defesa do acusado argumentou, entre outros fundamentos, que nenhum dos crimes fora cometido com violência, coação ou grave ameaça, além de não haver nenhuma demonstração de que o acusado pudesse prejudicar o bom andamento do processo.
O advogado lembra doutrina de Aury Lopes Jr e Caio Paiva sobre a positivação em lei da ideia de que a prisão deve ser a última ratio das medidas cautelares. “A alteração do quadro legislativo provoque mudanças efetivas na prática judicial, especialmente em primeiro grau de jurisdição. Decisões como a da 5ª Câmara do Rio de Janeiro são responsáveis pelo cultivo, lento, de um nova prática. É o que precisamos. Para ontem”, alerta.
Revista Consultor Jurídico, 3 de setembro de 2014.
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