A delação premiada, ou colaboração recompensada, está no topo dos fenômenos judiciais penais brasileiros. Aparece principalmente no entreato da corrupção concernente a venda e aquisição de empresas de economia mista, existindo intermediários abiscoitando, no exterior, de acordo com a imprensa, porcentagens aprimoradas a título de comissões ou recompensas inominadas. Não se cuide de tais preliminares, porque os eventos concretizados nos noticiários jornalísticos, principalmente na antevéspera de eleições, significam hipóteses de trabalho entregues a competentíssimos advogados criminais, não devendo o cronista intrometer-se na faina alheia. Tal intromissão, aliás, constituiria típica infração ao Código de Ética reitor da advocacia. Assim, cuide-se da particularidade em abstrato, ou seja, das origens vetustas da delação premiada no Brasil, aquilo que os beleguins de baixa estirpe chamam de “caguetagem”, popularização de “alcaquetagem”, ou ainda “dedodurismo”. Aliás, a expressão “dedo duro” vem do latim, consagrando-a os romanos em relação a certo tipo de autoridades persecutoras. Não é bom atualizar tais vertentes. Ficam no passado, postas à disposição, inclusive, para quem queira aprofundar-se na arte de espionar e dedodurar os outros.
A delação premiada já estava nas Ordenações Filipinas. Passeou por lá, no Brasil-Colônia e no Império. O assunto é muito bem tratado por Lucas Andreucci da Veiga, em dissertação não publicada oferecida à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tiradentes foi morto e esquartejado após delação feita por Joaquim Silvério dos Reis, o Calabar. Houve instabilidade do instituto nos anos vindouros, aquilo ia e vinha, até que chegou a lei 9.807/99, decalcada, em outras palavras, em legislação italiana. No entretempo tivemos a lei 7.492/86, aparecendo também a lei 9.080/95. Cada qual contém destinação peculiar, não valendo a pena comentá-las por extenso em contribuição sintética, valendo a chegança da Lei 11.343/06, ligando-se a infrações inscritas em crimes ligados a tráfico de entorpecentes e afins.
Vem novamente Lucas Andreucci e fixa premissa relevante na cultíssima dissertação: “- No campo gramatical, isolando-se o vocábulo delação, destaca a Academia Brasileira de Letras o aspecto pejorativo incito ao praticante do ato: ‘1. Que delata. 2. Aquele que delata. Alcagüete.’. Há no vocábulo, em qualquer das hipóteses, indissociável carga negativa. E diferente não poderia ser, pois socialmente considerada como imoral a delação dos antigos companheiros”.
Evidentemente, poder-se-ia fazer digressão profunda sobre aspectos jurídicos e legislativos concernentes à delação (termo mais adequado que colaboração). Isso não interessa aqui. Tem realce, sim, a imoralidade do ato, ínsita até nas relações entre associações delinquenciais, embora haja dentro delas uma soturna forma de comportamento pseudamente ético. Por exemplo, designa-se alguém para executar um inimigo da comunidade criminosa. O executor tenta uma, duas, três e até quatro vezes, terminando por esfaquear a vítima em plena via pública, abrindo-lhe o ventre enquanto sentado sobre o corpo. Consuma o homicídio, porque é um “homem de caráter”. Até aí se admite tal forma satânica de cumprimento das obrigações, porque é espécie de ética ao contrário, em que a maldade mimetiza forma de bom comportamento. Aliás, no tempo em que o cronista começava a advogar na área criminal, já faz mais de meio século, escreveu peça de teatro, hoje guardada num lugar qualquer de seus arquivos implacáveis, chamada “Judas e Belzebu”. O traidor de Cristo vai para o inferno, enforcando-se e deixando caírem das algibeiras as trinta moedas tradicionais. Chegando lá, precisa provar que mau, pois se não o fizer, lá não pode ficar. Em síntese, descarnar bichano é conduta elogiável. Poupar a vida de criança recém-nascida é o pior dos pecados. Já se vê a inversão de valores, difícil até de raciocinar. Fica o enredo a quem quiser desenvolver o tema, mas sem escondimento da autoria, pois o escriba ficaria zangado. A delação premiada é mais ou menos isso, com uma diferença terrível: o Ministério Público, o Policial e o Juiz cooperam com o apostolo mefistofélico corrompido, numa trama diabólica sim, porque se irmanam no pecado do facínora, protegem-no, deambulam com o próprio, ouvem-lhe a confissão e o perdoam, como se fora o sinal da cruz de um velho e desavisado Rasputin. Que coisa feia! Que absurdo! Que imoralidade! Fazem mais: a habitualidade os conduz a uma obsessiva espionagem, à maneira do viciado em olhar o buraco da fechadura do quarto do casal, sabendo-se que isso já foi feito quando colocaram escutas nas celas ou acomodações reservadas a encontros íntimos dos presos com as mulheres, as mesmas que os consolavam ou serviam, conhecendo-se que são estas as oportunidades em que no acasalamento os segredos mais extremos são confiados. Isto é fato, não havendo quem possa negar a concretude, porque o escândalo foi posto na internet, para quem quisesse ver e ouvir. Há mais, nesta derivação do escorchamento da moral tradicional, pois a própria autoridade encarregada de manter padrões mínimos de imaculabilidade monta esquemas estáveis de espionagem eletrônica, mantendo-os, embora a teia seja publicamente denunciada. Para que o povo entende facilmente, mocinho é mocinho, bandido é bandido, anjo é anjo, demônio é satã, não havendo possibilidade de casamento entre eles. A descendência é monstruosa.
Revista Consultor Jurídico, 20 de setembro de 2014.
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