segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Você confia na sua memória? Infelizmente, o processo penal depende dela



A prova testemunhal é o meio de prova mais utilizado no processo penal brasileiro (especialmente na criminalidade clássica) e, ao mesmo tempo, o mais perigoso, manipulável e pouco confiável. Esse grave paradoxo agudiza a crise de confiança existente em torno do processo penal e do próprio ritual judiciário.
O processo penal acaba por depender, excessivamente, da ‘memória’ das testemunhas, desconsiderando o imenso perigo que isso encerra. Nossa memória é fragilíssima, manipulável, traiçoeira ao extremo. O mais interessante é ver como o processo acredita na ‘memória’ em relação a um fato ocorrido há muitos meses (senão até anos), sem perceber que no nosso dia a dia, muitas vezes, sequer somos capazes de recordar o que fizemos no dia anterior... Quantas vezes você não chegou em casa a noite e disse: eu não recordo o que eu fiz hoje de manhã!
Isso decorre da impossibilidade de armazenarmos tudo o que vemos e ouvimos em um dia, acrescido do fato de que vivemos em uma sociedade hiperacelerada, com milhares de estímulos visuais e informativos diários, que fazem com que a velocidade dos fatos não permita que eles se fixem na memória.
Não lembramos o que fizemos de manhã, mas acreditamos no depoimento de alguém, meses depois do fato.
Mas, como se não bastasse toda a complexidade que encerra a questão ‘memória’, ainda temos as manipulações (endógenas ou exógenas) e as defraudações da memória. Neste terreno, muito se tem falado das ‘falsas memórias’. É delas que nos ocuparemos neste breve espaço[i].
As falsas memórias se diferenciam da mentira, essencialmente, porque, nas primeiras, o agente crê honestamente no que está relatando, pois a sugestão é externa (ou interna, mas inconsciente), chegando a sofrer com isso. Já a mentira é um ato consciente, em que a pessoa tem noção[1] do seu espaço de criação e manipulação.
Ambos são perigosos para a credibilidade da prova testemunhal, mas as falsas memórias são mais graves, pois a testemunha ou vítima desliza no imaginário sem consciência disso. Daí por que é mais difícil identificar uma falsa memória do que uma mentira, ainda que ambas sejam extremamente prejudiciais ao processo.
É importante destacar que, diferentemente do que se poderia pensar, as imagens não são permanentemente retidas na memória[2] sob a forma de miniaturas ou microfilmes, tendo em vista que qualquer tipo de “cópia” geraria problemas de capacidade de armazenamento, devido à imensa gama de conhecimentos adquiridos ao longo da vida.
É o que explica António Damásio:[3] “as imagens não são armazenadas sob forma de fotografias de coisas, de acontecimentos, de palavras ou de frases. O cérebro não arquiva fotografias Polaroid de pessoas, objetos, paisagens; não armazena fitas magnéticas com música e fala; não armazena filmes de cenas de nossa vida; nem retém cartões com ‘deixas’ ou mensagens de teleprompter do tipo daquelas que ajudam os políticos a ganhar a vida. (...) Se o cérebro fosse uma biblioteca esgotaríamos suas prateleiras à semelhança do que acontece nas bibliotecas”.
Nessa complexidade insere‑se a questão da prova testemunhal e dos reconhecimentos, pois, em ambos os casos, tudo gira em torno da (falta de) “memória”.
Provavelmente a maior autoridade nessa questão das falsas memórias, na atualidade, seja Elizabeth Loftus,[4] cujo método revolucionou os estudos nessa área ao demonstrar a possibilidade de implantação das falsas memórias (procedimento de sugestão de falsa informação). Uma informação enganosa tem o potencial de criar uma memória falsa, afetando nossa recordação, e isso pode ocorrer até mesmo quando somos interrogados sugestivamente ou quando lemos e assistimos a diversas notícias sobre um fato ou evento de que tenhamos participado ou experimentado.
Em diversos experimentos, Loftus e seus pesquisadores demonstraram que é possível implantar uma falsa memória de um evento que nunca ocorreu. Mais do que mudar detalhes de uma memória — o que não representa grande complexidade —, a autora demonstrou que é possível criar inteiramente uma falsa memória (portanto, de um evento que nunca ocorreu). O estudo de “perdido no shopping” demonstra que é relativamente fácil implantar uma falsa memória de estar perdido, chegando ao preocupante extremo de implantar uma falsa memória de ter sido molestado sexualmente na infância.
No primeiro caso, foi montado um grupo de 24 indivíduos de idades variadas (de 18 a 53 anos), para tentarem recordar de eventos da infância que teriam sido contados aos pesquisadores por pais, irmãos e outros parentes mais velhos. Partindo daí, foi confeccionada uma brochura pelos pesquisadores, construindo um falso evento sobre um possível passeio ao shopping (que comprovadamente nunca ocorreu) onde o participante teria ficado perdido durante um período prolongado, incluindo choro, ajuda e consolo por uma mulher idosa e finalmente o reencontro com a família. Após lerem o material, foram submetidos a uma série de entrevistas para verificar o que recordavam.
Em suma, sintetizando a experiência de Loftus, ao final, 29% dos participantes lembram‑se tanto parcialmente como totalmente do falso evento construído para eles. Nas duas entrevistas seguintes, 25% continuaram afirmando que eles lembravam do evento fictício.
Cita a autora as pesquisas de Hyman, também sobre a implantação de falsas memórias (como a hospitalização à noite devido a uma febre alta e uma possível infecção de ouvido), em que, na primeira entrevista, nenhum participante recordou o evento falso, mas 20% disseram na segunda entrevista que se lembravam de algo sobre o evento falso. Um dos participantes chegou ao extremo de lembrar de um médico, uma enfermeira e de um amigo da igreja que veio visita‑lo. Tudo fruto da implantação de uma falsa memória.
Ainda mais apavorantes são algumas “técnicas terapêuticas” empregadas no trato de vítimas de delitos sexuais ocorridos na infância. O perigo está naquilo que Loftus chama de inflação da imaginação, em que através de interrogatórios ou terapias utiliza­‑se de exercícios imagéticos para encorajar os praticantes a imaginar eventos infantis como forma de recuperar memórias supostamente escondidas. As consequências de tais “técnicas” (costumeiramente empregadas) são trágicas.
A implantação da falsa memória é potencializada quando um membro da família afirma que o remoto incidente aconteceu. Isso foi testado, entre outros, no caso “perdidos no shopping” e demonstrou que a confirmação do evento por uma pessoa é uma técnica poderosa para induzir a uma falsa memória.
Citando um estudo de Kassin e College, Elizabeth Loftus explica a grande influência que exerce uma falsa evidência na implantação de uma falsa memória. Foram investigadas as reações de indivíduos inocentes acusados de terem danificado um computador apertando uma tecla errada. Os participantes inocentes inicialmente negaram as acusações. Contudo, quando uma pessoa associada ao experimento disse que havia os visto executarem a ação, muitos participantes assinaram a confissão, absorvendo a culpa pelo ato. Mais do que aceitarem a culpa por um crime que não cometeram, chegaram a desenvolver recordações para apoiar esse sentimento de culpa.
A confusão sobre a origem da informação é um poderoso indutor da criação de falsas memórias, e isso ocorre quando falsas recordações são construídas combinando‑se recordações verdadeiras como conteúdo das sugestões recebidas de outros, explica a autora.
Mas é nos crimes sexuais o terreno mais perigoso da prova testemunhal (e, claro, da palavra da vítima), pois é mais fértil para implantação de uma falsa memória.
Os profissionais de saúde mental (psicólogos, psiquiatras, analistas, terapeutas etc.) têm um poder imenso de influenciar e induzir as recordações e eventos traumáticos. Cita a autora que, em 1986, Nadean Cool, auxiliar de enfermagem de Wisconsin, consultou um psiquiatra porque não conseguia lidar com as consequências de um acidente sofrido pela filha. No tratamento foram utilizados pelo terapeuta técnicas de sugestão, hipnose e outras. Após algumas sessões, explica Loftus, “Nadean se convenceu de que tinha sido usada na infância por uma seita satânica que a violentara, a obrigara a manter relações sexuais com animais e a forçara a assistir ao assassinato de um amigo de 8 anos. O psiquiatra acabou por fazê‑la acreditar que ela tinha mais de 120 personalidades em decorrência dos abusos sexuais e da violência sofridos quando criança”.
Isso dá uma dimensão do que é possível criar em termos de falsas memórias e das graves consequências penais e processuais que elas podem gerar. No caso narrado pela autora, após compreender o que estava acontecendo, a vítima processou o psiquiatra e, em março de 1997, após cinco semanas de julgamento, o caso foi resolvido fora do tribunal, através do pagamento de uma indenização de US$ 2,4 milhões.
Situação similar, também narrada por Loftus, foi documentada em 1992, quando um terapeuta ajudou Beth Rutherford, então com 22 anos, a “recordar” que entre os 7 e os 14 anos havia sido violentada com regularidade pelo pai (um pastor), inclusive com a ajuda da mãe. Recordou também, a partir das técnicas de induzimento, que havia ficado grávida duas vezes, tendo realizado sozinha os abortos, utilizando um cabide. Finalmente, exames médicos demonstraram que a jovem ainda era virgem e que nunca havia engravidado. Ela processou o terapeuta e, em 1996, recebeu US$ 1 milhão de indenização.
Casos assim ocorrem com regularidade,[5] mas dificilmente são documentados e desmascarados. Diferenciar lembranças verdadeiras de falsas é sempre muito difícil, ocorrendo apenas quando se consegue demonstrar que os fatos contradizem às (falsas) lembranças. Mas, e nos demais casos? As consequências são gravíssimas.
No Brasil, ainda que não suficientemente estudado, temos o paradigmático caso Escola Base em São Paulo, que, para além de demonstrar o despreparo de nossa polícia judiciária, colocou na agenda pública a discussão sobre o papel da mídia, sua postura (a)ética e irresponsável, bem como a mercantilização da violência e do medo. Claro que muito ainda deve‑se evoluir nessas duas dimensões (prepa­ro policial e responsabilidade midiática).
Em 1994,[6] duas mães denunciam que seus filhos participavam de orgias sexuais organizadas pelos donos da Escola de Educação Infantil Base, localizada no bairro da Aclimação, em São Paulo. Uma das mães disse que seu filho de 4 anos de idade lhe teria contado que havia tirado fotos em uma cama redonda, que uma mulher adulta teria deitado nua sobre ele e lhe beijado.
A fantasia inicial toma contornos de rede de pedofilia e, após um laudo não conclusivo sobre a violência sexual que o menino teria sofrido (depois ficou demonstrado que tudo não passou de problemas intestinais), é expedido um mandado de busca e apreensão que foi cumprido com irresponsável publicidade por parte da polícia. Era o início de uma longa tragédia a que foram submetidos os donos da escola infantil.
A notícia correu o país e foi explorada de forma irresponsável (senão criminosa) por parte dos meios de comunicação, encontrando no imaginário coletivo um terreno fértil para se alastrar, até porque, num país onde a cultura do medo é alimentada diariamente, a possibilidade de que nossos filhos estejam sendo vítimas de abuso sexual na escola é o ápice do terror.
Chegou‑se ao extremo de, em 31 de março, um telejornal de penetração nacional noticiar o consumo de drogas e a possibilidade de contágio com o vírus da Aids. Manchetes sensacionalistas inundavam o País.
Recorda Domenici[7] títulos como: “Kombi era motel na escolinha do sexo”, “Perua escolar levava crianças para orgia no maternal do sexo” e “Exame procura Aids nos alunos da escolinha do sexo”. A revista Veja publicou em 6 de abril: “Uma escola de horrores”.
Finalmente, em junho de 1994, após o delegado ter sido afastado, o inquérito policial foi arquivado, pois nada foi demonstrado. Ações de indenização contra o estado de São Paulo (pela absurda atuação policial) e também contra diversos jornais e emissoras de televisão ainda tramitam nos tribunais superiores.
Para além dos graves erros cometidos pela polícia e pelos principais meios de comunicação do País, evidencia‑se a implantação de falsas memórias nas duas crianças e também a manipulação dos depoimentos.
Impressiona a forma como foram conduzidos os depoimentos e a verdadeira indução ali operada. As perguntas eram fechadas e induziam as respostas, quase sempre dadas pela criança (recordemos, com 4 anos de idade) através de monossílabos (sim e não) ou, ainda, respostas que consistiam na mera repetição da própria pergunta.
Naquele contexto, onde a indução era constante, e a pressão imensa, é elementar que as duas crianças sob holofote fantasiavam e também buscavam corres­ponder às expectativas criadas pelos adultos e pelo contexto.
O caldo midiático criado e a desastrosa condução da investigação policial foram fundamentais para a inflação da imaginação das crianças e até das duas mães (sendo que uma delas era a principal fonte de tudo). A forma como foi conduzida a investigação policial (especialmente na oitiva das crianças envolvidas) serviu como um conjunto de exercícios imagéticos para alimentar as supostas vítimas. As consequências foram trágicas.
Enfim, diariamente milhares de julgamentos são feitos a partir da prova testemunhal, muitos deles com provas maculadas pelas defraudações da memória. Por isso, existe uma alerta mundial em relação a credibilidade dos depoimentos que precisa ser discutido no Brasil, para que busquemos instrumentos de ‘redução de danos’, como as técnicas de entrevista cognitiva; a preocupação (e consciência) por parte dos agentes policiais (e também judiciais) de não fazer ‘induzimentos’; um melhor treinamento dos policiais que tomam as primeiras declarações de vítimas e testemunhas presenciais; uma análise mais ampla do contexto do caso penal, para identificar fatores que possam gerar a defraudação; enfim, uma série de cautelas que permitam reduzir o dano de termos um falso depoimento, uma falsa confissão e também um falso reconhecimento. Na próxima coluna continuarei tratando desse tema, focando nos ‘falsos reconhecimentos pessoais’. 

[1] Também se deve compreender que a falsa memória pode nascer de uma confusão mental, de uma informação inicial verdadeira, mas que sofre uma poluição em decorrência de um processo de mistura com o imaginário, gerando uma confusão de dados por parte do sujeito, que passa a tomar como verdadeiro o fato distorcido. 
[2] Tratando da “ação e esquecimento” e sua relevância penal nos casos de omissão de atividade devida, JUA­REZ TAVARES traz importantes lições sobre a memorização declarativa e a memorização procedimental, bem como dos processos de esquecimento. Sobre o tema, consulte­‑se a obra Direito Penal da Negligência – Uma Contribuição à Teoria do Crime Culposo. 2. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003, p. 221­‑224. 
[3] O Erro de Descartes, p. 128­‑129. 
[4]  Professora de Psicologia e Direito na Universidade de Washington, é Ph.D em Psicologia, com dezenas de trabalhos publicados sobre o tema. Nessa breve apresentação, utilizamos os seguintes trabalhos:
— “Criando falsas memórias.” Artigo publicado na Scientific American em setembro de 1997 (tradução pode ser obtida no site www.geocities.com/athens/acropolis/6634/falsamemoria.htm). – As falsas memórias. Revista Viver, Mente & Cérebro.
[5] Entre outros, sugerimos o estudo dos seguintes casos:
— Caso Frank Lee Smith, condenado à morte nos Estados Unidos pelo homicídio de Sandra Whitehead;
— Caso MacMartin, ocorrido nos anos 80 no subúrbio de Los Angeles, onde os empregados da pré­‑escola Virginia MacMartin foram acusados de violentar sexualmente um menino de 2 anos e meio;
— Caso Friedman, também ocorrido nos anos 80 nos Estados Unidos, dando origem ao documentário Capturing the Friedmans, de 2003;
— Caso Orteu, considerado o “Chernobyl Judiciário” francês, cujo processo iniciou em 2000;
— Caso da Casa Pia, um internato de Lisboa, cujas notícias iniciam em 2002, divulgando que crianças e adolescentes que lá residiam haviam sofrido abusos sexuais por parte de pessoas influentes e até um ex­‑ministro português.
[6] Sobre o tema, consulte­‑se o trabalho de THIAGO DOMENICI, no site http://escola.base.sites.uol.com.br/reus.html e também o videodocumentário O Caso da Escola Base. Imprescindível, ainda, a leitura da obra Caso Escola Base: os abusos da imprensa, do jornalista ALEX RIBEIRO. 
[7] http://escola.base.sites.uol.com.br/reus.html. 
[i] Sobre o tema, recomendamos a leitura da nossa obra “Direito Processual Penal”, 11ª edição, Editora Saraiva, 2014, onde fazemos uma análise mais ampla e aprofundada da questão. 

 é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Revista Consultor Jurídico, 19 de setembro de 2014.

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