terça-feira, 5 de maio de 2009

Testemunha “sem rosto” e o direito ao confronto

Alexandre Morais da Rosa

Juiz de Direito


Justiça Estadual de Santa Catarina
1ª Vara Criminal de Joinville
Ação Penal nº 038.08.028432-6

(...)

É o breve relatório.

1. Trato de ação penal pública incondicionada deflagrada pelo Ministério Público, a fim de se apurar os crimes de homicídios qualificados, praticados, em tese, por D.F.A., R.G.P. e G.H.F.

2. O grande desafio democrático contemporâneo é o de se garantir um processo como procedimento em contraditório (MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um Processo Penal Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008) em que as restrições ao “direito ao confronto”, materializadoras do “devido processo legal substantivo” (MARTEL, Letícia de Campos Velho. Devido Processo Legal Substantivo: Razão Abstrata, Função e Característias de Aplicabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005), sejam baseadas em fundamentos legais e compatíveis com a Constituição. Especificamente sobre o “Direito ao Confronto” Diogo Rudge Malan é explícito (Direito ao Confronto no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 206): “É direito fundamental indissociável de qualquer noção civilizada de devido processo penal, motivo pelo qual ele deve ser levado a sério pelo Estado.” E isto não impede que em situações específicas, como no caso de temor, violência, desde que justificadamente motivada, possa o acusado ser retirado da sala de audiências. Entretanto, no exercício de seu pleno direito de defesa, especialmente o de impugnar a validade do testemunho, não se pode impedir que tenha conhecimento de quem é a testemunha, até para poder a contraditar, aponta Antônio Scarance Fernandes: (Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 2002, p. 77): “A presença do acusado no momento da produção da prova testemunhal é essencial, sendo exigência decorrente do princípio constitucional da ampla defesa. Estando na audiência, pode ele auxiliar o advogado nas reperguntas a serem dirigidas à testemunha ouvida.” Exceção há no caso de testemunha sob a égide da Lei nº 9.807/99, situação diversa do caso presente. Para que a vítima e/ou testemunha seja colocada sob o pálio da proteção é necessário que o Conselho Deliberativo (art. 4º) tenha aceito o pleito (art. 5º), com as medidas previstas no art. 7º, dentre elas “IV – preservação da identidade, imagem e dados pessoais.” No caso, a testemunha “X” não se encontra sob o regime de proteção preconizado legalmente! De qualquer sorte, mesmo nesta hipótese, a Lei de Proteção a Testemunhas não estabelece o procedimento específico para a testemunha com reserva de identidade prestar depoimento em Juízo, lacuna legislativa essa que, como bem aponta Diogo Rudge Malan, impede tal produção probatória, à míngua de procedimento tipificado em lei. Lembre-se mais uma vez que em processo penal incide o princípio da legalidade. Para preencher esta lacuna legislativa, entretanto, a Corregedoria-Geral do TJSC editou o Provimento n. 14/03, sem autorização constitucional para tanto, uma vez que a competência legislativa para disciplinar atos processuais penais (CR, art. 22, I). Não podem os Tribunais, por Regimento ou mesmo Provimento, modificar, completar, regulamentar, lacunas legislativas, por violação ao Devido Processo Legislativo (CAT­TO­NI, Marcelo. Devido Processo Legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.). Assim, declaro inconstitucional o Provimento n. 14/03 da CGJ no caso presente e, por via de consequência, desconsidero o depoimento da indigitada testemunha sem nome, rosto ou identificação. Por fim, ainda com Diogo Rudge Malan deve ser marcado que: “Prepondera nos países da família jurídica do common law tendência no sentido de se repudiar a admissão do anonimato testemunhal em juízo, à luz do right of con­fron­tation. Por exemplo, a Suprema Corte norte-americana tem jurisprudência consolidada nesse sentido, desde a década de 1930 (v.G. Casos Alford v. United States e Smith v Ili­nois)” (p. 142).

3. Ainda que válido, como acontece na legislação colombiana, com expressa disposição legal para sua realização, não pode ser o único elemento probatório, como bem aponta Fauzi Hassan Choukr (Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 124-125). (...) Destaque-se, por básico, que a pseudoprova produzida no “inquérito policial” somente pode servir para análise da condição da ação (GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. “Justa Causa no Processo Penal: Conceito e Natureza Jurídica”. In: BONATO, Gilson (org.). Garantias Constitucionais e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 199-200), ou seja, dos elementos necessários para o juízo de admissibilidade positivo da ação penal. No mais, não há qualquer possibilidade de valoração democrática, no Processo Penal constitucionalizado, por ser ela desprovida das garantias processuais. A recente reforma do CPP, dando nova redação ao art. 155, ao indicar a possibilidade de seu uso é flagrantemente inconstitucional (MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um Processo Penal Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 83-97; BARROS, Flaviane de Magalhães. (Re)Forma do Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 23-27; GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) Do Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, 23-36). É que quando de sua produção ainda não existia acusação formalizada, despreza o defensor — além de alguns ainda negarem a publicidade dos atos, embora sumulada a situação — e, ademais, viola a garantia de que seja produzida em face de juiz imparcial, sob contraditório (PIZA, Evandro. “Dançando no escuro: apontamentos sobre a obra de Alessandro Baratta, o sistema penal e a justiça”. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de (org.). Verso e Reverso do Controle Penal: (Des) Aprisionando a Sociedade da Cultura Punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, p. 106-108.). Decorrência direta do princípio da publicidade é a conclusão de somente as provas produzidas (significantes) em face do contraditório é que podem ser levadas em consideração nos debates e também na decisão judicial. Os elementos indiciários não devem adentrar validamente no debate porque, por evidente, não havia acusação quando colhida, violando, dentre outros, o princípio da publicidade. Logo, as declarações prestadas naquele momento são — para se utilizar o estatuto probatório italiano, perfeitamente aplicável ao brasileiro —, absolutamente inutilizáveis, conforme lição de Paolo Tonini (A Prova no Processo Penal Italiano. Trad. Alexandra Martins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 76): “O termo inutilizabilidade descreve dois aspectos do mesmo fenômeno. Por um lado, indica o ‘vício’ que pode conter um ato ou um documento; por outro lado, ilustra o ‘regime jurídico’ ao qual o ato viciado é submetido, ou seja, a não possibilidade de ser utilizado como fundamento de uma decisão do juiz. A inutilizabilidade é um tipo de invalidade que tem a característica de atingir não o ato em si mas o seu ‘valor probatório’. O ato pode ser válido do ponto de vista formal (por exemplo, não é eivado de nulidade), mas é atingido em seu aspecto substancial, pois a inu­ti­li­za­bilidade o impede de produzir o seu efeito principal, qual seja, servir de fundamento para a decisão do juiz.” No Processo Penal democrático, o conteúdo do Inquérito Policial está maculado pela ausência de contraditório, sendo utilizável exclusivamente para análise das questões prévias (condições da ação e pressupostos processuais aplicáveis — MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. “A natureza cautelar da decisão de arquivamento do Inquérito Policial”. In: Revista de Processo, São Paulo, n. 70, p. 49-58, 1993). Enfim, é absolutamente antidemocrática a utilização dos elementos do Inquérito Policial para efeito de se condenar alguém no Estado Democrático de Direito. Alguns dirão que a Reforma assim preconizou e não custa lembrar que é justamente para isto que existem juízes: fazer controle difuso de constitucionalidade. Claro que se for consultar Damásio, Mi­rabete e Capez, todos dirão da validade das declarações do Inquérito, pois ainda não fizeram o giro democrático que a Constituição de 1988 preconiza!

4. A materialidade dos delitos consumados encontra-se demonstrada pelo auto de exame cadavérico de f. 04 destes autos, e f. 10 dos autos em apenso. Da mesma forma, a materialidade do delito tentado está estampada nas declarações da vítima (f. 36).

5. Já quanto à autoria, analisando a prova válida, pois a única testemunha (sic) foi excluída do campo da validade, sobram apenas os interrogatórios dos acusados. Com efeito, os acusados D. e R. negaram a participação no evento morte (107-109; 117-119), enquanto o acusado G., em seu interrogatório (f. 110/112), afirmou: “que J. e J. vieram em direção ao interrogando; que atirou nos dois; que eles não tiveram tempo de reagir; que acertou na cabeça de J. e J. na orelha; que atirou porque estava receoso, uma vez que os dois se juntaram e vieram em sua direção; (...) que atirou em V. porque estava receoso já que V. sabia que havia atirado em J. e J.; (...)”. Isto é o que há de prova capaz de submeter o feito ao julgamento do Tribunal do Júri.

6. A sentença de pronúncia nos termos do art. 413 do Código de Processo Penal, deve apontar o convencimento da materialidade e indícios suficientes da autoria ou de participação. A materialidade já foi apontada como existente. A autoria, pela prova válida, é exclusivamente na pessoa do acusado G., o qual, aliás, isenta os demais da participação no evento. Não há elemento probatório aderido validamente aos autos que justifique o acolhimento da acusação quanto aos demais.

7. As qualificadoras não restaram demonstradas na sua totalidade nesta fase processual. Reafirmo que da prova válida não restou apontada a configuração da qualificadora do motivo torpe na ação em que foram vítimas J. e J., nem do recurso que tornasse impossível a defesa, até porque dois não foram pronunciados. Na ação em que V. restou colhido, a qualificadora do inciso V, do § 2º, do art. 121, do CP, procede. O próprio acusado reconhece que efetuou os disparos “em V. porque estava receoso já que V. sabia que havia atirado em J. e J.;” sem que a prova entranhada deixe evidenciada as demais qualificadoras, cuja carga probatória, claro, era da acusação.

8. De outro lado, a defesa de G. requereu o reconhecimento da excludente de ilicitude da legítima defesa própria, uma vez que teria “grande desavença pessoal” com as vítimas, situação que não foi comprovada nesta fase processual e deve ir para plenário. Já se fixou: “A pronúncia é um mero juízo de admissibilidade da acusação, de modo que o feito deve ser remetido a julgamento pelo Conselho de Sentença quando estiver comprovada a materialidade do crime e houver indícios suficientes da autoria” (Recurso Criminal n. 2008.035952-9, relator des. Moacyr de Moraes Lima Filho). (...)

9. Sendo assim, em face da comprovada materialidade e indícios de autoria do delito por parte de G. e, ainda, a ausência de provas seguras e inequívocas sobre a existência da legítima defesa que excluiria a ilicitude de ação delituosa praticada pelo acusado G., torna-se mais prudente remeter a apreciação da matéria para o corpo de jurados do Tribunal do Júri, adotando-se o princípio in dubio pro societate.

Por tais razões, julgo parcialmente procedente a denúncia para o fim de: a) pronunciar o acusado G.H.F, qualificado nos autos, como incurso na sanção prevista nos arts. art. 121, caput; art. 121, caput, c/c art. 14, II e art. 121, § 2º, V, todos do Código Penal, submetendo-o a julgamento pelo Tribunal do Júri desta Comarca. B) impronunciar os acusados D.F.A. e R.G.P. , nos termos do art. 414 do CPP.

Nego ao acusado G.H.F. o direito de recorrer em liberdade, uma vez que pronunciado em homicídio qualificado, bem assim por mais dois simples, um na forma tentada, agravada pela sua situação pessoal (f. 149-151) e pela demonstração da reiteração das práticas dolosas contra vida contra as vítimas, sustentando-se os requisitos da preventiva, especialmente a ordem pública, no caso atacada pelas circunstâncias e consequências da ação.

Expeça-se alvará de soltura em favor de D.F.A. se por al não estiver preso, atentando-se que há prisão decretada nos autos nº 038.08.018933-1 e 038.08.0426694-4.

Transitada em julgado, cumpra-se o art. 422 do CPP.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Joinville (SC), 31 de março de 2009.

Alexandre Morais da Rosa
Juiz de Direito


Boletim IBCCRIM nº 198 - Maio / 2009

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog