segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Artigo: Procedimento acusatório democrático para todas os crimes

Em 1988 a Constituição federal estabeleceu o Estado Democrático de Direito para todo o território da República Federativa do Brasil (Lei Maior no tempo e no espaço); vale dizer que todas as leis criminais em conflito com o novo sistema acusatório encontram-se revogadas, tácita e expressamente.

Desencontro entre dispositivos da Carta Magna com normas ordinárias exemplo: código penal, código processual penal, leis penais extravagantes -, configura inconstitucionalidade, devendo ser declarada a constitucionalidade ou argüido descumprimento de preceito fundamental (ADin, ADcon Lei n.º 9.868/99, e ADPF - Lei n.º 9.882/99).

O Dec- Lei n.º 3.689/41,em vigor desde 1942, é nitidamente inquisitivo, tanto na fase da investigação policial, como na instrução criminal em juízo. A sua própria exposição de motivos é contundente não esconde a linha do sistema antidemocrático, com afrontamentos às garantias judiciais fundamentais da cidadania, no tocante a dignidade da pessoa presa ou acusada de crime.

Não há que se falar em recepção de normas, quando se trata de grave atentado aos ditames e princípios reitores de Direitos Humanos assegurados na Carta Magna.

A Constituição federal somente recepciona dispositivos legais perfeitamente ajustados e coadunados com o espírito e regime por ela adotado; do contrário expulsa, repugna e afasta.

O Código de Processo Penal entrou em vigor no chamado "Estado Novo" (época de ditadura civil, do estado opressivo, etc.), assim seu espírito foi e era outro, razão pela qual a Constituição federal de 1988 não poderia tê-lo recepcionado.

Na verdade e na correta interpretação jurídica, não recepcionou, foi a doutrina e a jurisprudência pátria ortodoxa, dominante e acomodada que insistiu e insiste ainda em dar guarida ao sistema absolutista, através de um discurso demagógico, hipócrita e político de baixíssimo nível científico, ao criar a expressão "sistema processual misto", entre outras aberrações.

Afirma Jacinto N. de Mirada Coutinho, não existe sistema processual misto, ou é inquisitivo ou é acusatório. O sistema misto que ora se apresenta inquisitivo ora acusatório possui amparo no "jeitinho brasileiro", intermediado por "juristas" que pouco entendem sobre processo penal democrático, ou possuem um saber penal limitado, na expressão de Raul Zaffaroni.

Alberto Binder e Julio Maier ensinam com propriedade o direito processual democrático e sobre o sistema acusatório-oral(ver "Estratégias para a Reforma da Justiça Penal", Revista Jurisprudência Criminal Brasileira, Ed. Juruá - Curitiba, vol. 33, 1994, trad. MAIA NETO, Cândido Furtado; e "Reformas Procesales en América Latina"; Ed. CPU; "Situación y Políticas Judiciales en América Latina" Ed. Univ. Diego Portales; Chile, 1993, entre outras).

Dizer que o sistema processual penal brasileiro é misto e que estão assegurados os direitos fundamentais dos acusados, é igual tentar justificar às crianças a existência do "papai noel", "coelhinho da páscoa", "do saci pererê", etc.

Aqueles que admitem a existência do sistema misto (inqusitivo-acusatório) são falsos defensores do Estado Democrático, cujo discurso autoritário velado, somente interessa a repressão desenfreada, ao Estado de Polícia, ao arbítrio e aos abusos de poder, alimentando anseios, desejos, posturas que impedem o pleno exercício das garantias individuais e fundamentais processuais, caracterizando crime contra os Direitos Humanos, de lesa humanidade, de lesa democracia e lesa cidadania.

Após a vigência da lei n.º 11.719/2008 fica claro que para todos os crimes vigora o sistema acusatório democrático. Esta norma infraconstitucional se ajustou aos princípios de Direitos Humanos, dentre eles: ampla defesa, contraditório, direito ao silêncio, direito de não produzir provas contra si, ônus probandi do Ministério Público, transparência, legalidade, tipicidade-taxatividade, juízo natural, imparcialidade, no judez ex officio, individualização da acusação e da pena, presunção de inocência, etc. (art 5.º CF/88).

O processo penal rege-se em todo território nacional, ressalvados os tratados, as convenções e as regras de direito internacional, admitindo-se os princípios gerais de direito (art 1.º e 3.º do CPP), sendo que as garantias judiciais expressas da Carta Magna não excluem outras decorrentes do regime - democrático - e dos princípios adotados (§ 2.º art 5.º CF).

Devemos prestar total respeito aos instrumentos internacionais de Direitos Humanos de aceitação tácita universal e aqueles aderidos e ratificados pelo governo brasileiro, em observância ao princípio da hierarquia vertical das normas e teoria geral do ordenamento jurídico.

Apersecução penal deve trilhar os lineamentos da lei n.º 11.719/2008, restando revogado o ius perequendi distinto estabelecido nas leis processuais-penais extravagantes.

Têm-se pós lei n.º 11.719/2008, a preeminência do princípio da lex generalis e lex posteriori, revogat lex anteriori. Não sendo, neste caso, aplicável o princípio da lex especiali revogat lex generali.

É a Lei Maior que estabelece o sistema processual acusatório, e todas as leis e procedimentos devem seguir a Norma Geral e Maior, em respeito ao princípio de equidade, da proporcionalidade e de humanidade; prevalecendo os princípios lex generali revogat lex speciali e lex favorábilis, visto que o interrogatório do réu se dá ao final da instrução criminal.

Ademais, pelo princípio da razoabilidade de tempo do processo (inc. lxxviii EC n.º 45/04) a fim de evitar constrangimento ilegal ou excesso de prazo para o término da instrução, impera o princípio da liberdade e da presunção de inocência, em nome do ius libertatis, se preso se encontrar o réu deve ser in continenti posto em liberdade provisória, salvo necessidade de decretação de prisão preventiva (art. 311 e 312 CPP).

No processo criminal aplica-se a lei vigente - tempus regit actum -, sem prejuízo dos atos já realizados (art. 2.º CPP), podendo ser adequados e refeitos. O princípio da lei mais favorável ao réu com relação ao ato a realizar-se, impera a analogia in bonam partem e as regras de direito comparado, o princípio do mesmo grau de hierarquia e a necessidade de congruência entre normas de caráter penal material e formal, sem olvidarmos da retroatividade e da ultra-atividade da lei mais favorável, sempre quando a mudança do rito procedimental interferir diretamente na forma de julgamento, ou quando mudar radicalmente, ou seja, do sistema escrito para o sistema oral, ou do sistema inquisitivo ao acusatório (art. 5.º xl CF/88 cc. art. 2.º do Código Penal).

A lei n.º 11.719/2008 é a última regra infra-constitucional geral que se adequou a Carta Magna, as demais normas ou ritos carecem de legitimidade, legalidade e de constitucionalidade.

Para citar alguns exemplos, a lei n.º 4.737/65 dos crimes eleitorais, a lei n.º 11.343/2006 de drogas; lei n.º 11.340/06 art. 13 - "Maria da Penha"; tiveram seus procedimentos revogados, por força dos princípios da necessidade de unidade do sistema processual-penal, legalidade e isonomia da lei ante os tribunais e juízos da nação.

Aplica-se para todos os crimes e efeitos o rito de processamento e julgamento expresso na lei n.º 11.719/2008, aos processos especiais referentes crimes falimentares ou fraudes no comércio (art. 503/512 CPP); crimes contra a propriedade intelectual (art. 524/523 CPP); crimes contra a honra (art. 519/523, com exceção à lei n.º 5.250/67, onde o réu somente será interrogado antes das testemunhas se requerer ao juiz - art. 45, III); crimes de responsabilidade de funcionários públicos (art. 513/518 CPP) inclusive quanto a prerrogativa de função cuja competência é do Supremo Tribunal Federal ou dos Tribunais de Justiça dos Estados (art. 556/560 CPP), onde o servidor ou autoridade acusada possui o direito de quedar silente na apresentação de defesa prévia e somente ao final declarar.

Até no processo administrativo deve-se primeiro proceder a oitiva do acusador (vítima-ofendido), depois as testemunhas de acusação, de defesa e somente na seqüência, por último o acusado-servidor público.

Inclusive o procedimento das infrações penais de competência da Justiça da Infância e Juventude (Lei nº 8.069/90 - ECA, art. 4.º cc. art. 227 CF/88), como prioridade de respeito ainda maior à dignidade dos adolescentes (art. 27 CP/84 e art. 228 CF/88), deve seguir o rito da Lei n.º 11.719/2008, as normas da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU/ 1989), e as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing ONU/1985).

E para o julgamento dos delitos militares, propriamente ditos, o rito previsto no Código de Processo Penal Militar (Dec-lei n.º 1002/1969), também deve adaptar-se aos lineamentos da lei n.º 11.719/2008, para a efetivação do processo acusatório democrático e constitucional, em observância ao princípio de audiência una e concentrada, pessoalidade e juízo natural, instrutor e sentenciante; revogado o § 2.º do art 1.º do CPPM.

Para os crimes dolosos contra a vida, vigora o expresso na lei n.º 11.689/2008, que adotou o sistema acusatório constitucional. Já quanto ao rito previsto no Juizado Especial Criminal (Leis n.ºS 9.099/95, 10.259/01 e 11.313/06), é a uma única exceção como preliminar,por ser procedimento referente a infração de pequeno potencial ofensivo, cuja transação e acordo depende da aceitação de vontade do acusado.

Na hipótese de não concordância, o feito por obrigatoriedade é transferido à Justiça Comum, seguindo então o trâmite previsto na lei n.º 11.719/2008. O rito sumário que reza o artigo 531 à 540 já tinha sido revogado anteriormente.

O processo de restauração de autos extraviados continua vigente conforme art. 541 usque 548 do Código de Processo Penal. O sistema acusatório constitucional democrático serve como regra geral à todos os ramos do direito e procedimentos referentes as leis especiais ou extravagantes; se assim não for entendido, ao contrário, pode configurar nulidade processual em fulcro ao contido no artigo 564, IV do Código de Processo Penal, face a omissão de formalidade que constitui elemento essencial ao ato, considerando que influencia substancialmente na decisão da causa (art. 566), e o mínimo de desrespeito às garantias judiciais implica em indevido processo. E a argüição de nulidade se dá no primeiro e exato momento do vício à ser sanado, sendo que o contido no inciso II do artigo 500 foi revogado pelo disposto no artigo 400 da Lei n.º 11.719/2008.

O interrogatório do réu no sistema acusatório fica reservado ao final da instrução, é a garantia judicial de não produzir provas contra sua pessoa (art. 8.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto de San José, OEA-1969; e art.14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ONU-1966), e direito de ficar em silêncio (inc.lxiii art. 5.º CF/88); especialmente porque o interrogatório não é mais considerado a "rainha das provas", como no hediondo passado histórico, hoje nos tempos modernos a confissão é atenuante (art. 65, III "d" CP), e torturar alguém para confessar ou declarar sua culpa configura crime gravíssimo contra os Direitos Humanos (Lei n.º 9.455/97).

A lei n.º 11.719/2008 preserva a possibilidade expressa no artigo 196 do Código de Processo Penal, para novo interrogatório do réu, a qualquer tempo. Assim sendo, na hipótese de ato já realizado, antes da oitiva das testemunhas, poderá ser anulado ou refeito ao final da instrução criminal.

A lei n.º 11.719/2008 objetiva a efetivação do Estado de Direitos Humanos, respeito à dignidade e à cidadania, o devido processo legal, e especialmente o prestígio da Justiça.


Cândido Furtado Maia Neto é professor pesquisador e de pós-graduação (especialização e mestrado). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Conpedi). Pós doutor em Direito. mestre em Ciências Penais e Criminológicas. Expert em Direitos Humanos (Consultor Internacional das Nações Unidas Missão Minugua 1995-96). Promotor de Justiça de Foz do Iguaçu-PR. Membro da Association Internacionale de Droit Pénal (AIDP). candidomaia@uol.com.br www.direitoshumanos.pro.br

O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 30/11/2008.

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