No marco dos 20 anos da Constituição Cidadã que reconheceu significativo rol de direitos do indivíduo em face do Estado, a percepção que ainda prevalece no tecido social é do insuficiente avanço na efetivação dos direitos sociais e da constância maior do que aceitável num regime democrático de violações aos direitos humanos.
Passadas duas décadas, a sociedade brasileira ainda não alcançou ultrapassar a fronteira entre a previsão formal de direitos e a construção palpável de instrumentos efetivos e sólidos de garantia à observância destes direitos.
Neste cenário, a precária estruturação da Defensoria Pública como uma realidade nacional é exemplo contundente desta dívida do poder público em relação à nossa já amadurecida Carta Constitucional. Dívida que está no âmago da dificuldade que se enfrenta na universalização de direitos formalmente previstos para todos, sem distinção.
Esta desigualdade no gozo de direitos tem se sentido de maneira aguda na persecução penal, o que recentemente vem ganhando largo espaço nos veículos de comunicação. A ausência de defesa efetiva que atinge de forma desigual os economicamente necessitados, em razão da insuficiência da Defensoria Pública no aparato estatal, tem inclusive levado a mídia a enxergar a existência de privilégios na fruição legítima de direitos constitucionalmente previstos por aqueles mais abastados.
Na verdade, estamos tão pouco acostumados com a imagem do cidadão excluído no exercício de seus direitos que, por vezes — e mais freqüentemente na área criminal —, caímos na armadilha de buscar produzir a igualdade às avessas, ao invés de externarmos indignação por aqueles que não acessam as palavras insculpidas pela tinta do constituinte.
De fato, os números da realidade de um sistema de justiça que reproduz, no seu interior, a desigualdade social e econômica, parecem não impressionar. A grande diferença apresentada nos quatro cantos do país entre o número de juízes, promotores e defensores é quase encarada com naturalidade. Não se vê, por exemplo, profunda indignação com os dados da execução penal no Estado de São Paulo, responsável praticamente pela metade da população carcerária do país. São mais de 150 mil presos, mais de 400 instalações prisionais, entre penitenciárias e unidades destinadas a presos provisórios, e apenas 35 defensores públicos atuando na área em todo o Estado, nenhum deles, por insuficiência de profissionais, atuando permanentemente nos presídios. Calcula-se que exista sensível quantidade de presos que já cumpriram suas penas ou cumpriram os requisitos para a progressão de regime ou o livramento condicional, mas continuam superlotando as penitenciárias por falta de defesa jurídica. E a sociedade e os governos ainda ficam perplexos com os motins, as rebeliões e com o poder de comando e organização das facções criminosas que atuam no interior destes estabelecimentos.
Não somente na administração do caos que se transformou o nosso sistema (?) prisional que os defensores públicos poderiam agir como uma ferramenta de pacificação. O acesso à justiça como uma garantia que não encontra barreiras nas classes sociais não é apenas um requisito formal indispensável da regularidade do sistema de justiça, mas é pilar para a concretização de outros objetivos sociais, produzindo reflexos sensíveis na segurança pública e na estabilização, em geral, das relações sociais.
Há que se reconhecer um importante passo dado com a EC 45/2004, que conferiu autonomia administrativa e financeira à Defensoria Pública, além das garantias de inamovibilidade e independência funcional aos seus membros. A partir dessa conquista no texto constitucional, é visível o fortalecimento da instituição em alguns Estados, sendo que a pauta do acesso à justiça e da defesa efetiva para todas as classes ingressou na agenda política de forma irreversível. Alguns avanços, contudo, ainda encontram inaceitável resistência, como a conferência de autonomia legislativa à instituição, nos moldes existentes em relação à Magistratura e ao Ministério Público, medida que integra o quadro completo de autonomia desta função essencial à Justiça, indispensável para que ela não esteja sujeita às amarras de governos e possa exercer seu papel de maneira independente, de olhos postos tão-somente na defesa dos direitos da população carente.
A conquista de condições adequadas para a prestação do serviço de assistência jurídica integral e gratuita tem se mostrado apenas pontual e localizada, não sendo significativa o bastante para ser vista como um curso de desenvolvimento da Defensoria Pública no país. A marca da prima pobre do sistema de justiça, apropriando-se da expressão utilizada em sensível artigo recentemente publicado por Marcelo Semer, ainda é a hipotrofia institucional.
Duas perguntas são inevitáveis: a quem interessa esse cenário e até quando ele poderá perdurar se vai claramente de encontro aos interesses sociais bem desenhados pela Constituição?
EDITORIAL: Defensoria Pública: justiça para quem precisa. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 192, p. 1, nov. 2008.
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