Não sei quem disse que, como o Congresso não legislava, amordaçado pela quantidade de medidas provisórias, o STF passou a legislar de modo a suprir a deficiência parlamentar. Divulgada a versão, a que não faltavam ingredientes factuais verdadeiros, passou a ser repetida por gregos e troianos, como expressão corrente de uma realidade. Até o presidente do Senado repetiu a sentença. Parece-me equivocada a assertiva, não quando aponta o excesso de MP como causa do mau funcionamento do Legislativo, que tenho como exata, mas quando afirma que o STF, em conseqüência, passou a legislar substituindo o Congresso. Não que o Poder Judiciário, no exercício regular do poder jurisdicional, não complemente a lei, suprindo suas eventuais lacunas, ou lhe atribuindo entendimento novo, senão construindo a seu modo dimensões novas a leis antigas. Afinal, quem tem de aplicar a lei tem de interpretá-la e ao fazê-lo fixa seu alcance. Não é isso, no entanto, que tem sido proclamado como verdade inconcussa, o Judiciário teria exercido atribuição do Congresso em razão de omissão dele. Esse entendimento é que não me parece correto.
O Judiciário não tem usurpado atribuições legislativas, pelo menos nos julgamentos que recentemente têm despertado a atenção e o interesse de largas faixas da população, seja pela densidade humana de determinadas questões, seja pela novidade de algumas delas, seja ainda pela divulgação que os julgamentos normalmente não tinham e que passaram a ter pelo fabuloso poder da televisão, hoje implantada nas salas dos tribunais. Mas, até onde sei, o Judiciário não tem invadido o que seria próprio do parlamento. O que tem acontecido ou pode acontecer é que a reflexão maior, o estudo mais acurado, fatos novos, experiências diferentes, tenham erodido interpretações dominantes, que pareciam definitivas e que essa mudança tenha decorrido apenas de um reexame dos fundamentos das mesmas leis. Vou dar um exemplo: Suponho que o primeiro julgamento a mudar antiga orientação que parecia irretocável foi o referente à denominada fidelidade partidária. Não saberia dizer quando firmei a convicção de que o mandato eletivo não pertence exclusivamente ao partido, ou ao eleito, mas que seria um condomínio em que dois são titulares, um pessoa jurídica e outro pessoa física.
A propósito, a tese uma vez foi vitoriosa no Tribunal de Justiça rio-grandense e por unanimidade; um candidato a deputado, não tendo sido eleito e ficado como primeiro suplente, desligou-se do partido pelo qual concorrera, e ingressou em outro. Vagando um lugar na bancada do partido que abandonara, pretendeu ocupá-lo, foi obstado pelo partido que seria lesado em sua representação e pela decisão unânime do Tribunal de Justiça. Bem mais tarde, caso semelhante chegou ao TSE e ao STF e em ambas as Cortes, por maioria, prevaleceu a tese contrária. Passados alguns anos, a migração partidária tomou proporções constrangedoras. No próprio dia da posse, a representação popular desenhada nas urnas mudava de perfil e o TSE veio a reexaminar a questão e o STF, em memorável decisão, depois de anos passados, também por maioria, reformulou sua anterior orientação. Invadiu atribuição legislativa? Não. Deu nova interpretação à mesma lei. O Congresso poderia ter mudado a lei? Poderia, mas não o fez. Por motivação exclusivamente jurídica, sempre entendi que não era a melhor exegese adotada pelo Judiciário e, 18 anos depois de ter ficado vencido em ambos as Cortes, vim a festejar a orientação que, por fim, sempre me parecera a correta. Mudando o entendimento, ainda por maioria, o Judiciário decidiu a questão no exercício de suas atribuições regulares. Alegada uma lesão de direito, o Judiciário conhece e julga a pretensão.
É certo que a Constituição ampliou o acesso ao Supremo. O que era prerrogativa do procurador-geral da República até 1988 foi alargado e muito. E o número de Adins, bem ou mal fundamentadas, ganhou relevo na pauta da Corte Suprema.
*Jurista, ministro aposentado do STF
Zero Hora.
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