A política planetária de proibição das drogas ilegais é uma profissão de fé, um dogma religioso sem nenhum alicerce na razão. Bem por isso, qualquer tentativa de discutir a questão sob prisma diverso da proibição é imediatamente identificada como apologia do crime (como ficou claro no lamentável e perigoso precedente que culminou na autoritária e ilegal decisão de proibir o direito de protestar por direitos em praça pública em diversas capitais brasileiras, à honrosa exceção da progressista Porto Alegre, única cidade brasileira a permitir a marcha da maconha 2008).
Em qualquer sociedade democrática, a autolesão é impunível, como no caso da tentativa de suicídio. Ora, se a tentativa de suicídio representa o que há de mais grave em termos de autolesão e ainda assim não se cogita de punição, como é possível justificar a punição do consumo pessoal de drogas ilegais? Não convence o malabarismo criado para permitir a incriminação do porte de drogas ilegais para consumo pessoal, no sentido de que haveria nesta conduta um perigo potencial de expansão do consumo que ofenderia a saúde pública. É evidente o antagonismo existente entre a destinação pessoal do uso e a proteção à saúde pública. Ora, se o fim é o uso pessoal, não afeta a saúde pública, mas apenas a saúde individual do usuário.
Nesse sentido, é solar a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei nº 11.343/06, em boa hora reconhecida por recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, cuja ementa é a seguinte: “O art. 28 da Lei nº 11.343/06 é inconstitucional. A criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade, afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e do respeito à diferença, corolário do princípio da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil.”
Ainda que não se reconheça a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei nº 11.343/06, é possível sustentar, como pioneiramente defendeu Maurides de Melo Ribeiro em sua dissertação de mestrado “Políticas públicas e a questão das drogas: o impacto da política de redução de danos na legislação penal”, com a qual obteve o título de mestre em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de São Paulo, que, sob a égide da nova lei, só é possível incriminar o porte de drogas ilegais para consumo pessoal quando ele se dá em local público. No âmbito privado, o uso de drogas ilegais não constitui crime, na medida em que inexiste expansibilidade do perigo potencial e, por conseqüência nesta hipótese inexiste lesão ao bem jurídico saúde pública.
Nesse sentido, a Lei nº 11.343/06 deixou de incriminar a conduta de utilizar local de que tem a propriedade, posse, guarda, etc. ou consentir que outrem dele se utilize para uso de drogas ilegais, prevista como crime equiparado ao tráfico de drogas na Lei nº 6.368/76 (art. 12, § 2º, inciso II). Com isso, reconheceu a nova lei a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, que no Brasil possui assento constitucional (art. 5º, X, da CF).
Além disso, em razão de o porte de drogas ilegais para consumo pessoal ser crime de mínimo potencial ofensivo (punido com sanções não privativas de liberdade), não cabe prisão em flagrante. No local público, o usuário de drogas ilegais pode ser conduzido ao distrito policial para lavratura de termo circunstanciado, comprometendo-se a comparecer ao juizado especial criminal. No âmbito privado, prevalece a inviolabilidade do domicílio, salvo no caso de mandado judicial de busca, sendo incabível a prisão em flagrante.
Os defensores do proibicionismo alegam que “a primeira vítima do uso de drogas ilegais é a liberdade”. Esse argumento, muito difundido, é falso. Pesquisas demonstram que a grande maioria das pessoas que usam drogas (legais ou ilegais) não desenvolvem dependência.
Além disso, ninguém nega que álcool e tabaco, que são substâncias igualmente nocivas à saúde de uso permitido (drogas institucionalizadas), possuem potencial de adição superior ao da maconha, por exemplo. E, no entanto, ninguém sugere a proibição do álcool e tabaco, nada obstante a existência de risco efetivo de dependência. A única coisa que justifica a divisão das drogas em legais e ilegais é o entorpecimento da razão, como observa Maria Lúcia Karam.
Quando se tenta discutir a necessidade de adoção de uma política pública realista e eficiente para as drogas em geral — as legais e as ilegais — fora do campo da proibição, o primeiro obstáculo é justamente superar o moralismo. O proibicionismo é uma manifestação radical do moralismo, que há muito não tem razão de existir (se é que teve um dia). A incriminação do uso de drogas — legais ou ilegais — é inadmissível, na medida em que o Estado e o Direito não possuem legitimidade para exercer a educação moral de pessoas adultas. O proibicionismo é, em realidade, pura ortopedia moral.
O fracasso do proibicionismo é evidente: apesar dos muitos bilhões desperdiçados na fogueira inquisitorial da guerra às drogas, estas nunca foram tão acessíveis, tão abundantes e tão baratas como na atualidade. O proibicionismo produziu males ainda mais deletérios do que o suposto mal que se propôs a evitar: incremento da violência ínsita ao modelo bélico; encarceramento em massa; corrupção de agentes públicos, entre muitos outros danos sociais.
Os efeitos deletérios das drogas — legais e ilegais — jamais serão atingidos pela proibição. Somente uma política de saúde pública honesta, que opere, de um lado, a prevenção por meio de campanhas educativas e de informação, e de outro, o tratamento daqueles que dele realmente necessitam e que a ele aceitem se submeter, é capaz de produzir algum resultado positivo. O resto é propaganda enganosa, demagogia, parolagem.
Países importantes como Portugal e Espanha optaram pela não incriminação do uso de drogas, adotando controles extrapenais que têm se mostrado mais eficientes e menos traumáticos do que o proibicionismo-punitivo.
No editorial do Boletim IBCCRIM nº 187 (junho/2008), intitulado “As marchas e contramarchas da política mundial de drogas”, o assunto é tratado com o necessário realismo: “Estamos numa encruzilhada da história: ingressaremos numa nova Idade das Trevas ou numa Idade da Razão!?”
Nesse sentido, é curial a adoção de uma postura contra-hegemônica: deve-se analisar a questão das drogas não do ponto de vista da droga como problema, mas do ponto de vista da proibição como problema, com vistas à construção de uma verdadeira racionalidade fora da proibição. Assim como outras substâncias que podem causar prejuízo à saúde, as drogas ilegais devem ser objeto de preocupação, não do sistema de justiça criminal, mas do sistema de saúde. Prevenir e controlar é melhor, mais eficiente e mais razoável do que proibir e reprimir, conforme se depreende da experiência da Lei Seca nos EUA. Só não vê quem está alheio à realidade.
Cristiano Avila Maronna
Advogado criminalista; mestre e doutor em Direito Penal pela USP
MARONNA, Cristiano Avila. Em busca da racionalidade perdida. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 189, p. 10, ago. 2008.
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