Ao examinar o cenário cultural brasileiro do século XIX, Roberto Schwarz (1977) argumentou que as noções liberais, importadas do contexto europeu e norte-americano, figuravam nas nossas paragens, defrontadas, sobretudo, com a instituição da escravidão e com a prática arraigada do favor, como “idéias fora do lugar”. Sugeriu Schwarz que o liberalismo foi assimilado à moda brasileira; uma vez aqui chegado, não se chocou com particularidades em princípio opostas a ele, mas foi a elas conjugado, muitas vezes com o fito de revestir de um verniz liberal práticas antiliberais em essência. As idéias liberais teriam sido, em alguns casos, torcidas para caberem em molduras que, de fato, nada tinham de liberais. Ao se encaixarem às realidades locais dessa maneira, tais idéias terminavam se desfigurando e deixavam, assim, de servir aos propósitos para os quais foram concebidas originalmente, passando a legitimar procederes que lhes eram, na verdade, antípodas. Daí a perplexidade, por exemplo, de se ter fundado a permanência da escravidão no caráter absoluto do direito de propriedade, havendo-se valido de uma noção de teor liberal para defender uma medida marcadamente antiliberal.
Um fenômeno semelhante parece ocorrer quando as garantias penais e processuais são transplantadas da letra da lei para a realidade policial, judiciária ou penitenciária. O modo pelo qual algumas dessas garantias são efetivadas tende a distorcer sua finalidade, a ponto de implicar, na prática, resultados diametralmente opostos aos que se pretendia com a sua previsão legal. Ao invés de proteger o acusado do rigor da intervenção penal, a concretização torta de certas garantias, no dia-a-dia da justiça criminal, acaba por expô-lo à sua crueza de modo muito mais perverso. É o que acontece, por exemplo, na efetivação do direito de permanecer calado, uma garantia consagrada, no art. 5º, LXIII, da Constituição Federal. Não obstante a inclusão do dispositivo que manda que o silêncio não seja interpretado em prejuízo da defesa, no parágrafo único do art. 186 do Código de Processo Penal, a fragilidade dessa garantia se revela no cotidiano forense, especialmente no âmbito da infância e da juventude. Os dados etnográficos colhidos por Paula Miraglia junto às Varas Especiais da Infância e da Juventude da capital de São Paulo (2005) dão conta de que adolescentes em conflito com a lei são instados a “revelar a verdade”, a fim de não se “prejudicarem”. Com efeito, o silêncio costuma ser interpretado como relutância em reconhecer os próprios erros, como se significasse falta de maturidade, de maneira que mesmo os defensores acabam recomendando aos jovens que confessem o cometimento do ato infracional.
Se algumas garantias, na sua aplicação, são desvirtuadas, também é comum que medidas de caráter restritivo sejam subvertidas e adquiram, assim, um status de garantia que não possuem — ou que não deviam possuir. É o caso da imposição de internação provisória a adolescentes que tenham sido ameaçados de morte ou que, simplesmente, vivam em lugares considerados perigosos à sua integridade física. A segregação é interpretada como uma medida de proteção aplicada no interesse do adolescente. Um outro exemplo promete vir da introdução de pulseiras e tornozeleiras eletrônicas para a vigilância de detentos em saídas temporárias ou em regime aberto. Uma iniciativa extremamente invasiva, que melindra algumas das mais caras garantias individuais consignadas pelo direito, é vista com benevolência pelos próprios presos, como uma proteção contra as arbitrariedades do sistema penal. Uma reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo (“Presos testam e aprovam tornozeleiras”, Metrópole, p. C4, 07/05/2008) traz o relato de um detento que participou da testagem desses equipamentos em São Paulo e que considerou positivo o fato de a polícia ter ciência de seu paradeiro por meio de aparelhos eletrônicos. Segundo ele, em uma saída temporária, havia sido acusado de ter praticado um roubo e só não sofreu uma regressão de pena porque os verdadeiros autores do crime foram encontrados posteriormente. Ele afirmou que “se tivesse essa caixinha, eles saberiam que não fui eu quem havia cometido aquele crime”. Outro detento disse, a respeito, que “Se for para a gente se garantir na redução de pena, será muito bom”. Talvez se a concessão dos benefícios legais da execução penal fosse a regra, e não a exceção, não se encararia a medida como “muito boa” para o apenado.
As razões dessas distorções certamente não podem ser elucidadas em poucas linhas. Uma boa pista pode ser encontrada no caráter disjuntivo da democracia brasileira, identificado por Teresa Caldeira (2003), segundo a qual o reconhecimento institucional de certos direitos, no Brasil, convive com a ampla inobservância de outros tantos. De qualquer modo, esses exemplos alertam para a necessidade de se examinar com cuidado o modo como novas medidas, entendidas como mais benéficas a acusados ou condenados, acomodam-se de fato nas práticas penais. Já se chamou atenção para o fato de iniciativas como a Justiça Restaurativa, em princípio uma medida de despenalização, implicarem, na verdade, a extensão da rede de controle penal (o chamado efeito net-widening). A avaliação de projetos-piloto de Justiça Restaurativa no Brasil, realizada pelo Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud) detectou tendências nesse sentido, na medida em que casos que antes não passavam pelo crivo do Poder Judiciário, agora chegam, pela mão da Justiça Restaurativa e sem necessidade justificável, até juízes de Direito (Raupp; Benedetti, 2007). Nessa toada, uma iniciativa que deveria consistir em um exercício inovador de autonomia pelas partes, a ser levado a cabo fora das instâncias formais de controle penal, pode terminar, uma vez acoplada a essas instâncias, transformando-se em apenas mais um instrumento na caixa de ferramentas do Estado na coibição da criminalidade. Algo análogo pode ocorrer se as discussões a respeito da pena mínima, inauguradas recentemente pelo Ministério da Justiça, culminarem na eliminação dos limites mínimos da pena abstratamente cominada de alguns crimes. Em vez de induzirem, como pretendido, a uma individualização mais adequada da pena, proporcionando uma dosimetria mais ajustada ao caso concreto, a ausência de parâmetros mínimos pode levar a um incremento médio da pena-base estipulada pelos juízes e aumentar o tempo de prisão. Em vista disso, é recomendável que iniciativas jurídicas sejam acompanhadas de estudos de impacto que se aproveitem das vantagens da interdisciplinaridade que deve existir entre Direito e Ciências Sociais. A dimensão da eficácia do direito não pode ser negligenciada e, para colocar as garantias no seu lugar, é fundamental olhar para a realidade que transborda das leis e dos manuais.
Referências Bibliográficas
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. 2ª ed., São Paulo: Edusp e Editora 34, 2003.
MIRAGLIA, Paula. “Aprendendo a lição: uma etnografia das Varas Especiais da Infância e da Juventude”, Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n° 72, jul. 2005, pp. 79-98.
RAUPP, Mariana; BENEDETTI, Juliana Cardoso. “A implementação da Justiça Restaurativa no Brasil: uma avaliação dos programas de Justiça Restaurativa de São Caetano do Sul, Brasília e Porto Alegre”, Revista Ultima Ratio. Rio de Janeiro, a. 1, n° 1, 2007, pp. 3-36.
SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas: Forma Literária e Processo Social nos Inícios do Romance Brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
Juliana Cardoso Benedetti
Advogada, pesquisadora, graduanda em Ciências Sociais pela USP e mestranda em Direito pela USP e pelo programa “Sistema Penal e Problemas Sociais” da Universidade de Barcelona
BENEDETTI, Juliana Cardoso. As garantias “fora do lugar”. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 189, p. 9, ago. 2008.
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