Denúncias foram recebidas por central de atendimento do governo, mas número de vítimas pode ser maior
A advogada Fernanda (nome fictício) foi proibida de sair de casa no terceiro ano de casamento. Não podia visitar os pais, trabalhar ou receber telefonemas. Para aprisioná-la, o marido não usava cadeados, mas ameaças: deixaria a casa sem comida ou levaria os dois filhos para longe. No ano passado, foram registrados 123 casos semelhantes na Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180 da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), vinculada à Presidência da República.
Só no primeiro semestre deste ano, o serviço recebeu 79 denúncias de cárcere privado. No mesmo período de 2007, foram 32. O aumento pode ser explicado pela popularização do Ligue 180, lançado em novembro de 2005. Além de oferecer informações sobre a rede de atendimento à mulher e acolher reclamações ou denúncias, o serviço promete desempenhar um papel importante na orientação de políticas públicas.
"Até agora, não havia fontes de dados que possibilitassem análises periódicas da violência contra a mulher no Brasil", afirma a economista Luana Pinheiro, gerente de projetos da SPM e co-autora do primeiro estudo sobre as ligações recebidas pelo serviço. O trabalho será apresentado amanhã no 16º Encontro Nacional de Estudos Populacionais, em Caxambu (MG).
QUEIXAS
A pesquisa ajuda a compreender melhor a utilidade das informações coletadas pelo Ligue 180. Revela, por exemplo, as deficiências no atendimento às mulheres vítimas de violência: falhas cometidas por departamentos de polícia, delegacias da mulher e pelo serviço telefônico da Polícia Militar (190) motivaram cerca de 70% das 904 reclamações recebidas pelo serviço em 2007. "Fica clara a necessidade de investir na capacitação dos agentes de segurança para não acrescentar uma violência de natureza institucional à violência doméstica", explica Luana. As queixas mais comuns estão relacionadas à recusa em registrar boletins de ocorrência (16,8%) e ao atendimento inadequado às vítimas (16,2%).
Dos 205 mil atendimentos realizados em 2007, 89,6% foram pedidos de informação ou encaminhamento aos serviços da rede. Denúncias representaram 9,8%. O restante (0,6%) corresponde às reclamações, sugestões e dúvidas.
"Você deve estar se perguntando como uma mulher instruída passa por uma situação como essa", pondera Fernanda. "A gente acaba aceitando muita coisa em um relacionamento." Hoje, ela dá palestras sobre violência doméstica e acha que o Ligue 180 deveria ser mais conhecido.
Pedro Ferreira, assessor técnico da SPM e responsável pelo serviço, explica que raramente vítimas de cárcere privado ligam para a central. "Geralmente é vizinho ou parente quem faz o contato."
FILHOS
Ele enumera três situações em que o Ligue 180 aciona diretamente os serviços de segurança pública: nas denúncias de cárcere privado, tráfico de mulheres e nos casos de risco iminente de morte. Nas demais ocorrências, as mulheres são informadas sobre os seus direitos e encaminhadas a uma unidade da rede de atenção, geralmente uma delegacia da mulher.
A antropóloga Alinne Bonetti, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e co-autora do estudo, destaca que o Ligue 180 não oferece apenas bons números. "Os relatos das denúncias também são interessantes", afirma (veja quadro ao lado). Ela cita como exemplo a menção recorrente à presença de filhos pequenos durante as agressões, dado que ajuda a entender melhor o impacto da violência.
RELATOS
"Cidadã de 46 anos relata que a vizinha está sendo mantida em cárcere privado pelo companheiro há mais de um mês"
"Cidadã relata que está sendo mantida em cárcere privado pelo esposo. No momento em que entrou em contato com a nossa central estava muito nervosa, pois o mesmo havia saído um instante e a mesma pegou o celular escondido e ligou para o 180"
"Cidadã relata que está sendo mantida em cárcere privado pelo companheiro. A mesma estava nervosa, desesperada e implorou que lhe tirassem dessa situação. Não foi possível colher dados suficientes, pois a mesma teve de encerrar a ligação visto que o seu companheiro chegou em casa"
"Cidadã relata que está sendo mantida em cárcere privado pelo marido. O motivo de deixá-la trancada é porque quando estava grávida de cinco meses ele lhe pediu para fazer um aborto e, como ela não aceitou, ele prometeu que ela iria se arrepender"
"Cidadã de 26 anos é agredida fisicamente pelo esposo com socos e empurrões. Convivem juntos há sete anos e toda a semana ela é agredida por ele. A cidadã tem dois filhos que presenciam as agressões e estão traumatizados. O mesmo não faz uso de entorpecentes, faz tudo consciente"
Estadão.
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