Não há dúvida de que as questões de política criminal são, na atualidade, normalmente relegadas a um segundo plano pelos operadores do Direito. Assiste-se hoje a uma política criminal transmutada em política de segurança.
Nesse contexto, a crescente produção legislativa em matéria penal demonstra claramente que a norma incriminadora deixou de representar o poder coercitivo estatal voltado indistinta e igualmente aos membros do grupo social, a partir de uma vontade soberana, para materializar a hegemonia de interesses de grupos de pressão sobre o poder público. As diversas contrariedades técnicas e vícios teóricos verificados nesses diplomas penais extravagantes não permitem falar de harmonia ou qualquer pretensão unitária da legislação especial, conforme há tempos e de forma reiterada se vem denunciando, seja na esfera acadêmica, seja no próprio universo prático dos operadores do Direito.
Voltemos, então, à raiz do problema. No âmbito da sociedade contemporânea, denominada por alguns de sociedade de risco(1), a sensação generalizada de insegurança, enaltecida pelos meios de comunicação, acaba por converte-se em um discurso de emergência e, assim, em pretensão social crescente, a que o Estado, por meio do Direito Penal, deve fornecer resposta. Diante desse quadro, a par dos movimentos clássicos de restrição do Direito Penal, surgem cada vez mais demandas voltadas a uma ampliação da proteção penal, que ponha fim, ainda que nominalmente, à angústia coletiva. E tal aspiração de uma coletividade que se autocompreende antes de tudo como vítima conduz a uma importante transformação no âmbito do Direito Penal objetivo: em concreto, perde-se a visão deste como instrumento de defesa dos cidadãos frente à intervenção coativa do Estado e, por via de conseqüência, perde-se a noção do Direito Penal como sistema.
A fim de conferir resposta à sociedade insegura, tem-se a proliferação desenfreada de leis penais, adotando-se uma técnica legislativa assumidamente casuística, que tende a considerar o Direito Penal como instrumento de controle acessório ao Direito Administrativo. Os tipos penais distanciam-se dos requisitos clássicos da generalidade e da abstração, transformando-se em instrumentos de administração de situações particulares, de “emergências” concretas. A esse Direito podemos denominar Direito Penal de Emergência, marcado pela perda do caráter subsidiário e fragmentário e pela missão de instrumento político de segurança(2). Nessa linha, as normas elaboradas a partir dos discursos de emergência integram um Direito Penal simbólico, cujo objetivo é, antes de buscar soluções, demonstrar a especial importância outorgada pelo legislador aos aspectos de comunicação política a curto prazo na aprovação social das normas correspondentes(3). A partir desse modelo de política criminal, ou de política de segurança, consentâneo a uma ciência jurídica voltada exclusivamente à eficácia, cria-se um sistema jurídico tecnocrático, que visa a destruir as propostas de solução estrutural dos problemas sociais.
Tratando dos discursos de emergência em matéria penal, Juarez Tavares salienta que a criação de novas incriminações se desenvolve na medida em que a ampliação do poder sancionador não possa, por si mesmo, através dos processos de sua justificação, garantir a estabilidade da norma. Assim, tratando do princípio da estabilidade da norma como fundamento simbólico de poder, o descompasso entre essa pretendida estabilidade e os problemas que a realidade apresenta força necessariamente a adoção de soluções normativas para esses problemas. E os conflitos que a realidade social oferece deixam de ser resolvidos por meio de mecanismos de atuação real e passam a servir de motivo para acentuar-se a sanha legislativa. “Não é surpreendente, portanto, que se procedam reformas quase que diárias das leis penais e a elaboração de novos diplomas, com novas incriminações.”(4)
A partir desse discurso, soaria adequado, inclusive, defender o Direito Penal do inimigo, na linha de Günther Jakobs, aplicável àqueles que, por não revelarem lealdade ao sistema e, assim, confiabilidade, deixam de ser considerados pessoas para se converter em inimigos, merecendo, assim, tratamento excepcional ao próprio ordenamento jurídico destinado aos cidadãos(5).
A cultura de emergência e a prática da exceção são, então, responsáveis pela involução do ordenamento jurídico-penal, que se expressa na reedição, talvez em novos trajes, dos velhos modelos próprios da tradição penal pré-moderna, como a adoção de práticas inquisitivas e métodos de intervenção típicos da atividade da polícia.
Nesse sentido, Loic Wacquant observa que a América Latina é hoje considerada terra de evangelização dos apóstolos do Estado policial, na linha norte-americana da política de tolerância zero(6). Chega-se, assim, a um Estado de Polícia, ou “Estado policialesco”, conforme expressão recentemente utilizada pelo próprio presidente do Supremo Tribunal Federal, no qual, por de trás de um pretenso aumento da criminalidade, em verdade emerge uma forte campanha de lei e ordem.
Ora, se, na linha funcionalista, o Direito Penal cumpre a função de garantir a estabilidade da ordem jurídica, não se pode aceitar um emaranhado de leis desproporcionais, incoerentes e excepcionais ao próprio ordenamento jurídico penal e constitucional, sob pena de macular a manutenção desse sistema normativo. E quando o sistema perde eficácia, perde também sua credibilidade e força, passando a justificar fenômenos sociais como o visto no final da década de 60 no Estado de São Paulo, a partir da formação e atuação do Esquadrão da Morte, em pleno regime militar(7). É claro que, influenciada pelo clima de insegurança, a sociedade tende a aplaudir esse tipo de atuação e, antes de tudo, essa pseudo-polarização, ainda que de forma hipócrita, já que os discursos de emergência acabam muitas vezes por encobrir as relações existentes entre os “mocinhos” e “bandidos”, no mesmo contexto de atuação criminosa.
Assim, a par do desafio inicial, imposto a todos nós, como operadores do Direito, de decidir se usaremos a dogmática penal para manter ou para destruir o Direito Penal, emerge outro desafio, de iguais proporções: a retomada da visão unitária do Direito Penal, como sistema.
Em trabalho apresentado junto à XVII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, em 1999, René Ariel Dotti salientou que, naquela época, a legislação especial em matéria criminal, quer criminalizando condutas ou declarando-as equiparadas a tipos já previstos no Código Penal, quer abordando aspectos relativos à caracterização dos delitos ou à aplicação ou extinção das penas, alcançava o expressivo número de 109 diplomas. Quanto às leis extravagantes que regulavam contravenções penais, havia 10 diplomas legais. Há quase dez anos atrás, a soma global chegava, portanto, a 119 diplomas dispondo sobre crimes e contravenções penais, a parte das normas do Código Penal(8).
Diante desse quadro, a função jurídica de ordenação social parece ficar sem efeito a partir da perda da importância conferida a uma visão sistêmica do Direito. A inflação legislativa produziu o fracionamento da ordem jurídica, criando microssistemas que, embora possam ter alguma referência no Código Penal, acabam ganhando autonomia e independência.
Tradicionalmente atribui-se à sistemática um grande valor. O fim da dogmática jurídico-penal é, assim, apreender conceitualmente o conteúdo e a estrutura dos preceitos penais e colocar os distintos conceitos alcançados em um sistema científico logicamente coerente. A partir daí, tem-se que a tarefa do penalista consiste em superar as aparentes contradições surgidas na realidade, solucionando referidos problemas concretos de forma harmoniosa com o sistema. Tal sistema, é bem verdade, não pode ser considerado como definitivo ou fechado, mas sim como suscetível a modificações e a novas harmonizações quando essas se mostrarem necessárias, no enfrentamento de novos problemas. Mas, ainda assim, e apesar de novos problemas, não é possível entender as considerações sistemáticas como carentes de valor(9). Em outras palavras: a noção de sistema penal, a tão duras penas conquistada, deve ser mantida.
Qualquer idéia de reforma legislativa não pode, portanto, deixar de conferir importância à adoção de uma visão sistêmica e geral do Direito Penal, como bem se salientou no âmbito do próprio Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que, no ano de 1998, negou-se a oferecer sugestões ao anteprojeto de reforma penal, nos moldes então apresentados(10).
É importante observar que a discussão sobre a necessidade de adoção de uma visão sistemática do Direito Penal não é exclusivamente brasileira, constituindo motivo de preocupação em vários outros ordenamentos jurídicos, a exemplo do espanhol. De fato, e curiosamente, neste último país se decidiu por abandonar a idéia de universalidade do Código Penal, conforme restou expresso no texto da Exposição de Motivos de 1995, in verbis: “el presente proyecto difiere de los anteriores en la pretensión de universalidad. Se venia operando con la idea de que el Código Penal constituyese una regulación completa del poder punitivo del Estado. La realización de esa idea partía ya de un déficit, dada la importancia que en nuestro país reviste la potestad sancionadora de la Administración; pero, además, resulta innecesaria y perturbadora. — Innecesaria porque la opción decimonónica a favor del Código Penal y en contra de la leyes especiales se basaba en el hecho innegable de que el Legislador, al elaborar un Código, se hallaba constreñido, por razones de trascendencia social, a respetar los principios constitucionales, cosa que no ocurría, u occuría en menor medida, en el caso de una ley particular. Hoy, sin embargo, tanto el Código Penal como las leyes especiales se hayan jerárquicamente subordinadas a la Constitución y obligadas a someterse a ellas, no solo por esa jerarquía, sino también por la existencia de un control jurisdiccional de la constitucionalidad. Consiguintemente, las leyes especiales no pueden suscitar la prevención que históricamente provocaban. — Perturbadora, porque, ..., hay materias que difícilmente pueden introducirse en él. Pues, si una pretensión relativa de universalidade s inherente a la idea de Código, también lo son las de estabilidad y fijeza, y existen ámbitos en que, por la especial situación del resto del ordenamiento, o por la naturaleza misma de las cosas, esa estabilidad y fijeza son imposibles. Tal es, por ejemplo, el caso de los delitos relativos al control de cambios... La misma técnica se há utilizado para las normas reguladoras de la despenalización de la interrupción voluntaria del embarazo.”
A opção adotada pelo legislador espanhol é criticada por Francisco Javier Alvarez García, para quem o contínuo recurso à legislação especial acaba por traduzir-se em uma vontade de “mudar as regras do jogo” e de converter o que deveria constituir uma exceção em modelo de comportamento no âmbito de setores inteiros do ordenamento, que acabaram migrando ao Direito Penal(11).
Só temos a concordar com a crítica mencionada, ressaltando que, a partir da hipertrofia do ordenamento jurídico causada pela legislação extravagante, tem-se assistido, antes de mais nada, à ampla vulneração do princípio da legalidade, mediante o recurso a tipos indeterminados, abertos, à utilização de analogia e, inclusive, ao reconhecimento de um cada vez mais amplo e excessivo arbítrio judicial. De outro lado, a linguagem das leis penais extravagantes, ao se apresentar múltipla, discordante, prolixa e ambígua, torna impossível a compreensão de um conteúdo unitário, em relação ao qual o intérprete possa inferir critérios unívocos e corentes(12). Veja-se, inclusive, que as normas penais têm a função precípua de estabelecer a comunicação entre o Estado e os indivíduos, devendo deixar claros os comportamentos indesejáveis. Provoca-se, assim, uma grande desordem nos marcos normativos, em razão das difíceis relações que se impõem, a partir da hipertrofia legislativa, no interior do ordenamento penal.
Portanto, ao tratarmos de reformas penais, ou mesmo do enfrentamento dos atuais discursos de emergência, que têm levado ao enfraquecimento e, assim, à verdadeira crise de legitimidade do Direito Penal, devemos pensar, como medida urgente, na elaboração de uma consolidação das leis penais, que resulte na unificação do discurso legislativo, em respeito a princípios penais e constitucionais fundamentais tais como o da legalidade e o da proporcionalidade. Somente a partir daí, restituindo-se ao Direito Penal a noção de sistema, poder-se-á pensar nas demais reformas, igualmente imprescindíveis à manutenção do caráter liberal do Direito Penal, tais como a descriminalização de condutas que em nada ofendem aos interesses sociais fundamentais convertidos a bens jurídico-penais.
Ilustrando a difícil tarefa que se impõe a todos nós, sob pena de vermos destruídos os pilares fundamentais de um Direito Penal voltado às garantias individuais frente ao limitado poder do Estado, e, assim, de retrocedermos a um Direito Penal autoritário e moralizador, podemos trazer a ponderação de Giorgio Agamben, para quem a pergunta correta sobre os horrores praticados nos campos de concentração não é aquela hipocritamente voltada a solucionar como foi possível cometer delitos tão graves em relação a seres humanos; e sim, de forma mais honesta e, sobretudo mais útil, indagar atentamente acerca do modelo jurídico e dos procedimentos políticos que tornaram possível chegar a privar tão completamente de seus direitos e garantias tais seres humanos, a ponto de se deixar de considerar a prática de qualquer tipo de ação contra eles como um delito(13).
Notas
(1) Na linha do sociólogo Ulrich Beck. La Sociedade del Riesgo. Hacia una Nueva Modernidad. Trad. Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Maria Rosa Borras. Barcelona: Paidós, 1998.
(2) Nas Palavras de Luigi Ferrajoli, o Direito Penal de Exceção designa simultaneamente duas coisas: a legislação de exceção em relação à Constituição e, portanto, a mutação legal das regras do jogo; a jurisdição de exceção, por sua vez degradada em relação à mesma legalidade alterada. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Chour, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 650.
(3) SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación al Derecho Penal Contemporaneo. Barcelona: Bosch, 1992, pp. 304 e segs.
(4) “A crescente legislação penal e os discursos de emergência”. In: Discursos Sediciosos. Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1997, p. 55. Observa-se que a produção legislativa em matéria penal é tamanha no Brasil que soa impossível, na atualidade, afirmar seu conhecimento, mesmo para os especialistas nessa área.
(5) Quanto à crítica dessa concepção de Günther Jakobs, Francisco Muñoz Conde adverte que, se aquele autor descreve a existência real de um Direito Penal do Inimigo no âmbito dos ordenamentos jurídicos dos Estados de Direito, não se pode aceitar que a atividade do jurista possa se limitar à mera constatação da situação. Para além de mera descrição, deve-se analisar a compatibilidade desse pretendido Direito com os princípios do Estado Democrático de Direito e com os direitos fundamentais consagrados na Constituição e nas declarações internacionais de direitos humanos. O jurista não pode, assim, ser simplesmente um mensageiro, transmitindo a má notícia, classificando-a por meio de um nome; deve-se analisá-la criticamente, não a partir de razões ideológicas ou políticas, mas sim por razões estritamente jurídicas. MUÑOZ CONDE, Francisco. De Nuevo Sobre el Derecho Penal del Enemigo. Buenos Aires: Hammurabi, 2005, pp. 82-83.
(6) Citado por Eduardo Alberto Paredes, Los Discursos de Emergencia y los Procesos de Criminalización. Revista de Derecho Penal, Proceso Penal y Criminologia. Ano 2, n. 4, 2002, pp. 440 e segs. O autor cita, como exemplo emblemático da política de tolerância zero novaiorquina, a técnica do stop and frisk, consistente no poder conferido à polícia de reter indivíduos indivíduos, procedendo à buscas pessoais e em seus automóveis, em plena via pública, independentemente de ordem judicial, sob justificativa de fundada suspeita.
(7) Há registro de esquadrões da morte em diversos outros Estados, como no Rio de Janeiro, no final da década de 50. Tais grupos ainda parecem existir e são amplamente aceitos pela sociedade, conforme se infere nas diversas comunidades eletrônicas voltadas à sua exortação.
(8) Conforme dados publicados por René Ariel Dotti no artigo “Proposta para uma nova consolidação das leis penais”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 28, p. 152.
(9) Nesse sentido, v. GIMBERNAT-ORDEIG, Enrique. Concepto y Método de la Ciencia del Derecho Penal. Madrid: Tecnos, 1999, pp. 106-107.
(10) Conforme editorial do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais de agosto de 1998, p. 01.
(11) “Reflexiones sobre el principio de legalidad”. In: Nuevas Opsiciones de la Dogmática Jurídica Penal. (Dir. Francisco Javier Vieira Morante). Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2006, p. 327.
(12) Importante lembrar que, no âmbito de uma Estado Democrático de Direito, o Direito Penal possui como função a comunicação, por meio do tipo, dos comportamentos considerados indesejáveis pelo Estado aos membros do grupo social.
(13) AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. El Poder Soberano y la Nuda Vida. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia: 2003, citado por Francisco Muñoz Conde. De Nuevo Sobre el Derecho Penal del Inimigo..., cit., p. 88.
Ana Elisa Bechara
Professora doutora de Direito Penal na Faculdade de Direito da USP
Boletim IBCCRIM nº 190 - Setembro / 2008
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