terça-feira, 30 de setembro de 2008

Artigo: Ainda as pesquisas com células-tronco humanas

O assunto, evidentemente, está longe de ser visto com tranqüilidade: a declaração da constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105, de 2005) pelo Supremo Tribunal Federal apenas resolveu uma parte da questão, a argüição de inconstitucionalidade desse dispositivo. Sabemos, porém, que as leis nem sempre correspondem à complexidade de certas questões da realidade social e, sob este ângulo, continua de pé a polêmica científica e ética a respeito.

Recente decisão do juiz Fabio Henrique de Toledo (Correio Popular, Campinas, 09-6-2008) ressalta que “o problema tem raízes mais profundas e que não se quer enfrentar. O dispositivo da Lei de Biossegurança em questão tem um inescondível propósito: dar uma solução ao problema dos embriões congelados, tanto que não se permite produzir embriões para pesquisa mas tão-somente se admite que sejam utilizados para tanto os inviáveis e os congelados há mais de três anos. Sendo assim deveríamos, em respeito à vida humana, cuidar de proibir com rigor que, doravante, haja embriões, vale dizer seres humanos, congelados em laboratório. E para isso bastaria que se fecundassem apenas os óvulos que fossem efetivamente ser utilizados”.

E pergunta, afinal: “Será que a essas vidas que se mantêm congeladas está sendo assegurada a dignidade da pessoa humana, também assegurada no art. 1º, III da Constituição Federal?”

Sabe-se que o processo todo é oneroso, daí o acumulo de embriões que, não mais sendo utilizados, por variados motivos (inclusive o desinteresse dos pais) tornaram-se objeto de um motivo econômico para seu descarte. Isto é bem de nossos tempos...

Do ponto de vista científico, vale lembrar a frase da juíza Jutta Limbach, ex-presidente da Suprema Corte Alemã: “1) A Ciência do Direito não é competente para responder à questão sobre a partir de quando começa a vida humana; 2) As ciências naturais, em virtude do seu conhecimento, não estão em condições de responder à questão a partir de quando a vida humana deve ser colocada sob a proteção da Constituição.”

A Constituição garante a inviolabilidade do direito à vida: embriões humanos teriam direito a viver? Essa é a questão a exigir resposta, que se estende igualmente ao óvulo fecundado, pois não há possibilidade de existir o processo vital senão a partir de um início. Trata-se de um continuum com fases antecedentes e conseqüentes, todas igualmente necessárias ao desenvolvimento de um determinado ser.

A respeito da decisão do Supremo, várias posturas foram enfatizadas pela mídia: para alguns, “impediu que uma ética privada, a religiosa, fosse imposta a todos” (Folha de S.Paulo, 30/5/2008). “Trata-se de direito absoluto à vida dos que, podendo curar-se de males graves, sejam impedidos desse objetivo por restrições não-jurídicas, estranhas à ética” (Walter Ceneviva, Folha de S.Paulo, 31/5/08). De seu lado, registra O Estado de S.Paulo, 31/5/08, p. C2: “O ministro Joaquim Barbosa foi ao nervo da questão, ao assinalar que a Lei de Biossegurança “respeita três primados fundamentais da República: laicidade, liberdade individual e liberdade de expressão intelectual e científica’”.

Desde logo, porém, um ponto deve ser firmado: o Estado deve ser laico, mas não a-ético. Trata-se, portanto, de ética e não, de religião. Neste caso, Ética Publica ou Política que firmou na sociedade brasileira princípios básicos, como a dignidade da pessoa humana.

Por outro lado, inexiste direito absoluto de um lado apenas, numa relação jurídica: o embrião não teria, também, direito “absoluto” à vida? Ademais, há direitos absolutos?

A Constituição refere-se, unicamente, ao bem jurídico, “vida”, sem especificar se embrião, se criança, se adulto e atribuiu dignidade própria à qualidade de “humano”. A balança simbólica do Direito e da Justiça deve sopesar os valores humanos com igualdade, para que exista o necessário equilíbrio.

Quanto à liberdade de manifestação científica (art. 5º, IX), como qualquer outra espécie de liberdade, encontra limites na própria Constituição, ou seja, nos direitos limítrofes a esse direito.

A Ciência não teria limites?

Wittgenstein externou uma opinião: “A era da ciência e da tecnologia é o começo do fim da humanidade.” E Nietzsche escreveu em seu diário: “O objetivo da ciência é a destruição do mundo” (Paulo Cesar de Souza, Freud, Nietzsche e Outros Alemães, Imago, p. 119). Poderia parecer exagero: não, se lembrarmos a liberação da energia atômica, destruidora e incontrolável.

Não há como não reconhecer: com o avanço da ciência e da tecnologia está-se diluindo a diferença entre o que é humano e o que não é humano e o que pode ser utilizado para experiências científicas. Habermas (O Futuro da Natureza Humana, Martins Fontes, 2004) refere-se à compreensão ética da espécie humana, que nos faz “nos compreender como seres eticamente livres e moralmente iguais, orientados por normas e fundamentos”.

Essa compreensão não pode ser perdida: a manipulação do ser humano, sob qualquer motivo, não fará desaparecer, precisamente, a diferença daquilo que tem a qualidade do humano?

As doutrinas alemã e italiana são firmemente contrárias à manipulação genética não respeitante da autonomia individual, ou a vontade de um terceiro (embrião), em suma, a dignidade humana: Franco Bar­to­lo­mei (La Dignitá Uma­na como Concetto e Valore Costti­tu­zio­nale, p. 108) indaga: “É tutelado ju­ridicamente o embrião de poucos dias, não implantado no útero?” E responde: “Certamente, o óvulo extracorpóreo, fecundado e ainda não implantado, se trata de ‘vida pré-natal’. Mas é, no entanto, sempre vida e precisamente vida humana (não animal ou pré-humana). O óvulo fecundado não é coisa, criatura inferior, mas homem, pessoa — tertium non datur. A antecipação da tutela da vida e da dignidade humana a esta primeiríssima forma de vida humana é imposta pela Constituição.” E conclui: “A experiência histórica ensina que os progressos realizados em total boa fé pela pesquisa científica, transformadas em circunstâncias políticas, podem tornar-se fonte dos mais terríveis abusos.”

É uma questão que permanece em aberto.

Maria Garcia
Livre docente pela PUC-SP; professora de Direito Constitucional, Direito Educacional e Biodireito Constitucional na PUC-SP; vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-SP; membro da CoBi do HCFMUSP e do IASP; procuradora aposentada do Estado de São Paulo; membro-fundador e atual diretora geral do IBDC e membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas (Cadeira Enrico T. Liebman)

GARCIA, Maria. Ainda as pesquisas com células-tronco humanas. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 190, p. 16, set. 2008.

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