No final do ano passado foi publicada mais uma alteração legislativa atinente ao Código Penal brasileiro, qual seja, a Lei nº 11.596/2007. Dessa vez, o objeto da reforma cingiu-se à matéria da prescrição, modificando a redação original conferida pela reforma da Parte Geral de 1984, concernente ao inciso IV do artigo 117. Cuida este dispositivo das denominadas causas interruptivas da prescrição, ou seja, o artigo enumera os marcos que definem a interrupção do lapso temporal transpassado e, em regra, determinam o reinício imediato da contagem.
O texto modificativo apregoa que a prescrição passa a ser interrompida pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis. Anteriormente, o diploma legal apontava a interrupção tão-somente em razão da sentença condenatória recorrível. Uma leitura superficial, meramente textual, transmite a impressão de que a nova fórmula acrescenta mais um momento interruptivo, dificultando, evidentemente, o total transcurso do prazo prescricional e a subseqüente extinção da punibilidade nos termos do artigo 107, inciso IV, do Codex(1). Aliás, tal conclusão não foge dos perfunctórios diagnósticos vulgares a respeito da contenção da criminalidade. A demanda punitiva que emerge da sociedade exige do Poder Público maior eficiência, celeridade e rigidez com os supostos delinqüentes(2). Na medida em que o Estado é incapaz de apresentar qualquer proposta de compatibilidade entre eficiência e um sistema criminal racional, a resposta ao anseio popular sempre surge nas pontuais alterações legislativas, tais como a supressão de recursos, a vinculação sumulada de tribunais, o acréscimo de novos crimes e penas mais severos. A modificação do termo interruptivo prescricional, a propósito, insere-se neste mesmo e exato contexto.
Ocorre, todavia, que a leitura mais atenta do dispositivo talvez não permita atingir as mesmas conclusões obtidas pelos mais afoitos. A avaliação dos precedentes judiciais sobre o tema propicia uma percepção, ou interpretação, diferenciada. Nesse sentido, já se adianta, não aparenta qualquer equívoco a assertiva de que o texto modificativo apenas expressou — sob a linguagem legal — aquilo que há muito já estava consolidado na jurisprudência brasileira, nada mais(3).
A aplicação judicial e corrente do inciso IV em foco, em sua literalidade originária, havia deturpado, desde tempos, o conceito preciso do que se quer dizer sentença. Duas consolidações jurisprudenciais exemplificam, com rigor, esta constatação. Em primeiro lugar, nos processos de competência originária dos tribunais firmou-se o entendimento de que o acórdão, passível de recursos especial e extraordinário, possuía o condão de interromper a prescrição, pois supostamente onde a lei dizia “sentença condenatória” deveria ser lido “decisão condenatória”(4). Com isso, evitava-se a ocorrência da extinção da punibilidade em razão da lentidão dos julgamentos e da interposição posterior de recursos aos órgãos jurisdicionais superiores. Para sustentar tal tese, em que pese um notório alargamento de norma material penal, argumentava-se acerca de um conceito amplo de sentença que, por isso mesmo, compreenderia a condenação criminal no foro privilegiado, ainda que não proferida por julgador monocrático.
Um outro exemplo, talvez mais paradigmático, residia na hipótese do acusado absolvido em primeira instância. Nestes casos, a condenação surgiria apenas posteriormente, isto é, com o provimento do recurso de apelação inconformado com o édito absolutório. Percebe-se que, sob tais circunstâncias, o conceito de sentença é, ainda mais, alargado. O acórdão que reformou a sentença absolutória, em sentido estrito, assume a natureza de marco processual capaz de acionar o termo interruptivo previsto no artigo 117. Cuida-se, tal circunstância, de verdadeiro desvirtuamento das palavras da lei, criando, jurisprudencialmente, regra jurídica material causadora de notório prejuízo ao réu.
A presente alteração legislativa, assim, pretende legalizar estes entendimentos, tendo em vista que, a partir de sua edição, desnecessários serão os apelos a argumentos pouco convincentes ou mesmo ao elenco de precedentes que seguiram o mesmo traçado. Em outras palavras, a legislação sedimentou um entendimento que já existia, substituindo tão-somente o alvitre casuístico dos julgadores pela abstração e suposta racionalidade da lei. Neste cenário, a pergunta que verdadeiramente deve ser feita é: além da consolidação da jurisprudência de então, alterou a nova lei algum outro aspecto? A resposta indica um sentido negativo.
O erro do entendimento jurisprudencial majoritário anterior, consistente no vilipêndio da regra de que norma restritiva interpreta-se restritivamente não pode prevalecer em outros aspectos diante da novel legislação. Explica-se: não é porque a postura repressora foi legitimada pela lei editada que se abrirá o leque de iniqüidades. Tal observação é necessária porque uma leitura superficial do dispositivo poderia transmitir a falsa impressão de que se o agente foi condenado em primeira instância (tendo sido prolatada uma sentença), em caso de manutenção da reprimenda em segundo grau (por meio de um acórdão), permitir-se-ia novo marco interruptivo. Ledo engano, por variadas razões.
Em primeiro lugar, frisa-se, jamais se deve olvidar que regra restritiva de direitos, como in casu, interpreta-se de modo estrito(5). Na hipótese, o preceito legislativo limita o espectro de liberdade do indivíduo, tendo em vista que alarga o lapso temporal autorizador da repressão penal. Nesse influxo, deve ser aferido com reservas e do modo mais literal possível.
E assim é que o sentido da norma, aliando duas hipóteses (sentença e acórdão condenatórios recorríveis) pela conjunção alternativa ou,aponta que tal se concretizará em situações únicas que se excluem (em um caso ou outro). Do contrário, a dicção legal deveria utilizar-se de conjunção aditiva ou frisar as hipóteses com uma expressão, e.g., bem como. Poderia, ainda, estipular um novo inciso no artigo, com claro significado de enumeração, o que tampouco foi feito.
Por fim, a análise histórica jurisprudencial — vista acima — confirma a convergência do entendimento legal consoante tal lastro na concretude social no tempo, não podendo o secular instituto da prescrição(6) transformar-se em uma bula.
O que se demonstra, desse modo, é que a lei estabelece como marco interruptivo da prescrição a primeira condenação judicial do sujeito inculpado, seja em primeiro grau de jurisdição, seja em segundo (vale dizer, nos casos de competência originária dos tribunais).
Interpretação diversa fere nosso ordenamento jurídico(7), o qual, é sempre bom repetir, tem um comprometimento ideológico com as liberdades públicas(8), agasalhando em sua plenitude o Estado Democrático de Direito.
Notas
(1) Argumentando favoravelmente à interpretação extensiva do dispositivo: BARBAGALO, Fernando Brandini. “A interrupção da prescrição penal pela publicação de acórdão condenatório recorrível”. Boletim IBCCRIM. São Paulo, ano 15, nº 185, p. 16, abr. 2008.
(2) V., dentre outros, SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: Aspectos da Política Criminal nas Sociedades Pós-Industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp. 27 e ss.
(3) DELMANTO, Fabio de A.; RASSI, João Daniel & D’ELIA, Fábio Suardi. “Lei nº 11.596/07: alterações ao art. 117 do Código Penal”. Boletim IBCCRIM. São Paulo, ano 15, nº 182, p. 7, jan. 2008.
(4) Cf., a respeito: PORTO, Antonio Rodrigues. Da Prescrição Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 71; JESUS, Damásio E. de. Prescrição Penal. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 85.
(5) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 263.
(6) A perda do sentido da repressão criminal, ensejando-se a extinção da pena pelo decurso do tempo, já fora explicitada no século XVI por Deciano. Cf. SCHAFFSTEIN, Federico. La Ciencia Europea del Derecho Penal en la Epoca del Humanismo. Trad. Jose Maria Rodriguez Devesa. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1957, p. 116.
(7) Pois a metodologia empregada é a interpretativa conforme a Constituição. Nesse sentido, v. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 371-372.
(8) Sobre o rico tema, por todos, veja-se a obra de REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias. São Paulo: Saraiva, 2005.
Alamiro Velludo Salvador Netto, Mestre e doutorando em Direito Penal pela USP; pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha); coordenador-adjunto de Estudos e Projetos Legislativos do IBCCRIM e advogado
Luciano Anderson de Souza, Mestre e doutorando em Direito Penal pela USP; coordenador-adjunto de cursos do IBCCRIM; professor coordenador do curso de pós-graduação “lato sensu” em Direito Penal da ESA/OAB-SP e advogado
SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo; SOUZA, Luciano Anderson de. Novo marco de interrupção da prescrição penal: uma necessária leitura garantista. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 189, p. 4-5, ago. 2008.
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