sábado, 20 de setembro de 2008

Artigo: Delito de perigo abstrato – um retrocesso no código de trânsito brasileiro

A criminalidade no trânsito está sendo declarada como um dos principais fatores de problemas sociais dentro do nosso País. Diante deste problema, novamente o legislador socorre-se, sem critérios, do Direito Penal para a “solução” dos crimes de trânsito.

A medida que mais se destaca nas modificações introduzidas pela Lei 11.705, de 19 de junho de 2008, foi o retorno à utilização do delito de perigo abstrato, tão contestado pela doutrina no passado.

É notório que a Política Criminal expansiva está tomando conta das reformas operadas pelo governo, utilizando-se cada vez mais tipos penais abertos e de perigo abstrato, que permitem o fechamento pelo juiz e a antecipação das barreiras de punição.

Assim, os delitos contra a segurança do trânsito pertencem ao grupo dos denominados “delitos de perigo comum”, expressão com que um setor doutrinal vem designando uma série de figuras delitivas caracterizadas não pelo mero fato de nos encontrarmos ante a descrição típica de uma estrutura de delito de perigo, senão pela circunstância de referir-se o perigo a uma coletividade indeterminada de pessoas(1). A criação desses tipos responde a uma opção político-criminal a favor do adiantamento de barreiras de proteção, que dá lugar a configuração de bens jurídicos espiritualizados, de natureza supra-individual, como é o da segurança do trânsito(2).

Dado que o âmbito ao que se refere à empresa de proteção, que é um âmbito de proteção massiva de processos de risco, em que se produzem múltiplos comportamentos licitamente perigosos e múltiplos processos ilicitamente perigosos de diferentes entidades, a tarefa do legislador penal afronta o desafio fundamental de selecionar unicamente as condutas mais graves e de se­le­cioná-las com precisão(3). Vai nisso, ademais da própria eficácia da intervenção penal, a vigência dos elementares princípios de intervenção mínima e legalidade.

Para a consecução do objetivo citado de intervenção mínima, precisa e eficaz na proteção da segurança do trânsito, conta o legislador, em princípio, com diversas técnicas de tipificação: pode exigir, em primeiro lugar, através de cláusulas de resultado, que a conduta haja provocado certa situação de perigo: neste caso pode requerer que o risco gerado tenha uma determinada intensidade ou pode conformar-se com que traspasse a fronteira do permitido; pode optar, assim mesmo, pela descrição de uma conduta cuja realização implique necessariamente na geração de um risco relevante — com o auxílio ou não de cláusulas de idoneidade ou de não exclusão da perigosidade —; pode, finalmente, limitar-se a definir uma conduta que, freqüentemente ou em certos casos, é perigosa ou pode gerar riscos(4).

A utilização de uma ou outra técnica, ou de uma ou outra variante dentro das mesmas, não é inócua. No caminho que vai da primeira à última ganhamos precisão e facilidades para a constatação judicial do fato delitivo; em contra perde-se no caminho tanto o princípio da intervenção mínima como o argumento de lesividade frente à legitimação da norma(5).

A técnica de tipificação buscada pelo legislador no Código de Trânsito até a presente reforma foi a de tipificar as condutas como sendo de perigo concreto (arts. 306, 308, 309, 310 e 311), isso porque ao final dos tipos penais encontram-se os termos: “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”; “desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada”; “gerando perigo de dano”; etc.

Com as recentes modificações introduzidas pela Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008, retornamos à utilização de delitos de perigo abstrato, isto porque basta a mera condução do veículo automotor com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (art. 306, CTB) para que se configure o crime.

Portanto, o motorista que for flagrado dirigindo embriagado, de acordo com a nova lei, já cometeu o crime de trânsito, pois se trata de mera presunção de perigo (perigo abstrato). Ainda que o motorista esteja conduzindo o veículo corretamente, isto é, na mão correta de direção, em velocidade compatível, com o uso correto do cinto de segurança, respeitando a sinalização etc., estará sujeito à pena prevista no Código de Trânsito Brasileiro.

Como a pena permite a prisão em flagrante, por sorte o legislador não alterou a possibilidade de fiança, o motorista, sem a prova do perigo, deverá submeter-se à prisão e, após o pagamento da fiança, posto em liberdade. Num País em que o sistema penitenciário é caótico, faltam milhares de vagas, o legislador propõe mais uma forma de ingresso naquele sistema.

No sentido de defesa dos delitos de perigo abstrato, afirma-se que o adiantamento da barreira de intervenção penal inclusive aos momentos anteriores a colocação em perigo, obedece-se a uma regra de experiência, neste caso empiricamente contrastada, que permite afirmar a perigosidade inerente a determinados comportamentos. Isso foi explicado, no delito de dirigir embriagado, por Silva Sánchez a partir da consideração da conduta típica como um caso de “imprudência sem resultado” criminalizada excepcionalmente ao menos por duas razões: em primeiro lugar, por tratar-se de uma imprudência permanente, que se prolonga no tempo, o qual a torna mais perigosa que um ato isolado; em segundo lugar, a situação descrita admite uma maior objetivação da infração do dever de cuidado em comparação com outras formas de condução perigosa (cansaço ou sono, por exemplo)(6).

O problema referido de adiantamento das barreiras de proteção penal parece contrastar com a antijuridicidade material, é dizer, estaríamos desvalorando a simples ação do sujeito, independentemente da produção do resultado. Assim, nos delitos de perigo abstrato não se faz necessária a verificação de um resultado de perigo concreto para a vida ou integridade física das pessoas, posto que o perigo é presumido. Basta a condução do veículo com a concentração superior de álcool prevista na lei.

Concepción Salgado menciona que a maioria da doutrina reconhece a necessidade de que o legislador empregue a técnica de tipificação dos delitos de perigo; em geral, resulta modificada a opinião quanto à forma em que este se apresente, pois enquanto para alguns a modalidade abstrata deve seguir mantendo-se dentro do texto punitivo no marco dos delitos de trânsito, com o efeito de lograr a maior garantia possível para a sua segurança, outros, pelo contrário, censuram sua presença ao entender, bem que o tipo de injusto não admite mais que a categoria de delitos de perigo concreto, bem que resultam incompatíveis com o princípio da legalidade ou dificilmente reconduzíveis ao conceito de culpabilidade(7).

Quanto a este problema, merece procedência a distinção e a crítica de Bustos Ramírez quando leciona que são delitos de perigo concreto aqueles em que a probabilidade da lesão concreta implica de algum modo uma comoção para o bem jurídico, é dizer, que temporal e espacialmente o bem jurídico provavelmente afetado esteve em relação imediata com a colocação em perigo; isto tem importância desde o ponto de vista processual-penal, pois é necessário então provar que um bem jurídico foi posto em perigo, que houve uma relação entre o comportamento típico do sujeito e o bem jurídico. Nos delitos de perigo abstrato, em troca, presume-se ipso iure o perigo para o bem jurídico, não havendo, pois, possibilidade de prova em contrário, basta comprovar a realização do comportamento típico, desde então que a doutrina se há declarado contra (cf. Barbero), pois se opõe ao princípio garantidor de nullum crimem sine iniuria, que surge de uma concepção material da antijuridicidade e do injusto. No fundo, mediante o recurso ao delito de perigo abstrato pode-se estar castigando criminalmente em razão a uma determinada visão moral, política ou social, ou bem, uma mera infração administrativa(8).

Conclui Bustos Ramírez que se deve comprovar uma determinada relação de comoção ao bem jurídico, sendo suficiente falar de delitos de perigo concreto. Diferente é rebaixar a hipótese de probabilidade a simples possibilidade, pois conceitualmente então tudo é possível, não há conceitualmente nem ontologicamente nenhuma determinação; em tal caso a tendência é voltar aos delitos de perigo abstrato em que a prova do comportamento típico implica já o perigo, pois justamente essa foi a razão que inspirou o legislador, a razão legislativa (ou estatal) se converte ipso iure em constitutiva do injusto sem mais(9).

Portanto, nas modificações introduzidas pelo legislador através da Lei 11.705, de 19 de junho de 2008, retornou-se à utilização dos delitos de perigo abstrato no art. 306 do CTB, o que significa dizer que não é mais necessária a prova da existência do perigo. Tal modificação representa um retrocesso do legislador, tendo em vista a natureza material da antijuridicidade e também a moderna visão do Direito Penal implica em levar em conta não só o desvalor da ação, mas, também, o desvalor do resultado.

Notas

(1) SUMALLA, Jose Maria Tamarit. Comentarios a la Parte Especial del Derecho Penal. Arazandi Editorial, 1996, p. 1.042.

(2) SUMALLA, Jose Maria Tamarit. Ob. cit., p. 1.042.

(3) LASCURAIN SANCHEZ, Juan Antonio. Comentarios al Codigo Penal. Editorial Civitas, 1997, p. 1.039.

(4) LASCURAIN SANCHEZ, Juan Antonio. Ob. cit., p. 1.039.

(5) LASCURAIN SANCHEZ, Juan Antonio. Ob. cit., pp. 1.039/1.040.

(6) SUMALLA, Jose Maria Tamarit. Ob. cit., p. 1.044.

(7) CARMONA SALGADO, Concepción. Manual de Derecho Penal, Parte Especial. Editoriales de Derecho Reunidos, p. 94.

(8) BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Manual de Derecho Penal Español, Parte General. Ariel Derecho, p. 191.

(9) BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Ob. cit., p. 192.

André Luís Callegari
Advogado; doutor em Direito Penal na Universidad Autónoma de Madrid; coordenador executivo do Curso de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e professor nos cursos de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) na mesma Universidade.

CALLEGARI, André Luis. Delito de perigo abstrato: um retrocesso no código de trânsito brasileiro. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 189, p. 14, ago. 2008.

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