terça-feira, 2 de setembro de 2008

Artigo: Artigo: Audiência sem a presença do réu preso

Quando nosso Código de Processo Penal foi promulgado, algumas questões não eram tão palpitantes como são hoje. Não se anteviu, por exemplo, que o Estado nacional atual deflagraria centenas de operações policiais com repercussão em todo território nacional, criando uma situação nova – pelo menos na quantidade hoje verificada – de réus presos num determinado Estado, mas respondendo a processos que correm em outro ente da Federação.

Salvo raríssimas exceções, na maioria das vezes, o Estado – alega que – não está suficientemente aparelhado para transportar o acusado de um Estado a outro da Federação, o que, na prática, tem representado um odioso amesquinhamento do direito de presença e de audiência, corolário do devido processo legal e da ampla defesa.

Nesse passo, das oito garantias que constituem o devido processo legal, na visão de Rogério Lauria Tucci, quais sejam “a) de acesso à Justiça Penal; b) do juiz natural em matéria penal; c) de tratamento paritário dos sujeitos parciais do processo penal; d) da plenitude de defesa do indiciado, acusado, ou condenado, com todos os meios e recursos a ela inerentes; e) da publicidade dos atos processuais penais; f) da motivação dos atos decisórios penais; g) da fixação de prazo razoável de duração do processo penal; e, h) da legalidade da execução penal”[1], três se mostram afrontadas quando um juiz realiza audiência criminal sem a presença do réu, a saber, o acesso à Justiça Penal, o tratamento paritário entre as partes, já que o órgão ministerial está sempre representado nas audiências, mesmo nas precatórias, ou pelo menos lhe é garantido o direito de presença e, por último, a plenitude de defesa.

Atente-se, ainda, que a complexidade probatória das causas modernas, sobretudo, as originadas de investigações com monitoramento de conversas telefônicas, conferem ao réu um novo papel no processo criminal, que é o de auxiliar, passo a passo, a defesa técnica no esclarecimento de fatos e no questionamento de pontos obscuros, por vezes, decisivos para a obtenção do resultado absolutório.

Nesta perspectiva, mormente nas audiências de oitiva de testemunhas de acusação, a presença do réu é indispensável, a fim de que possa munir a defesa técnica do arsenal necessário para o regular exercício do contraditório, contestando fatos, pondo dúvidas sobre outros e requerendo o esclarecimento de outros tantos.

Sobre essa matéria, Antonio Scarance Fernandes explica que “decorre da ampla defesa constitucional a garantia da autodefesa. A autodefesa, de que aqui se cuida é aquela exercida pelo próprio acusado, em momentos fundamentais do processo, não a que é patrocinada por advogado em seu próprio benefício, quando acusado em processo criminal”[2].

Continua afirmando que “esse direito se manifesta no processo de várias formas: direito de audiência, direito de presença, direito a postular pessoalmente”. Mais adiante, esclarece que “a segunda garantia da autodefesa é o direito de presença, por meio do qual se assegura a oportunidade de, ao lado de seu defensor, acompanhar os atos de instrução, auxiliando-o na realização da defesa”.

Dessa forma, arremata Scarance, que “a ofensa ao direito do acusado de exercer sua própria defesa constitui causa de nulidade”. E mais, “é necessária a intimação do acusado para os atos processuais, a fim de ser-lhe garantido o direito de acompanhá-los, só sendo dispensada quando for revel (art. 367)”.

Apesar da importância do tema, até muito pouco tempo o Supremo Tribunal Federal, salvo o entendimento isolado do Ministro Celso de Mello[3], entendia não configurar a ausência do réu preso em audiência uma nulidade capaz de anular o processo.

Mais recentemente, entretanto, a nova composição da 2ª Turma do Pretório Excelso decidiu à unanimidade sufragar o antes vencido entendimento do seu decano, acoimando de nulidade absoluta a realização de audiência sem a presença do réu preso[4].

Extrai-se daquele precedente que a Col. Suprema Corte, flexibilizando inclusive o rigor da Súmula 691, deferiu ex officio a ordem pleiteada, asseverando que “o acusado, embora preso, tem o direito de comparecer, de assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal, que se realiza, sempre, sob a égide do contraditório. São irrelevantes, para esse efeito, as alegações do Poder Público concernentes à dificuldade ou inconveniência de proceder à remoção de acusados presos a outros pontos do Estado ou do país, eis que razões de mera conveniência administrativa não têm – nem podem ter – precedência sobre as inafastáveis exigências de cumprimento e respeito ao que determina a Constituição”[5].

Prossegue o acórdão consignando que “o direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do ‘due process of law’ e que asseguram, por isso mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/ ONU (artigo 14, n. 3 “d”) e Convenção Americana de Direitos Humanos/ OEA (artigo 8º, § 2º, “d” e “f”)”.

Assim, os e. Ministros concluíram que “essa prerrogativa processual reveste-se de caráter fundamental, pois compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, mesmo que se trate de réu processado por suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes equiparados”.

De forma ainda um pouco tímida, a decisão do STF já começa a ecoar pelos demais pretórios do país, como ilustra, por exemplo, o voto vencido proferido pelo e. Des. Fed. Élcio Pinheiro de Castro, do Tribunal Regional Federal da 4ª região, no habeas corpus nº. 2007.04.00.043027-1/PR que concedia a ordem “para assegurar aos pacientes o direito de presença em todas as inquirições de testemunhas de acusação e de defesa”[6].

Infelizmente, naquela ocasião, prevaleceu o voto do e. Des. Paulo Afonso Brum Vaz, no sentido de que “não constitui nulidade a ausência de requisição de réu preso para acompanhar inquirição de testemunha em juízo deprecado. A dimensão geográfico-continental brasileira e o tão reivindicado julgamento dos litígios em um prazo razoável faz com que a necessidade de apresentação do denunciado em todas as audiências deprecadas, conforme assentado pelo Pretório Excelso no julgamento do HC nº. 86.634, destine-se a situações excepcionais, tal como a necessidade de reconhecimento do autor do fato ilícito”.

Neste precedente do Col. TRF4, o qual poderá ainda ser revisto, já que a Turma não estava na sua composição original, que inclui o e. Des. Fed. Luiz Fernando Wolk Penteado, há dois pontos que merecem ser sublinhados.

O primeiro deles é que referido acórdão trata de ausência do réu nas audiências realizadas no juízo deprecado, o que não significa, a priori, que em audiência realizada no juízo processante, a Turma venha a adotar o mesmo entendimento.

Seja como for, embora tanto num caso como no outro, não se pode desincumbir o Estado de garantir o comparecimento do réu, é induvidosa, por outro lado, a maior dificuldade disto ser feito quando o processo corre num Juízo, a testemunha mora em outro e o réu está preso num terceiro.

É claro que o réu não decide onde o processo contra ele será instaurado, e isto nos leva a sustentar que, seja qual for o gasto financeiro e operacional para transportar um acusado de um lugar a outro, não pode o Estado deixar de assim proceder.

Afinal, se as dimensões territoriais do país não são empecilho para o Estado executar operações de âmbito nacional, o mesmo aparato estatal deve estar a serviço do devido processo legal, que tem como um dos seus corolários o direito de todo acusado a comparecer, presenciar e assistir os atos do processo que poderão, ao final, ser usados para condená-lo.

A nosso ver, portanto, obsoleto se mostra o argumento do acórdão gaúcho de que “A dimensão geográfico-continental brasileira e o tão reivindicado julgamento dos litígios em um prazo razoável faz com que a necessidade de apresentação do denunciado em todas as audiências deprecadas, conforme assentado pelo Pretório Excelso no julgamento do HC nº. 86.634, destine-se a situações excepcionais”[7].

Como ocorre com inúmeras outras questões de índole penal, o Supremo sai na vanguarda da salvaguarda dos mais comezinhos direitos e garantias fundamentais, o que é, embora sem força vinculante e sem muita ressonância no resto do país, um paradigma importante, que pode se tornar, e assim se espera que o seja, uma pioneira mudança de posicionamento dos Tribunais sobre o tema.

[1] TUCCI, Rogério de Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004. p. 67.

[2] FERNANDES. Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 4ª edição. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, pp. 293 e 294.

[3] STF, HC nº. 81.322/SP, Rel Min. Celso de Mello, Redator para acórdão Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma j. 25.02.2003.

[4] STF, HC nº. 86.634, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, j. 18.12.2006, DJ 23.02.2007.

[5] STF, HC nº. 86.634, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, j. 18.12.2006, DJ 23.02.2007, grifamos.

[6] TRF4, HC nº. 2007.04.00.043027-1/PR, Rel. Des. Élcio Pinheiro de Castro, Redator para acórdão Des. Paulo Afonso Brum Vaz, 8ª Turma, j. 13.02.2008.

[7] TRF4, HC nº. 2007.04.00.043027-1/PR, Rel. Des. Élcio Pinheiro de Castro, Redator para acórdão Des. Paulo Afonso Brum Vaz, 8ª Turma, j. 13.02.2008.


Fábio Tofic Simantob
Advogado criminal/SP
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

Carolina de Queiroz Franco Oliveira
Advogada criminal/SP


SIMANTOB, Fábio Tofic, OLIVEIRA, Carolina de Queiroz Franco. Audiência sem a presença do réu preso. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 02.09.2008.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog