quarta-feira, 22 de abril de 2015

Redução da maioridade penal é um argumento de política


Infelizmente está avançando no Congresso Nacional o projeto de redução da maioridade penal, recentemente aprovado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados, que a considerou constitucional. Projeto este de péssima política criminal (com o qual, portanto, não concordamos) por experiências de países mundo afora terem demonstrado que ela não reduz a criminalidade nem aumenta a segurança pública, ao passo que aumenta as despesas do Estado no sustento de prisioneiros (descipiendo falar que o Estado não pode deixar presos “morrerem de fome” nem deixá-los em masmorras medievais, não obstante muitas de nossas prisões assemelhem-se a tais masmorras – situação fática inconstitucional). Logo, que não se duvide de nossa oposição tal redução.
Contudo, não obstante a opinião de diversos juristas no sentido de que a idade de 18 anos para fins de maioridade penal se constituiria como “cláusula pétrea”, consideramos tal tese incorreta, por pautada em manifesto equívoco.
Primeiramente, vamos lembrar da teoria das garantias institucionais. Segundo tal teoria, algumas instituições seriam de importância tida como fundamental à sociedade e, como tais, deveriam ser preservadas, não (segundo pensamos) como fins em si mesmos, mas como meios para garantia de algum valor social relevante. Pois bem, segundo dita teoria, embora possível a alteração do regime jurídico caracterizado como “garantia institucional”, essa alteração não poderia ser de tal monta que gerasse a “desnaturação” do “instituto” em questão. Na precisa lição de Paulo Bonavides[3], visa a teoria resguardar que determinadas instituições não sejam suprimidas ou ofendidas em seu conteúdo essencial, visando assegurar sua permanência e embargando eventual supressão ou mutilação da mesma, de sorte a garantir-lhe um mínimo de substantividade ou essencialidade.
Pois bem. Entendemos que a garantia institucional refere-se à “maioridade penal”, não à idade de “18 anos”. Tal idade evidentemente se refere a um critério psicológico-normativo, ou seja, em razão de se estimar que pessoas de 18 anos de idade, em média, são psicologicamente maduras para aferir a gravidade de seus atos e por eles se responsabilizar, fixou-se normativamente essa idade como critério (de presunção absoluta) para a definição da maioridade penal. Contudo, a menos que se admita que normas jurídicas (ainda mais constitucionais) possam ser “justificadas” por pura arbitrariedade/irracionalidade (ainda que tal irracionalidade/arbitrariedade decorra da evolução dos costumes e experiências sociais), afigura-se-nos indefensável dizer que a “idade” de “18 anos” seria a cláusula pétrea. Entendemos que a cláusula pétrea se refere ao instituto da “maioridade penal”, não à “idade” que caracteriza a maioridade penal.
Todavia, entendemos que uma alteração da idade respectiva demandaria um estudo social sério, realizado pelo menos por profissionais da psicologia e da assistência social (e eventualmente outros cujos conhecimentos se julguem necessários), o qual provasse que a média das pessoas país aforatem, aos 16 anos, maturidade emocional (psicológica) suficiente para ser responsabilizada penalmente pelos seus atos.
Lembremos do dito popular segundo o qual “O Brasil não é São Paulo” (ou o Rio de Janeiro, ou Belo Horizonte, ou Porto Alegre, ou qualquer grande centro urbano que seja). Embora seja uma pré-compreensão, entendemos ser possível (senão provável) que muitos(as) adolescentes de 16 anos dos “rincões” de nosso país ainda tenham a “inocência” imaginada pelo Constituinte Originário em 1988 para fins de menoridade penal. Mas, realizada uma tal pesquisa e aferindo-se tal maturidade da média de cidadãos brasileiros, não haveria óbice à redução, que não causaria violação ao princípio do retrocesso social, pois retrocesso seria tratar “adolescentes” de forma igual à de adultos, mas sendo válida a consideração de pessoas de 16 anos como adultas por uma evolução social quanto à sua maturidade, retrocesso nenhum haveria porque teríamos, aqui, adultos após a redução.
Assim, o que é inadmissível (e, portanto, inconstitucional por violação do princípio da razoabilidade, por arbitrariedade) é a redução da maioridade penal por puros “achismos”, sejam eles oriundos de parcela da sociedade ou do Congresso Nacional. Não adianta realizarem-se pesquisas, ainda mais as limitadas a grandes centros urbanos, perguntando a opinião da população sobre se é favorável ou contrária à redução da maioridade penal. Sendo a maioridade penal uma garantia fundamental, a ela se aplica a lógica dos direitos (e garantias) fundamentais enquanto mecanismos de proteção das minorias e grupos vulneráveis em geral contra a opinião da maioria. Até porque a democracia, enquanto governo do povo, pelo povo e para o povo, deve ser entendida enquanto governo protetivo de todo o povo, logo, também de suas minorias e grupos vulneráveis.
Tensões entre constitucionalismo e democracia à parte (e vivemos em uma democracia constitucional), o que o instituto da “maioridade penal” visa garantir é que pessoas sem a maturidade necessária para compreender a gravidade de seus atos sejam imputáveis criminalmente, ou seja, sofram sanções penais destinadas a pessoas “maiores e capazes”, a saber, pessoas aptas a controlar suas atitudes (não se guiando por pura emoção/instinto) e que tenham a maturidade necessária para compreender a ilicitude e gravidade de seus atos. Portanto, a “idade” relativa à maioridade penal não pode ser vista como “cláusula pétrea”; a cláusula pétrea é a “maioridade penal” abstratamente considerada.
O que seria inconstitucional seria abolir o instituto da maioridade penal para se permitir que crianças ou adolescentes fossem “julgadas(os) como adultas(os)”, como ocorre em (pelo menos) parte dos EUA. Ou então reduzir a maioridade penal para, digamos, 10 ou 12 anos, porque aí o instituto estaria, a nosso ver, completamente desnaturado, pois aí estaria destruído todo o regime jurídico destinado à adolescência, atualmente regulamentado pelo ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente.
É evidente que não estamos propondo a interpretação da Constituição pelo ECA, mas a partir do momento que a Constituição fala em crianças “e adolescentes” e determina que a eles(as) seja garantida “absoluta prioridade” (art. 227), então não se pode abolir ou inviabilizar “o instituto” da adolescência. Nem se diga que se poderia alterar o critério legal do ECA (atualmente, menores de 12 anos são “crianças” e “maiores de 12 e menores de 18” são “adolescentes”), pois diminuir a quantidade de anos da vivência enquanto “criança” parece-nos atentar contra os direitos das crianças, que seriam forçadas a “amadurecerem mais rápido”.
Lembre-se que existe hoje um “Direito Penal da Menoridade”. Menores infratores são puníveis, nos termos do ECA. Logo, diminuir o tamanho da “infância” e consequentemente forçar as pessoas a amadurecerem mais rápido em tão tenra idade não nos parece compatível com o princípio constitucional da absoluta proteção de crianças e adolescentes (art. 227).
Foi-nos feita a comparação com a pena de morte. Foi-nos dito que, se tais “pesquisas sociais sérias” provassem que a pena de morte seria necessária, então, “por nossa teoria” (sic), seria possível a aprovação de uma PEC permitindo a pena de morte. Contudo, discordamos veementemente da comparação, que julgamos uma “falsa analogia”, pela dessemelhança fundamental das situações. A “pena de morte” é, ela própria, a garantia institucional de um lado, ao passo que a “maioridade penal” é a garantia institucional do outro.
O que se quer garantir com a proibição da pena de morte é que o Estado mate uma pessoa em razão de seu(s) crime(s), ao passo que o que se quer garantir com a maioridade penal é que não sejam aplicadas penas criminais do “Direito Penal dos Adultos” a pessoas que não são psicologicamente maduras para aferir a gravidade de seus atos e por eles se responsabilizar. Daí justificar-se a distinção e mostrar-se improcedente a comparação feita.
O que não podemos concordar é com uma espécie de teoria da “arbitrariedade normativa”, uma teoria que diga que a idade de 18 anos teria sido arbitrariamente (ou “discricionariamente”) fixada e por isso seria imutável, ou que a idade seria cláusula pétrea mesmo que a evolução social mostrasse que a idade já se revela exagerada ante a maior maturidade emocional da média da população com a idade que se pretende ser o novo parâmetro psicológico-normativo para a maioridade penal ou algo do gênero.
Uma tal postura ou é “originalista” (anacrônica visão que acha que o texto normativo só poderia ser interpretado segundo a “intenção” dos fundadores da Constituição, algo inaceitável já que inviabiliza o próprio fenômeno da interpretação evolutiva/construtiva ou, por outra perspectiva, da mutação constitucional), ou simplesmente defende que o constituinte originário teria uma “discricionariedade” para definir de forma arbitrária os institutos jurídicos e, assim, teria uma “discricionariedade arbitrária”, verdadeira contradição em termos (já que discricionariedade não se confunde com arbitrariedade).
Entenda-se, nesse contexto, que algo ser constitucionalmente possível não significa que é constitucionalmente obrigatório: a entender-se pela constitucionalidade da redução da maioridade penal, ela não se tornará constitucionalmente obrigatória por isso. Haverá discricionariedade do legislador para decidir se a altera ou não, pelos profundos efeitos de política criminal decorrentes da redução, mas não se pode concordar com a aceitação da arbitrariedade de uma norma, pois o Direito, enquanto ciência, tem que ter o seu objeto de estudo científico (a norma jurídica) compreendido(a) como um produto racional, justificável racionalmente, não um produto fruto de pura arbitrariedade. Do contrário, improvável que gere pacificação social (e com justiça).
Em outra perspectiva, mais radical inclusive, podemos compreender a maioridade penal em 18 anos como um argumento de política e não de princípio (no sentido de Dworkin), embora tais argumentos estejam interligados, já que os argumentos de política devem servir para a realização de princípios[4]. Os argumentos de política pretendem ampliar o bem-estar de uma parcela da comunidade ou de toda ela, enquanto osargumentos de princípio visam garantir o respeito aos direitos de igualdade, liberdade, devido processo ou outro padrão de moralidade. Em outras palavras, os argumentos de princípio podem ser ligados aos direitos fundamentais, enquanto os argumentos de política se ligam a princípios políticos estabelecidos no Texto Constitucional.
Pois bem. Em nossa perspectiva, a redução da maioridade penal seria umargumento de política, pois não há qualquer direito fundamental envolvido, já que ninguém tem um direito fundamental de não ser processado criminalmente somente a partir dos 18 anos. Inclusive, a responsabilidade jurídica é variável se pensarmos apenas nas áreas cível e criminal.
O que não se atentou ainda foi para o fato de que, embora a maioridade penal em 18 anos não seja um argumento de princípio e, portanto, uma “cláusula pétrea”, isso não significa que se deva alterar tal dispositivo constitucional. Afinal, lembramos: argumentos de política devem servir para a realização dos princípios (direitos fundamentais).
E aí retornamos à questão das garantias institucionais: há fundamentos racionais consistentes que demonstrem que a redução da maioridade penal levará necessariamente à redução da criminalidade e aumento do bem-estar de toda ou de parte da população? Quais são os dados empíricos/científicos que comprovam isso?
Parece que a resposta para as duas questões e outras que podem ser feitas sobre o tema receberão uma resposta contrária à redução da maioridade penal.
Portanto, apesar de não ser aprioristicamente inconstitucional, a proposta é politicamente contraproducente, porque se funda em “achismos” e não leva a sério a questão da criminalidade e da violência, configurando-se em um erro político e moral (e, por ser pautada em “achismos”, torna-se arbitrária e, como tal, inconstitucional por violadora do princípio da razoabilidade).
Em suma: (i) não é aprioristicamente inconstitucional toda e qualquer proposta de redução da maioridade penal, já que a garantia institucional (a cláusula pétrea) se refere à maioridade e não à idade ali fixada, visto que o critério imanente à norma atual é o psicológico, a maturidade da pessoa em saber a gravidade de seus atos para fins de sua responsabilização penal pelo “Direito Penal dos Adultos”; (ii) a atual PEC de redução da maioridade penal nos parece inconstitucional pela arbitrariedade do critério proposto (logo, vulnerador do princípio da razoabilidade), visto que não pautado por uma pesquisa social de âmbito nacional, realizada no mínimo por psicólogos e assistentes sociais, apta a verificar se a idade proposta corresponde à média nacional (e não apenas à média dos “grandes centros” urbanos) corresponde à idade na qual as pessoas se encontram (reitere-se, em média) psicologicamente maduras para aferir a gravidade de seus atos e por eles se responsabilizar.
 

[1] Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru. Especialista em Direito Constitucional pela PUC/SP. Advogado e Professor Universitário. Autor do livro “Manual da Homoafetividade...” (2ª Ed., São Paulo: Ed. Método, 2013), de artigos jurídicos diversos, coautor de outras obras jurídicas.
[2] Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG). Professor de Teoria da Constituição, Direito Constitucional, Direito Administrativo e Hermenêutica e Argumentação Jurídica do Curso de Direito da PUC Minas Serro. Autor das obras: Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio na Constituição de 1988 (2ª Ed.); Teoria da Constituição (4ª Ed.) e Uma Teoria dos Direitos Fundamentais (2ª Ed.), todas publicadas pela Livraria e Editora Lumen Juris.
[3] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 30ª Ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010, pp. 537, 539 e 541-542.
[4] Sobre isso, vide OMMATI, José Emílio Medauar Ommati. Uma Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª Ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
José Emílio Medauar Ommati é mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG e professor de Teoria da Constituição, Hermenêutica, Direito Constitucional e Administrativo no Curso de Direito da PUC Minas Serro.
 é advogado e professor. Mestre em Direito Constitucional. Autor do livro Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos (2a Ed., São Paulo: Ed. Método, 2013).
Revista Consultor Jurídico, 21 de abril de 2015.

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