Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo deste sábado (30/1)
A Constituição diz que "o Estado indenizará o condenado por erro judiciário". É como se a falibilidade do sistema fizesse parte das regras do jogo.
O erro clássico, conforme o Código de Processo Penal, é o constatado a partir da revisão criminal — recurso previsto para reverter a condenação definitiva contrária à prova dos autos, baseada na falsidade documental ou de testemunhos e pelo aparecimento de prova nova.
As controvérsias em torno da série documental Making a Murderer ("Fabricando um Assassino"), lançada em dezembro pela Netflix (as diretoras Laura Ricciardi e Moira Demos são criticadas pela parcialidade, como mostram a resenha de Luciana Coelho, Ilustrada, 24/1, e a edição da revista The New Yorker, de 25/1), não impedem a verificação de que a primeira condenação do estranho Steven Avery, em Wisconsin, foi anulada depois de grotesca manipulação processual e de anos de encarceramento, quando o exame de DNA se instalou no ambiente forense norte-americano.
No Brasil, prisões indevidas pipocam no noticiário. É o caso de cidadão de Santa Catarina, solto depois de cumprir cinco anos por latrocínio e indenizado com mais de R$ 1 milhão por danos morais e materiais.
Mas quantos erros judiciários permanecem ocultos porque o direito de defesa, sobretudo em favor de pobres, é mera formalidade? E quantas vítimas ficam sem reparação por falta de meios ou de coragem de pedir, ou porque o erro, conforme o entendimento dos tribunais, só é indenizável quando decorre de dolo, fraude ou negligência de agentes do poder público?
Prisões por engano fazem parte do cotidiano, às vezes revertidas no curso do processo. Por vários motivos. O ator Vinícius Romano permaneceu 16 dias em presídio do Rio porque a vítima se equivocou na hora do reconhecimento. O servente Reginaldo da Silva foi para a Penitenciária de Araraquara porque tem o mesmo nome do verdadeiro assassino, apesar de ser negro e o criminoso, branco. José Delcídio dos Santos foi ao Poupatempo de Osasco e saiu preso porque o verdadeiro culpado de crime praticado no Acre teria usado sua identidade para produzir um RG falso.
A Justiça falha porque a polícia é incompetente, tecnologicamente defasada e corrupta. Falha porque policiais não fazem o reconhecimento de pessoas com as cautelas da lei. Falha porque despreza linhas de investigação e, assim, as pistas desaparecem. Falha porque juízes são compreensivos com abusos e com a ineficiência oficial.
Falha porque prende sem necessidade ou exagera no tamanho da pena. Falha por se considerar infalível, por não se manter equidistante e por se deixar levar pelo embalo simpático da opinião pública. Falha porque é preconceituosa, insensível, às vezes tosca, e não escuta o que o suspeito tem a dizer.
Por outro lado, falha também quando não pune quem merece ser punido. Falha quando os processos se arrastam até a prescrição, o que encerra o caso sem veredito.
Se a perspectiva do erro judiciário é de fato inevitável — quanto mais sofisticados os instrumentos de investigação, mais surpreendente será o risco de julgamentos equivocados —, a tolerância zero com os desvios e omissões de autoridades é caminho eficaz para a Justiça melhorar.
Luís Francisco Carvalho Filho é advogado e colunista do jornal Folha de S.Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 30 de janeiro de 2016.
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