O advogado que milita na área penal sabe o quão importante é a correta condução de qualquer investigação preliminar para assegurar que não haja instauração desnecessária de uma futura ação penal, com as nefastas consequências que dela derivam para o acusado. Ter conhecimento de que contra si tramita uma investigação é crucial para o exercício do direito à não auto-incriminação, que sempre deveria ser expressamente informado, junto à possibilidade de assistência por um advogado (artigo 5º, LXIII, da Constituição).
Por outra perspectiva, o operador que atua na persecução penal também sabe o valor de indícios colhidos de forma adequada e no momento certo para garantir que eventuais condenações sejam formal e materialmente justas, evitando o acionamento indevido ou excessivamente custoso e vagaroso da máquina judiciária.
Nesse sentido, em boa hora, a recente lei 13.245/2016 alterou o artigo 7º do Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei 8.906/1994), que trata dos direitos do advogado, para reformular o inciso XIV (acesso aos autos de investigação) e incluir o inciso XXI (assistência de clientes investigados durante a apuração de infrações).
Poderia aparentar desnecessário legislar sobre tema que emana de uma leitura sistemática da Constituição Federal (“dizer o óbvio”), porém a realidade da postura atual das agências punitivas – muitas vezes abusiva e excessivamente apegada ao texto de lei – aponta em sentido oposto, sendo salutar a criação de regras claras e objetivas no sentido de resguardar os direitos e garantias fundamentais do cidadão.
Não há dúvida de que a maneira retrógrada com que certas garantias fundamentais são afastadas de forma banal no processo penal brasileiro deriva de uma cultura inquisitorial ditatorial, construída por um discurso opressor tradicional enraizado no agir dos operadores jurídicos, sendo a negativa de acesso às investigações apenas mais uma demonstração do temor pela verdadeira democracia. Isso explica o porquê desta discussão ser totalmente dispensável em outros ordenamentos jurídicos que culturalmente respeitam os alicerces mais básicos do Estado de Direito. A própria estrutura “investigação preliminar/processo penal” revela uma supervalorização do Estado em detrimento do indivíduo, neutralizando qualquer possível reação sua, tornando-o mero objeto de uma inquisição com o propósito de chegar à Verdade.
Agora, é direito do advogado “examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital”. A inovação fica por conta da ampliação do acesso a investigações de qualquer espécie e em qualquer órgão (polícia judiciária, Ministério Público, órgãos reguladores, tribunais de contas, etc.), mesmo as já concluídas, com cópias e apontamentos podendo ser tomados por todos os meios tecnológicos disponíveis (xerocópia, fotografia digital, escaneamento, gravação de mídias portáteis etc.).O exame de autos de prisão em flagrante, a desnecessidade de juntada de procuração e a possibilidade de cópia de peças já estavam na redação anterior do Estatuto e foram mantidos.
Em relação a esses direitos, foram incluídos três novos parágrafos ao artigo 7º, prevendo que a faculdade de exame de investigações demanda a apresentação de procuração nos autos sujeitos a sigilo (parágrafo 10); que a autoridade competente pode impedir o acesso aos elementos de prova e às diligências ainda não documentados, “quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências” (parágrafo 11); e que a negativa de fornecer os autos da investigação ou o seu fornecimento incompleto, “com o intuito de prejudicar o exercício da defesa”, acarretará a responsabilização criminal e funcional(disciplinar) do responsável por abuso de autoridade (Lei 4.898/1965) –não excluída a responsabilidade civil – podendo o advogado requerer o acesso ao juiz competente (parágrafo 12).
A Súmula Vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal, aprovada em 2009, reconhecia na prática o direito do defensor de ter acesso aos elementos de prova já documentados que dissessem respeito ao exercício do direito de defesa em procedimentos investigatórios de competência da polícia judiciária. Contudo, ao largo da discussão acerca da efetiva observância ou não da súmula pelas instâncias ordinárias (sendo da negativa de acesso cabível o recurso de “reclamação”, de acordo com o artigo 103-A, parágrafo 3º, da Constituição), o que se percebe é que, desde então, houve uma ampliação das espécies de investigações que têm culminado no oferecimento de denúncias criminais.
O reconhecimento da possibilidade de investigação criminal pelo Ministério Público atraiu a incidência da súmula[1], com a mesma exceção às diligências em curso (artigos 13 e 14 da Resolução 13/2006 do CNMP[2]), porém não tem sido reconhecida sua aplicabilidade para procedimentos de natureza cível ou administrativa[3], os quais bem podem ser utilizados para instruir ação penal. Apropriada, portanto, a nova previsão do Estatuto da OAB do direito ao exame de autos de “investigações de qualquer natureza”. Resta assegurada vista não apenas de investigações criminais, mas de investigações em geral (ex.: inquérito civil público, inquérito parlamentar, procedimento investigatório, etc.), seja que denominações recebam, perante qualquer órgão (MP, PF, PC, Cade, Coaf, Bacen, Ibama, CPI, TCU, CGU etc.).
O fato de não precisar juntar procuração nas investigações sem decreto de sigilo não implica a desnecessidade de relação direta entre o cliente e o advogado. O advogado deve ser constituído e isso deve ser aferido pela autoridade que preside a investigação, a fim de evitar a exposição da investigação e das pessoas nela envolvidas.Mesmo nas investigações sigilosas, cuja restrição se justifica para preservação da intimidade do próprio investigado ou do ofendido, o acesso aos autos pelo advogado está assegurado. A decretação de sigilo em função da presença de dados pessoais não se confunde com o “sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade” (artigo 20 do Código de Processo Penal), que é inerente ao inquérito policial.
Pela redação do inciso XIV, o advogado pode ter acesso à investigação mesmo quando seu cliente não é apontado como investigado. Pode ser vítima, testemunha ou terceiro, desde que tenha algum interesse na apuração daqueles fatos. Se for sigilosa a investigação, basta a juntada de procuração do constituinte. Creio até que a não pode haver restrição para o acesso de pessoas jurídicas, desde que presente o interesse nos fatos em averiguação.
Já as limitações para diligências em curso dependem de adequada fundamentação acerca do risco de comprometimento de sua eficiência, eficácia ou finalidade, sob pena de responsabilização. Uma vez concluídas (devendo tramitar em autos apartados), independente das conclusões a que cheguem, o acesso torna-se cogente.
Em relação ao direito de acompanhar seu cliente durante a investigação, a lei agora prevê a sanção de nulidade absoluta (aquela cujo prejuízo seria supostamente presumível) do interrogatório ou do depoimento que não contar com a presença do advogado constituído. Tal nulidade irradia-se a todos os elementos investigatórios ou probatórios dela decorrentes direta ou indiretamente. O direito do advogado abarca, ainda, no âmbito da apuração, a apresentação de razões e quesitos, tendo sido vetado o dispositivo que previa a requisição de diligências. Nas próprias justificativas do veto, entretanto, o Ministério da Justiça manifestou-se da seguinte forma: “resta, de qualquer forma, assegurado o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, nos termos da alínea ‘a’, do inciso XXXIV, do artigo 5º, da Constituição”.
Finalmente, há previsão legal de nulidade no âmbito da investigação preliminar, algo que não vinha sendo acolhido pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (“eventuais irregularidades ocorridas na fase inquisitorial não possuem o condão de macular todo o processocriminal”[4]), a despeito do reconhecimento de que de sua natureza administrativa, que atrairia a regra do artigo 5º, LV, da Constituição (“aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”). Reconhece-se a chamada “teoria dos frutos da árvore envenenada”, que trata das nulidades por derivação, isto é, aquelas que surgem a partir de uma nulidade anterior que contamina todos os atos dela diretamente decorrentes (artigo 157, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal). Ocorrida esta nulidade na investigação, não há falar-se, pois, em saneamento por ocasião da oferta de acusação formal. Agora, por força de lei, a nulidade por impedimento da atuação de advogado constituído na investigação deve contagiar até mesmo a ação penal. Oportuno consignar que por assistência do cliente investigado não se pode entender apenas o acompanhamento quando de sua oitiva, mas todo e qualquer ato de representação no exercício da defesa.
Quanto à apresentação de razões e quesitos, ainda que de forma tímida, trata-se de um avanço no sentido de preservar o direito de defesa, mas não chega a configurar a possibilidade de um contraditório pleno, tal como era o objetivo do PLC 6705/2013, que deu origem à lei. Quesitos são formulados para peritos (para testemunhas, informantes ou vítimas seriam feitas reperguntas, mas a possibilidade de o advogado formulá-las permanece polêmica); e razões são alegações de ordem procedimental ou material (talvez possam anteceder o relatório final da investigação).
Já em relação ao pedido de diligências, alvo do veto presidencial, aparentemente esta faculdade já se encontra inserida no direito de petição, ou seja, o advogado não está impedido de requerer (não requisitar) providências (artigo 14 do Código de Processo Penal), cabendo à autoridade responsável o deferimento ou não. Entendeu-se, ainda, que a possibilidade de requisição de diligências na investigação poderia tumultuar e potencialmente prejudicar a conclusão das investigações.
Se é bem verdade que a Lei 13.245/2016 ampliou a possibilidade de atuação do advogado na investigação preliminar, lamentavelmente não tornou sua presença obrigatória. Infelizmente, a assistência de advogado ainda é um direito disponível na fase pré-processual, o que traz altos riscos à lisura do procedimento e perpetua uma situação de desigualdade socioeconômica, onde aqueles que carecem de recursos permanecem desassistidos e têm seus direitos fundamentais violados pelo Estado.
Certo é que a reformulação dessas prerrogativas dos advogados reafirma a qualidade de função essencial à Justiça da própria advocacia (artigo 133 da Constituição). Ganham não só os profissionais, que poderão exercer a representação de seus clientes com maior segurança e técnica, como os próprios representados e a cidadania, beneficiada com a asseguração do direito à ampla defesa. Não se trata de criar algum embaraço às investigações, mas de assegurar a amplitude do exercício do direito de defesa e possibilitar a colaboração.
Resta saber se as mesmas interpretações conduzirão a aplicação dos novos dispositivos no cotidiano, pois de nada adianta a mudança legislativa sem a necessária introjeção da mesma na mentalidade dos seus aplicadores.
[1] "O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade - sempre presente no Estado democrático de Direito - do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição". (RE 593727, Redator para o acórdão Ministro Gilmar Mendes, julgamento em 14.5.2015, com repercussão geral - tema 184).
[2]Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Normas/Resolucoes/res_cnmp_13_2006_10_02.pdf
[3]Rcl 10771 AgR, Relator Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgamento em 4.2.2014, DJe de 18.2.2014. Rcl 8458 AgR, Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 26.6.2013, DJe de 19.9.2013.
[4]HC 216.201/PR, Rel. Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/PE), SEXTA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe 13/08/2012. HC 194.473/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 10/04/2012, DJe 03/05/2012. HC 117.652/GO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 22/11/2011, DJe 01/02/2012. HC 132.946/SP, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 24/08/2010, DJe 20/09/2010.
Carlo Velho Masi é advogado criminalista. Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Política Criminal pela UFRGS. Pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal) e em Ciências Penais pela PUC-RS.
Revista Consultor Jurídico, 7 de fevereiro de 2016.
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