O imortal poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) escreveu, certa feita, que “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia; e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.” Entendo que este tempo chegou para o processo penal brasileiro.
O Direito Processual Penal pátrio padece, desde 1988, de severa esquizofrenia. E assim o é pois o Código de Processo Penal, vigente desde 1941, deita raízes notoriamente autoritárias, pois inspirado na legislação processual penal italiana (Código Rocco) aplicada nos anos de 1930, época do regime fascista liderado por Benito Mussolini. Trata-se de uma legislação de essência inquisitória e de desprezo aos direitos e garantias fundamentais. O réu é um objeto de investigação; o processo, o caminho para uma certa condenação.
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, chamou para si a responsabilidade de conduzir uma revolução copérnica do Direito Processual Penal, tornando-o garantista e democrático. É de se observar que, dos 78 incisos do artigo 5º da Constituição, 40 dizem respeito à ciência criminal e, desses, a maioria é de natureza processual, carregando inúmeros direitos e garantias individuais. A transformação foi de essência e paradigma, alterando-se a ideologia do processo penal. Agora, o réu é sujeito de direitos; o processo, a garantia do acusado de se defender das acusações que recaem contra si.
Assim, tal qual malabaristas, os operadores do Direito trabalham entre um texto constitucional garantista e uma norma infraconstitucional autoritária.
Não bastasse isso, e como tempero adicional, nos últimos anos o processo penal brasileiro aproximou-se do modelo americano de persecução criminal, de viés eminentemente eficientista. Busca-se, acima de tudo, a eficiência do processo, a busca por resultados e a rápida prestação jurisdicional. Em recente reportagem da revista Veja (Lágrimas de Crocodilo, ed. 2.463, de 3 de fevereiro de 2016) é feita interessante abordagem sobre o assunto, concluindo-se que tal eficientismo é de fundamental importância para o futuro do processo penal brasileiro, devendo permanecer, contudo, inatingíveis os direitos fundamentais, sendo o garantismo um pilar constitucional inquebrantável e irrenunciável. Conforme a matéria, “A questão no Brasil, hoje, é como dosar os dois e chegar ao ponto em que os réus tenham todos os seus direitos respeitados sem que isso resulte num processo que nunca termina.”
É neste cenário que surgem as maiores discussões do processo penal da atualidade. É o caso, por exemplo, da grande incidência de colaborações premiadas nos últimos anos. A colaboração premiada – anteriormente chamada de delação premiada – encontra previsão na Lei 12.850/2013. O acordo entre acusado e acusador, entregando a atividade criminosa de outras pessoas é tido, por muitos, como o “dedurismo institucionalizado”, de duvidosa índole moral e até mesmo constitucional. Para outros, porém, trata-se de um eficaz instrumento probatório, capaz de desbaratar quadrilhas e facilitar a persecução penal de criminosos. A discussão permanece e mostra-se cada vez mais acalorada. Contudo, embates à parte, é inegável que se trata de instituto cada vez mais comum no cotidiano forense, inclusive em casos de grande repercussão, como aqueles originários da já histórica operação "lava jato".
Outro assunto de especial discussão neste cenário de tormentoso convívio entre garantismo e eficientismo é a utilização de novos meios e métodos de prova, mais modernos e, em regra, mais invasivos do que os tradicionais. Trata-se, por exemplo, do incremento da utilização de interceptações telefônicas e telemáticas e quebras de sigilo bancário e fiscal. O aumento considerável da utilização destes novos instrumentos comprova o inegável caráter eficientista que assume o nosso processo penal. Contudo, a sua utilização não deve suplantar o garantismo inerente ao sistema constitucional que rege o direito processual penal pátrio.
Há um sem-número de exemplos que têm, como pano de fundo, o embate acima constatado, tais como a possibilidade de diminuição do número de recursos aos tribunais superiores, incidentes de aceleração processual e o incremento das medidas cautelares reais, como a constrição de valores, a hipoteca, o arresto e o sequestro de bens do acusado.
Tempos de mudança são tempos de reflexão. Não são momentos apropriados para discursos radicais e raivosas defesas de convicções pessoais. O processo penal está em transformação: não é necessário fincar bandeiras, seja olvidando a evolução social e tecnológica, seja desprezando garantias individuais conquistadas com muito esforço ao longo da história da humanidade. Debates são necessários; cegos discursos inflamados não. É hora de todos os atores do processo penal pensarem juntos, despirem-se de suas condições profissionais e assumirem uma posição reflexiva, para buscar um equilíbrio para as realidades imutáveis que ora nos cercam: o garantismo e o eficientismo. Eles terão de caminhar juntos. Gostemos ou não.
Alexandre Knopfholz é advogado do Dotti Advogados Associados e professor de Processo Penal do Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba).
Revista Consultor Jurídico, 14 de fevereiro de 2016.
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