Um estudo do Registro Nacional de Libertações (The National Registry of Exonerations), projeto da Faculdade de Direito da Universidade de Michigan, reconhece o valor do documentário Making a Murderer, da Netflix, que conta a história de um homem que passou quase duas décadas na prisão por um crime que não cometeu. O documentário reflete a dura realidade americana: “Cada vez mais nos damos conta de que condenações de pessoas inocentes é uma prática comum no país”, diz o estudo.
A organização vem pesquisando, há alguns anos, a quantidade de pessoas que são libertadas após uma média de 18 anos na prisão, porque, finalmente, a inocência delas é comprovada. Em 2015, foram libertadas 149 pessoas inocentes, em apenas 29 dos 50 estados americanos — um número recorde, diz o estudo. Em 2014, foram libertados 139 inocentes. Em 2005, foram libertados 61.
O número crescente de libertações não se deve apenas à ampliação do estudo. Se deve, principalmente, à ampliação das Unidades de Integridade de Condenações (CIU — Conviction Integrity Unit), uma organização criada por promotores para corrigir erros dos próprios promotores e de autoridades policiais no passado (em alguns casos, de advogados de defesa negligentes). Agora já são 24 unidades em diversas cidades de grande porte.
Muitas libertações de inocentes se devem, também, ao “Projeto Inocência”, organização criada por advogados de defesa que se dedica a reverter condenações de inocentes. O número total de inocentes de condenados por crimes que não cometeram é desconhecido, porque as organizações se dedicam a libertar inocentes acusados de crimes graves, apenas. E não atuam em todo o país. O único dado exato conhecido pelo Registro Nacional de Libertações é o de que 4% dos presos no corredor da morte são libertados, regularmente.
Libertações por crime
Homicídio: Um número recorde de 58 presos (39% do total) foram libertados em 2015, depois de comprovados erros nas condenações. Desses, 54 foram condenados por homicídio e quatro por homicídio com atenuantes. De todos os condenados, cinco foram sentenciados à pena de morte (e passaram 30, 25, 28, 19 e 10 anos, respectivamente, no corredor da morte), 19 à prisão perpétua e os demais a uma média de 37 anos na prisão.
Mais de dois terços dos inocentes libertados pertenciam a minorias. Dos 58 libertados, metade eram pessoas negras (29 em 58), 31% brancas (18/58), 10% latinos (6/58) e 9% indígenas ou asiáticos (5/58). Do mesmo total, 55 eram homens e três mulheres, oito tinham menos de 18 anos quando foram condenados e 23, menos de 20.
Casos de drogas: 47 prisioneiros libertados em 2015 (cerca de um terço do total dos presos libertados) foram condenados injustamente por algum tipo de envolvimento com drogas.
Outros casos: também foram libertados inocentes condenados por crimes sexuais contra adultos e crianças, tentativa de assassinato, roubo, assalto à mão armada, provocação de incêndio, sequestro, posse de arma, violação de domicílio ou de propriedade e outros.
Casos de condenações erradas
Confissões falsas: 27 libertações de inocentes em 2015 tiveram como base a comprovação de que as confissões foram falsas. Mais de 80% delas (22) se referiam a casos de homicídio e foram obtidas à força pelas autoridades policiais que interrogaram adolescentes, pessoas com deficiência mental ou as duas coisas.
Acordo com admissão de culpa: 65 pessoas foram libertadas, depois de serem condenadas após admitirem a culpa por um crime que não cometeram a promotores, para fazer acordo e pegar punições supostamente mais leves. A grande maioria se referia a casos de droga (46 em 65 casos) e oitos casos se referiam a condenações por homicídio. Quase todos os casos de admissão de culpa ao promotor se seguiram a confissões falsas a autoridades policiais.
Má conduta de autoridades: Em 65 casos de libertação de inocentes foi comprovada a má conduta de autoridades policiais (incluindo investigadores/detetives e chefes de Polícia) e de promotores. Três quartos dos casos de libertação de condenados por homicídio envolveram má conduta de autoridades.
Inexistência de crime: 75 pessoas foram condenadas a passaram anos na prisão por crimes que, no final das contas, não existiram. Quase dois terços dos casos foram associados a drogas, seis deles a homicídios e 14 a outros crimes violentos.
De acordo com o Projeto Inocência, há duas outras causas comuns nos Estados Unidos de condenações erradas.
Provas forenses falsas: Muitas das condenações de inocentes se devem a provas forenses inválidas ou falso testemunho de peritos. Há muitos casos em que os peritos forenses fazem especulações em seus testemunhos, chegando a conclusões que “esticam” a ciência. Além disso, algumas técnicas forenses não são baseadas em pesquisas, mas são apresentadas ao júri como fatos, segundo o Projeto Inocência.
E ocorrem erros “honestos”. O FBI já admitiu que, no período de 1992 a 1999, quase todos os peritos da instituição ofereceram falsos testemunhos em muitos julgamentos, nos quais apresentaram provas equivocadas. Alguns campos da ciência forense ainda devem ser vistas com ceticismo, como o da balística, identificação de padrões de manchas de sangue, pegadas e análise do rastro de pneus – embora sejam técnicas consideradas infalíveis nos julgamentos, diz a organização.
Identificação errada por testemunhas. De acordo com o Projeto Inocência, a identificação errada de suspeitos por testemunhas oculares de crimes exerce uma influência considerável em 75% dos casos de condenação de inocentes. Centenas de estudos têm mostrado que a identificação de suspeitos por testemunhas oculares é frequentemente errada e que a memória humana não é confiável, especialmente nos procedimentos tradicionais de identificação.
Mais tarde, a condenação é anulada por provas de DNA, pela confissão de testemunhas de que mentiram no julgamento ou por comprovação de que isso aconteceu, mesmo que as testemunhas não tenham tomado a iniciativa de desmentir o que disseram. Porém, de todas as libertações apontadas pelo estudo do Registro Nacional de Condenações, apenas 26 (17% do total) se deveram a provas de DNA. Historicamente, as libertações com base em provas de DNA respondem por 24% dos casos analisados pelo Registro Nacional (419 de 1.733).
Erros em casos de drogas
Uma grande parte dos casos de libertação de inocentes, condenados por envolvimento com drogas, se refere à posse de substâncias que, no final das contas, não eram proibidas (ou controladas). Testes de laboratório revelaram, depois de a pessoa passar alguns anos na cadeia, que as substâncias podiam ser qualquer coisa, menos aquelas que são classificadas como “drogas”.
Geralmente, a culpa por esses erros recai nos “testes de campo”, realizados por policiais. Ou na simples “impressão” de um policial. Segundo o estudo, policiais confundem qualquer pó branco com cocaína, cigarros enrolados à mão (como cigarros de palha) com maconha e remédios não controlados por remédios controlados.
Embora essas “provas” não sejam admissíveis em julgamento, são justificativas para prisões. E são suficientes para policiais arrancarem do “suspeito” uma confissão falsa e para os promotores conseguirem uma declaração de culpa, em um acordo para uma pena menor, sem ir a julgamento.
Segundo o promotor Inger Chandler, do Condado de Harris, no Texas, isso sempre foi muito fácil de conseguir, quando o “suspeito” tinha condenações prévias. Eles preferem se declarar culpados, fazer um acordo para garantir uma pena mais leve, do que passar muito tempo, talvez mais de um ano, na prisão, aguardando julgamento. O julgamento sempre é um risco, porque a pena, para quem se recusou a fazer acordo, é maior.
Em outros casos, as pessoas se declaram culpadas por ignorância, diz o promotor. Elas pensam que o produto que foi apreendido continha alguma substância proibida e não sabiam disso. No geral, a Promotoria do Texas já encontrou mais 73 casos em que as pessoas foram induzidas a se declarar culpadas em casos envolvendo drogas, sendo inocentes. E outros 200 estão em exame.
Por causa disso, a Promotoria do condado de Harris, a que mais mandou inocentes para a prisão por problemas com drogas, decidiu que os promotores não irão mais propor acordo de declaração de culpa, em troca de uma pena menor, antes que a substância apreendida passe por testes de laboratório.
Ultimamente, promotores e juízes têm mostrado mais vontade de examinar casos de condenações em que uma ou mais causas de erro judicial são aparentes. O estudo atribuiu essa mudança, em parte, ao documentário Making a Murderer, em que a prática de “fabricar réus” no país foi exposta.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 8 de fevereiro de 2016.
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