Ronald Biggs, ao vir para o Brasil na década de 1970, após roubar o trem pagador na Inglaterra, sabia que aqui era um ótimo refúgio para permanecer impune. Passados mais de 40 anos e apesar do admirável trabalho feito na "lava jato", pouco mudou. Sério. Perguntem a Battisti, Maluf e Del Nero.
Ao se olhar o sistema de Justiça criminal brasileiro, tem-se a impressão de que ele foi meticulosamente desenhado para não funcionar. Nos diversos momentos em que se desdobra a persecução penal, ali e acolá se notam a distribuição inadequada de incentivos, a alocação ineficiente de recursos e o design irracional do sistema. Um curto tour permite mostrar as deficiências e imperfeições que o caracterizam.
a) Desigualdade material e simbólica
Embora vivamos numa sociedade em que o mercado produz constantes desigualdades econômicas, isso não deveria reproduzir-se no tratamento político-jurídico dos cidadãos. A desigualdade social gera dois tipos de clientes penais: os do andar de cima e os do andar de baixo. Os primeiros possuem automóvel, estudaram em escolas particulares e têm plano de saúde. O lumpemproletariado criminal faz uso do transporte coletivo, se frequentou, foram escolas públicas, e cuida da saúde no SUS. A diferenciação existente, por incrível que pareça, tem reconhecimento jurídico: foro privilegiado, suspensão de ação penal contra parlamentares, escolha de local, dia e hora para juízes e promotores deporem, prisão especial para advogados, isenção de serviço do júri para vereadores. Desde a Constituição do Império, o Supremo Tribunal de Justiça julgava seus ministros, os das relações, os empregados no corpo diplomático e os presidentes das províncias (artigos 163 e 164). Passados quase 200 anos, são apenas aparentes as alterações havidas no tratamento diferenciado de pessoas em nossa sociedade.
A prerrogativa de função, por jogo de palavras, oculta seu real papel: proteger determinadas pessoas, viscondes, duques e barões do século XXI. Ela se aplica a toda e qualquer infração praticada por ocupantes de determinados cargos públicos, tenham ou não relação com o exercício funcional, tal como o desembargador que cometa crime doloso contra a vida[1]. Mesmo que as infrações tenham sido praticadas anteriormente à assunção da função pública, emerge o foro privilegiado concomitantemente à diplomação ou à posse[2]. Se, por exemplo, parlamentares estiverem licenciados para o exercício de atribuições no Poder Executivo, como secretários de Estado ou ministros, e pratiquem infração penal, serão julgados em razão do mandato para o qual foram eleitos[3]. Protege-se o cargo, sem que a conduta ilícita guarde relação com ele.
Nenhum outro Estado possui leque de competências penais em razão do cargo tão amplo quanto o Brasil. A Constituição de 1988, querendo ser republicana, mostrou-se quão aristocrática é. A situação torna-se mais grave porque o STF percebeu que não tem condições de processar todas as grandes investigações em que estiver envolvido titular de foro especial e, como solução, repartiu o trabalho com as demais instâncias. A condução de inquéritos e ações em variados juízos, envolvendo fatos interdependentes, importa em duplo dispêndio de esforços, gera desencontros na decretação de sigilo nos autos, sem falar na falta de sintonia na determinação de prisões e medidas cautelares reais. Aprecia-se a mesma situação jurídica mais de uma vez por juízos distintos, tudo em nome do foro privilegiado.
A par da desigualdade simbólica, temos a material, que completa o panorama de iniquidade. Relatório confeccionado pelo Departamento Penitenciário Nacional, em junho de 2013, considerando o universo de 505.133 presos do sexo masculino, revela que apenas 1.868 possuem nível superior completo, o que representa 0,3698% do total[4]. É fato notório que réus hipossuficientes, como não possuem condições de arcar com honorários advocatícios, têm sua defesa patrocinada por defensores dativos ou públicos. O trabalho mal remunerado do primeiro e o excesso de demandas do segundo torna a defesa técnica uma tarefa que se vê rotineiramente prejudicada, fazendo com que condenações de réus de baixa renda sejam produzidas em larga escala. Em face desse quadro, a existência de Defensoria Pública apropriadamente estruturada, capaz de bem lidar com a demanda processual, contribuiria muito para a postergação da decisão final, tal como ocorre em processos patrocinados por advogados constituídos e regiamente pagos. É provável que o meio mais eficaz de se reduzir a população prisional brasileira seria assegurar defesa técnica competente a cada um dos réus do andar de baixo.
b) Presunção de inocência
O modelo brasileiro elegeu o trânsito em julgado como termo final da presunção de inocência, seguindo o mesmo tom de Portugal e Itália. Distanciou-se do padrão adotado por Alemanha, Espanha, França e Estados Unidos.
A confluência do tardio fim da presunção de inocência com a morosidade do processo penal tolhe atitudes que atinjam a esfera jurídica do acusado, de modo que a sensação de impunidade expande-se pela sociedade[5]. Exemplo emblemático dessa situação é o caso do homicídio praticado contra o juiz de Direito Alexandre Martins, em Vitória (ES). Um dos mandantes do crime saiu da sessão do Tribunal do Júri direto para o conforto do lar após ter sido condenado a 23 anos de reclusão[1]. O reconhecimento do direito de recorrer em liberdade permitirá que ele aguarde por mais alguns quinquênios — mais de 12 anos se passaram entre a prática do crime e o julgamento — até que a soberana decisão dos jurados seja ratificada e ele (possivelmente) se torne culpado. Diversamente do que ocorre em outros países, a sentença condenatória não afasta a presunção de inocência, que permanece hígida como se a condenação só tivesse valor quando reconhecida pelo STF. Ao estilo Goebbels, a sentença penal é como uma mentira que, se repetida várias vezes, convola-se em verdade.
c) Processo penal 3-D
O Habeas Corpus tem conotação universal, mas no Brasil, em razão das peculiaridades do extravagante sistema de Justiça penal, adquiriu estatura que não se tem notícia haja similar em outra parte do globo. Superficial pesquisa no banco de dados do STF permite aferir que tudo se resolve por meio de Habeas Corpus: aplicação do princípio da insignificância (HC 94.770), nulidade de interrogatório por videoconferência (HC 90.900), impedimento de magistrado (HC 92.893) e ordem de precedência de sustentação oral no julgamento de recurso (HC 87.926).
Hoje, ele é manejado antes mesmo de o processo se iniciar — para trancamento de inquérito policial — e independentemente de existir concreta ameaça ou restrição à liberdade de ir e vir. Atuando como juiz federal, foi-me possível notar como a defesa do acusado estrutura-se em estilo 3-D. Explicando melhor: contra a irrecorrível decisão que recebe a denúncia impetra-se Habeas Corpus. Negado, impetra-se outro, e assim por diante. Quando muito, em vez de novo Habeas Corpus, utiliza-se o recurso ordinário, em decorrência da virada jurisprudencial operada em 2012 no STF. Não admitido pelo juiz o desentranhamento de prova supostamente ilícita, durante o curso do processo, procura-se obter no tribunal a exclusão, por meio da ação constitucional. Condenado o réu em primeira instância, interpõe-se o writ sob o argumento de ilegalidade na fixação da pena. Dessa forma, o acusado consegue discutir em várias instâncias, simultaneamente, a mesma questão jurídica. A defesa tem, portanto, atuação bi ou tridimensional, contando com o mais rápido desfecho do julgamento do Habeas Corpus para influenciar e/ou alterar o resultado em primeira instância. Assim, antes mesmo que a sentença tenha sido proferida e a suposta prova ilícita analisada em caráter final, provavelmente a questão já foi submetida a todas as instâncias superiores, em autêntica multiplicação de dimensões defensivas.
d) Prescrição
Regra elementar de Economia prescreve que as pessoas reagem a incentivos[6]. No processo penal brasileiro, pessoas dotadas de mínima inteligência sabem que recorrer o maior número de vezes possível apresenta baixo custo e pode acarretar excelente benefício: impunidade. Logo, há verdadeiro incentivo para se recorrer.
A prescrição (statute of limitation) nos Estados Unidos apenas tem aplicação no período dentro do qual o processo penal ainda não se iniciou, pois seu propósito é assegurar a pronta persecução penal[7]. Iniciado o processo, não há espaço para prescrição superveniente, retroativa ou em perspectiva. Não há prescrição para terrorismo, por exemplo, mas, em regra, para a maioria dos crimes federais, o prazo para que se dê início à ação penal é de cinco anos. A regulamentação da prescrição geralmente requer que o agente permaneça no Estado onde o processo tramita, empregado e visível, isto é, que ele seja “capturável”. Ao contrário, se o agente vive como fugitivo, isso impede que o prazo prescricional tenha curso[8].
A situação é totalmente diversa no Brasil. O réu condenado definitivamente, que aguardou por anos o julgamento em liberdade, se optar por evadir-se após tomar conhecimento da expedição do mandado de prisão, permanecerá impune desde que expirado o prazo prescricional. Em Direito Civil, é antiga a regra de que ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Esse preceito parece não incidir no Direito Penal. O acusado, caso fuja e permaneça em local incerto e não sabido, impedindo a execução da pena, beneficia-se ao furtar-se à aplicação da lei penal, por maior que sejam os esforços e os custos havidos pelo Estado para localizá-lo.
Não se tenciona eliminar a prescrição do sistema de Justiça penal porque, em boa parte das situações, ela é importante para estabilizar relações sociais. Porém, a única justificativa para mantê-la em toda e qualquer situação seria a busca de eficiência das autoridades encarregadas da persecução penal. Contudo, o que se observa na rotina forense é que a prescrição, se não exerce nenhum, tem muito pouco efeito intimidador, no sentido de obrigar as autoridades a zelar pela regular condução processual. Ao contrário, a ocorrência da prescrição muitas vezes tem efeito liberador. Jader Fontenelle Barbalho e Marta Teresa Suplicy, porque completaram 70 anos de idade, tiveram o prazo prescricional reduzido à metade e, em decorrência, foi extinta a punibilidade pelo reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva. No caso dele, as denúncias das ações penais 374, 397 e 398 haviam sido recebidas em 20/2/02, 17/9/02 e 1/12/04, respectivamente. Em 2015, os mais de dez anos de tramitação processual aliados ao redutor etário fizeram com que se chegasse a um único resultado: quatro processos a menos para serem julgados.
Tal como é hoje regulamentada, a prescrição conta com mais imperfeições do que predicados: a prescrição retroativa, que não possui congênere em nenhum lugar do mundo, foi limitada apenas à fase judicial, quando deveria ser abolida; crimes de extrema gravidade, tal como o homicídio qualificado, são prescritíveis; não há previsão de causas interruptivas na fase recursal; e assim como o acusado pode beneficiar-se, por agir proteladoramente ao interpor recursos temerários, também será favorecido com sua fuga após responder ao processo em liberdade.
e) Recursos
São célebres os casos de réus do andar de cima que conseguiram procrastinar o advento da condenação definitiva e mesmo afastá-la em razão da prescrição. Para isso, valeram-se de ampla gama de recursos durante o processo. O jornalista Pimenta Neves foi acusado de ter cometido homicídio contra sua namorada em 20/8/00. O processo transitou em julgado em 3/11/11, e o STF, na tentativa de fazer céleres os procedimentos, determinara a imediata prisão do acusado, o que ocorreu em 24/5/11. Ele utilizou os recursos processuais legalmente previstos e valeu-se da presunção de inocência para permanecer em liberdade por mais de uma década, porém não teve a mesma sorte do ex-jogador de futebol Edmundo, que teve todas as acusações atingidas pela prescrição. Edmundo foi acusado de ter cometido três homicídios culposos e três lesões corporais culposas quando dirigia seu automóvel. As infrações ocorreram em dezembro de 1995, e o Recurso Especial 302.636 permaneceu mais de nove anos tramitando no STJ. Em decorrência, todos os crimes prescreveram, considerando-se as penas isoladamente aplicadas.
Um especialista em engenharia de produção, que detém conhecimentos de administração, economia e engenharia e os aplica na racionalização do trabalho, não teria dúvida em nomear o sistema recursal brasileiro como absolutamente irracional. A possibilidade de submeter cada processo a quatro instâncias diferentes; a permissão de se manejar ações autônomas simultaneamente aos recursos interpostos; a consideração apriorística de que toda e qualquer decisão seja impugnável; o baixo custo em acessar as vias superiores, que se faz acompanhar pela inconsequente utilização delas, tudo isso mostra o alto grau de desorganização. Afora o caráter obtuso, parece não fazer parte do cálculo econômico o custo de se manter estrutura agigantada, como se recursos públicos fossem inesgotáveis, e a realidade nacional mais abonada do que a de nações nórdicas. Isso explica em parte porque o Brasil gasta 1,24% do PIB com o Poder Judiciário, ao passo que o Japão e Noruega despendem 0,065%[9].
Em síntese, só não se fecham as portas do sistema de Justiça penal porque os órgãos públicos, por mais deficientes que sejam, não estão sujeitos à falência. Existe um apagão judicial fruto de esgotamento. Não é à toa que oWorld Justice Project mostra os mais importantes indicadores da Justiça criminal brasileira bem abaixo da média da América Latina e Caribe[10]. Caso mudanças não sejam feitas, persistirá em vigor um sistema de Justiça criminal que constantemente viola direitos individuais, ao mesmo tempo em que é detentor de capacidade de punir crimes muito aquém do número de delitos cometidos. Em suma, continuará em atividade um sistema de Justiça, no mínimo, exótico e disfuncional.
Encerro aqui minha participação. Na próxima semana, retornam as imperdíveis colunas de Vladimir Passos de Freitas.
[4] Disponível em http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/transparencia-institucional/estatisticas-prisional/anexos-sistema-prisional/total-brasil-junho-2013.pdf.
[5] HADDAD, Carlos Henrique Borlido. A real dimensão da presunção de inocência. In A renovação processual penal após a constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 76.
[6] MANKIW, N. Gregory. Introdução à economia. Tradução da 5ª ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012, p. 7.
[7] DOYLE, Charles. Statutes of Limitation in Federal Criminal Cases: An Overview. Disponível em https://www.fas.org/sgp/crs/misc/RL31253.pdf.
[8] “No statute of limitations shall extend to any person fleeing from justice...” (18 U.S.C. 3290). DOYLE, op. cit.
[9] PALUMBO, Giuliana et alli. Judicial performance and its determinants: a cross- country perspective. OECD Economic Policy Papers, n. 5, jun., 2013, p. 20.
Carlos Haddad é juiz federal, professor adjunto da Faculdade de Direito da UFMG e pós-doutor pela Universidade de Michigan.
Revista Consultor Jurídico, 31 de janeiro de 2016.
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