Questão tormentosa para qualquer ator judiciário é o terreno das invalidades processuais, cuja casuística dificulta sobremaneira o estabelecimento de uma estrutura teórica dotada de suficiência. Em palavras mais claras, nosso sistema de nulidades bem demonstra que às vezes o processo penal ingressa na lógica do ‘vale tudo’... ou ainda, que realmente existe um processo penal ‘a la carte’, em que o tribunal escolhe que formas processuais têm relevância e aquilo que ele — hoje — vai dispensar.
Existe um tensionamento tremendo entre o Código de Processo Penal e a Constituição, especialmente neste terreno. Na perspectiva constitucional, forma é garantia e limite de poder. Na visão do CPP (1941), o cenário é completamente diferente, basta uma rápida leitura — que muita gente nunca fez — da Exposição de Motivos, para verificar a matriz assumidamente fascista (basta ver que idolatra o Código de Rocco, um fascista de carteirinha). O CPP assume que é “infenso ao excessivo rigorismo formal, que dá ensejo, atualmente, à infindável série das nulidades processuais.(...) O projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades.”
Lendo-se esses trechos, sem perder de vista as afirmações iniciais da Exposição de Motivos, o norte fica bem demarcado:
II. (...) “As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos (!?) pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores (!?), que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do individuo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos (!?) individuais em prejuízo do bem comum.” E por aí segue a pregação fascista temperada pela ‘defesa social’.
É evidente que nada disso poderia sobreviver no pós-constituição, que não resiste a uma filtragem constitucional e democrática, mas sobrevive. Pouca gente atenta para o absurdo que ali está escrito. A estrutura inquisitória é amorfa por excelência, pois é no espaço da informalidade que o autoritarismo se esparrama. É um perigo total, pois esvazia o conteúdo das regras do jogo.
Depois o código fala no extenso catálogo de garantias e favores! Atentem para isso: garantias processuais = favores. E vai além: ainda que colhidos em flagrante ou 'confundidos' pela evidência das provas! Reparem, o preso em flagrante e o 'confundido' pela evidência das provas (o evidente cega, seda os sentidos, é o ponto cego do direito = perigo) tem um catálogo de favores processuais que deve ser abolido. Um código que pensa ser favor respeitar regras do devido processo deveria ser queimado em praça pública. E finalizo a citação da exposição de motivos com mais essa pérola: urge que seja abolida a primazia do interesse do indivíduo (leia-se: direitos individuais fundamentais), pois não se pode continuar a contemporizar com “pseudodireitos” (!). Esse é o golpe final: direitos individuais são pseudodireitos.
Nesse complexo caldo cultural inquisitório insere-se o sistema de nulidades do CPP, imprestável por vício genético, portanto. O CPP e os atores do processo penal lidam com as categorias de meras irregularidades, nulidades relativas e nulidades absolutas. Há ainda os que falam nos atos ‘inexistentes’, cujos exemplos não superam os delírios manualísticos sem qualquer dado de realidade (sentença proferida por quem não é juiz e outras hipóteses ilusórias). Mas o ponto nevrálgico da discussão situa-se no tensionamento dessas duas categorias: nulidade absoluta e nulidade relativa.
Infelizmente no Brasil a moda é relativizar todas as nulidades, tendo gente ainda a sustentar que a categoria de nulidades absolutas acabou. Ora, com todo o respeito, isso é um imenso tiro no pé do processo penal constitucional que se pretende. É alinhar-se (e talvez ir até além) ao discurso fascista anteriormente citado.
Como trato no meu livro[1], existe uma errônea importação de categorias do processo civil (mais uma fatura da Teoria Geral do Processo), que distingue (ilusoriamente) as nulidades absolutas das relativas a partir na natureza da norma (tutela de interesse público ou privado); conhecimento ou não de ofício; possibilidade ou não de convalidação e a necessidade ou não de demonstração de prejuízo.
Os problemas dessa pseudocategorização são muitos no processo penal. Primeiro, porque no processo penal forma é garantia. Forma é limite de poder, pois o processo penal é um ritual de exercício de poder e todo poder tende a ser autoritário. Existe uma saudável desconfiança em relação ao poder. É crucial compreender que existe a fattispecie giuridica processuale(Conso), ou seja, a tipicidade processual e o tipo processual (Gloeckner)[2].
Por isso, o modelo inquisitório prega o amorfismo, a informalidade, pois é ali que ele esparrama melhor o poder, nos espaços impróprios da discricionariedade judicial. Pregamos, no processo penal constitucional, exatamente o oposto: regras claras do jogo e limites demarcados de exercício do poder.
Depois, retomando a dicotomia tradicional, não podemos esquecer que estamos tratando de normas de direito público, regidas por uma principiologia constitucional que não se insere na dicotomia público-privado importada do direito civil e processual civil. Ou alguém vai me dizer que direitos fundamentais podem ser vistos como ‘normas que tutelam interesse privado’? Inviável.
A distinção entre normas que tutelam interesse da parte e outras que dizem respeito a interesses públicos tropeça na desconsideração da especificidade do processo penal, onde não há espaço normativo privado. Erroneamente alguns pensam que as normas que tutelam o interesse do réu seriam uma dimensão “privada”, para exigir demonstração de prejuízo. A proteção do réu é pública, porque públicos são os direitos e as garantias constitucionais que o tutelam.
Segundo problema diz respeito à postura do juiz, que no processo penal, é o guardião dos direitos e garantias fundamentais, logo, deve sempre zelar pela legalidade. É interessante como a cultura inquisitória mostra sua cara: para reconhecer uma nulidade o juiz precisa ser ‘invocado’, mas para ir atrás da prova, decretar prisão, busca e apreensão etc., pode e deve atuar de ofício... Olhem o absurdo. É nessa perspectiva que se situam os que defendem o ativismo judicial e a iniciativa probatória dos juízes. Ranço inquisitório de quem, reducionistamente, ainda pensa que basta a mera separação inicial das funções para termos um processo acusatório.
E a convalidação? O conceito de convalidação, como decorrência da preclusão, é inadequado, pois convalidar como o ‘tornar válido pelo decurso do tempo’ é o mesmo absurdo de tonar legal um ato absolutamente ilegal porque ninguém reclamou no ‘momento oportuno’. Ora, o processo penal não pode chancelar ilegalidades praticadas por agentes do Estado usando esse subterfúgio. Estamos tratando da violação de garantias constitucionais e não de irregularidades contratuais ou discussões ‘privadas’. O que sim pode haver é saneamento pela repetição ou prática de outro ato que supra a inicial lesão ao princípio constitucional. Regra básica: o que foi feito com defeito, tem que ser refeito. Se for refeito sem defeito, está sanado. Do contrário, nulidade deve ser reconhecida.
Mas, sem dúvida, o maior problema é a tal ‘teoria do prejuízo’, que aliada à categoria da nulidade relativa, cria um perigoso engenho a serviço do punitivismo. Vou além: a categoria das nulidades relativas é uma fraude processual a serviço do punitivismo e do utilitarismo.
Como explica Jacinto Coutinho[3] “prejuízo, em sendo um conceito indeterminado (como tantos outros dos quais está prenhe a nossa legislação processual penal), vai encontrar seu referencial semântico naquilo que entender o julgador; e aí não é difícil perceber, manuseando as compilações de julgados, que não raro expressam decisões teratológicas” (grifo nosso).
É por isso que chegamos — infelizmente — neste ponto: hoje no Brasil quando um ato é nulo? Quando o tribunal quiser, para quem ele quiser e com o alcance que ele quiser. Essa é a verdadeira ditadura judicial vivenciada hoje. No espaço impróprio do casuísmo, os tribunais praticam o (ilegítimo e antidemocrático) decisionismo.
Ora, não se pode confundir “formalismos despidos de significados com significados revestidos de forma” (Schmidt)[4]. Não se trata de amor à forma em si, mas pelo que ela representa em termos de eficácia de direitos fundamentais, ou seja, existem significados que se revestem de formas processuais e que são da maior relevância.
Querem salvar a categoria prejuízo? Difícil, senão até, desnecessário. Mas a Teoria da Inversão dos Sinais pode ajudar. Não é a parte que alega a nulidade que deverá demonstrar o prejuízo que o ato atípico lhe causou, pois esse sim é presumido (ou seja, se existe um tipo processual e não foi observado, o prejuízo é inerente e presumido); senão que incumbe ao juiz, para manter a eficácia do ato, que deverá justificar por quais razões a atipicidade não impediu que o ato atingisse sua finalidade.
A carga de provar que ‘não houve prejuízo’ é do juiz, verdadeiro guardião da legalidade e do sistema de garantias da Constituição. No mesmo sentido, Badaró[5] explica que “a eficácia do ato ficará na dependência da demonstração de que a atipicidade não causou prejuízo algum. Ou seja, não é a parte que alega a nulidade que deverá demonstrar que o ato atípico lhe causou prejuízo. Será o juiz que, para manter a eficácia do ato, deverá expor as razões pelas quais a atipicidade não impediu que o ato atingisse a finalidade”. Somente nesta dimensão é que se pode(ria) pensar no tal (aberto e indeterminado) prejuízo. Mas como podemos estruturar um sistema de nulidades no processo penal?[6]
I. Premissa básica: ‘forma é garantia’ e limite de poder. O formalismo tem sentido e significado na perspectiva constitucional, pois a informalidade e o amorfismo são incompatíveis com a estrutura acusatória e o devido processo.
II. A distinção entre nulidade absoluta/relativa é equivocada e o sistema de invalidades processuais deve partir sempre da matriz constitucional, estruturando‑se a partir do conceito de ato processual defeituoso, que poderá ser sanável ou insanável, sempre mirando a estrutura de garantias da Constituição. Somente o ato defeituoso insanável dará lugar ao decreto judicial de nulidade e, por consequência, de ineficácia ou impossibilidade de valoração probatória.
III. Eventual discussão sobre ‘prejuízo’ deve ser resolvida pela Teoria da Inversão dos sinais, incumbindo ao juiz (e não as partes) demonstrar que o ato defeituoso atingiu o fim constitucionalmente previsto sem violar direitos fundamentais.
IV. Evidenciase, assim, que nulidade mesmo só existirá nos casos de atipicidade insanável e relevante. Por isso, pouco diz o conceito de nulidade relativa. O que importa é a conjunção dos conceitos de defeito e possibilidade/impossibilidade de saneamento pela repetição.
V. Não há que se falar em convalidação pela preclusão, mas apenas em defeito sanável ou insanável. Se o ato feito com defeito pode ser refeito sem defeito e, principalmente, resgatando a eficácia do princípio constitucional violado, não há nulidade.
VI. Decreta-se a nulidade quando o defeito for insanável, ou seja, o ato não puder ser repetido ou isso não for suficiente para obter-se a eficácia principiológica.
VII. Qual a consequência da decretação de nulidade? Privação dos efeitos do ato ou proibição de valoração probatória (com a respectiva exclusão física).
VIII. Quanto ao Princípio da Contaminação, entendemos que — na perspectiva de Fazzalari — existe uma vinculação genética entre os atos procedimentais, de modo que a nulidade de um ato causará a de todos os que dele diretamente dependam ou sejam consequência, sendo essa vinculação causal presumida. Na perspectiva do processo como procedimento em contraditório, todos os atos do procedimento miram o provimento final (sentença) e estão geneticamente vinculados, de modo que existe uma relação de dependência quanto à regularidade/irregularidade do ato que o precede e ainda influi sobre a eficácia dos atos que o seguem.
Enfim, vivemos tempos difíceis em que impera um processo penal “a la carte”, com os tribunais escolhendo as ‘regras que serão consumidas hoje” e quem poderá delas desfrutar, em inequívoco decisionismo antidemocrático e ilegítimo, gerando uma imensa insegurança jurídica. Ampliou-se o campo de incerteza ao extremo, de forma perigosamente casuística.
No campo da contaminação, o vale tudo segue vigendo. Parece evidente que em um processo penal em que as regras sejam levadas a sério, a nulidades dos atos posteriores é presumida, cabendo ao juiz/tribunal a carga de demonstrar que não houve a contaminação para salvar os atos subsequentes, e não como se faz no Brasil hoje, em que em nome do vale tudo processual (e não raras vezes de que os fins legitimam a barbárie dos meios), os tribunais restringem absurda e ilusoriamente o princípio da contaminação, não raras vezes legitimando ilegalidades evidentes.
Enfim, eis um terreno pantanoso e que muito envergonha o processo penal brasileiro, que exige uma mudança radical de posicionamento dos tribunais, especialmente para sinalizar aos agentes policiais, juízes, promotores e demais órgãos públicos envolvidos na persecutio, quais são os limites intransponíveis. Mostrar que temos um processo sério, em que você pode garantir para punir e punir garantindo.
E, principalmente, é importante desfazer essa imagem de que existe um processo penal ‘a la carte’, com pratos refinados (regras do jogo) acessíveis para poucos; um processo elitista, em que a imensa maioria tem de se contentar com migalhas constitucionais, enquanto, para outros, o processo é um banquete.
[1] “Direito Processual Penal”, 11ª edição, Saraiva, São Paulo, 2014, especialmente no capítulo XIX.
[2] Sobre o tema, recomendamos a leitura da obra “Nulidades no Processo Penal – introdução principiológica à teoria do ato processual irregular”, publicado pela editora Jus Podium e que trata de forma inigualável a temática.
[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, Nota Dez Editora, n. 1, 2001, p. 44.
[4] SCHMIDT, Ana Sofia. Resolução 05/02: interrogatório on line. Boletim do IBCCrim, n. 120, novembro/2002.
[5] BADARÓ, Gustavo. Direito Processual Penal, tomo II, Rio de Janeiro, Elsevier, 2007, p. 189.
[6] Aqui, novamente, recomendamos a leitura de Gloeckner na obra anteriormente citada, que se ocupa disso com muito mais profundidade.
Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Revista Consultor Jurídico, 5 de setembro de 2014.
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