Narra a lenda que o sujeito andando, sem eira nem beira, encontra uma lâmpada mágica. Ao esfregá-la, um gênio aparece e lhe concede três pedidos. Com eles pode satisfazer em três momentos distintos quaisquer de seus desejos. As variações a partir daqui são muitas. O que importa marcar é que se pode pedir qualquer coisa. Sem limites. O gênio, por seu turno, não coloca barreira qualitativa aos três pedidos, somente quantitativa: três!
Freud estabeleceu que a análise do coletivo guarda pertinência com o que acontece na singularidade e, talvez, o “tsunami reivindicatório” com o qual o Poder Judiciário é arrostado atualmente possa ser um sintoma do que se passa. Sabe-se, todavia, que o sintoma, neste contexto, procura incluir na trama o destinatário, supondo que ele, ao se colocar no lugar do destinatário, possa satisfazer a pretensão, na totalidade. O gênio concede, sabiamente, três pedidos, quem sabe, para demostrar que há limites, mesmo na satisfação do desejo, para que fique um resto. Enfim, há uma referência. Os mais apressados diriam que o gênio é reacionário e que se pode, deve, satisfazer, sem limites, tudo. Quem sabe surgiria uma passeata em nome da multiplicação dos pedidos; o milagre da multiplicação. A legitimidade deste movimento decorreria na ocupação de um lugar de vítima social das circunstâncias, sempre insatisfatórias do encontro com o Real. Por isso o argumento de Charles Melman e de Jean-Pierre Lebrun é procedente, a saber, de que gozar a qualquer preço, sem dívidas, nem responsabilidade, passa a ser o padrão de um sujeito que histericamente quer tudo e não suporta o preço de suas escolhas, nem de aceitar sentir dor, condição humana. Aliás, se quer tudo, de fato, não quer nada. Neste buraco da demanda, quem sabe, possa residir uma satisfação. Não é o caso, contudo, de seguir esta trilha.
A trilha que se pretende seguir, aqui, está situada na encruzilhada da função e lugar do Poder Judiciário, mais especificamente das escolhas singulares do sujeito juiz, especialmente qual o fundamento democrático para o Estado impedir a dor. Freud indicou que a vida em sociedade impõe três sofrimentos: (i) sofrimento do próprio corpo: irá envelhecer, adoecer, morrer, embora seja difícil acreditar; (ii) sofrimento do mundo exterior: por ser impossível o dominar e o submeter a vontade própria, e (iii) sofrimento nas relações com os outros: da eterna rivalidade e contínua instabilidade pulsional decorrente da convivência humana.
Perante estes obstáculos, não raro, o pedido dirigido ao gênio da lâmpada seria: (i) vida eterna; (ii) superpoderes de dominação do mundo exterior; e (iii) autoridade e poder em face dos outros, alçando-o a um lugar de exceção do gozo. As variações podem ser muitas, mas não apresentam nenhuma novidade à escuta psicanalítica. Esquecem-se que “felicidade” e “vida eterna” não se compram como mercadoria, embora algumas possam gerar gozo, ou seja, o pedido sempre falha na sua pretensão de totalidade. Isto porque o objeto absoluto é da ordem do imaginário, e perdido, sem nunca se ter tido acesso. O real impede, por definição, este encontro.
A situação de desamparo constitutivo, pois, insumo das ficções do “Contrato Social” e do “Estado de Direito”, ganha no atual estádio da arte humana, um novo deslocamento da economia psíquica. Do “contrato social” como metáfora do estabelecimento da “civilização” restam referências históricas, transformado em um “contrato de adesão” vendido pela possibilidade (manipulando a esperança) de um dia se gozar, de tudo, eternamente. Enfim, mostra-se publicitariamente (e os laboratórios estão aí) que a lâmpada dos pedidos mágicos existe e pode ser esfregada, pelos mais capazes, ou seja, os que mais valorizarem economicamente (leia-se ricos). Com este estratagema a “política”, isto é, a arte de fazer andar em fila, mantém seu poder simbólico de fazer caminhar esperançosamente, alinhada, nesta quadra, pelo discurso politicamente correto de o Poder Judiciário responder, histericamente, a todos os pleitos, sob o mote de que todos merecem. O discurso é: eu mereço casa, remédio, televisão, silicone, tudo. Não se abdica da possibilidade de o Poder Judiciário efetivar Direitos. O que não se pode é pensar que a decisão judicial salvará alguém do desamparo constitutivo. A dor da perda, da rejeição, do desamparo humano, acaba se tornando o modo pelo qual os sujeitos se sentem vítimas das circunstâncias. Charles Melman afirma:
“A decepção, hoje, é o dolo. Por uma singular inversão, o que se tornou virtual foi a realidade, a partir do momento em que é insatisfatória. O que fundava a realidade, sua marca, é que ela era insatisfatória e, então, sempre representativa da falta que a fundava como realidade. Essa falta é, doravante, relegada a puro acidente, a uma insuficiência momentânea, circunstancial, e é a imagem perfeita, outrora ideal, que se tornou realidade.”
É preciso relegitimar a condição humana. Uma decisão judicial não salvará o sujeito de seu desamparo, embora o magistrado possa imaginariamente sentir-se um salvador do povo, muitas vezes esquecendo-se de que as políticas públicas não são a função primordial do Poder Judiciário, sem prejuízo de intervenções tópicas. Em muitos estados da federação, a gestão da saúde passou a acontecer nos foros. Perdemos o limite. O Poder Judiciário não pode ser o balcão da saúde, educação, segurança. Sua função deveria ser outra, dentro dos limites democráticos. Há confusão entre efetivação de direitos e deferimento de toda e qualquer demanda, pois a gestão coletiva não pode ficar à mercê do que um juiz decide ser prioridade. Beiramos o caos. Mas para isso seria preciso constrangimentos normativos e, atualmente, nem mesmo o gênio coloca limites.
Resistir a este movimento de satisfação de todas as demandas, todavia, é ir contra a maré das “Almas Belas” (Zizek), de gente que em nome do politicamente correto, da aceitação das ditas evoluções sociais, aceita deferir toda-e-qualquer-pretensão para não posar de reacionário, totalitário e conservador. Aceita o jogo do mercado, fabricando e vendendo decisões conforme a moda da estação e atendendo todo-e-qualquer-pleito. Trata-se de restaurar o lugar do Poder Judiciário, um lugar que deveria ser de referência, um lugar cuja função é a de dizer, muitas vezes, não. Entretanto, para que se possa dizer Não é preciso se autorizar responsável, embora o discurso do senso comum o desresponsabilize, coisa que a grande maioria dos juízes não se sente, por se estar eclipsado em nome do direito do conforto. Este lugar do julgador precisa ser ocupado com responsabilidade pelo que se passa na sociedade. Não para se tornar o salvador, o novoMessias, e sim para recolocar o Direito no lugar da referência, de limite, como até o gênio faz! Neste contexto, parece complicado em falar em “não” desde dentro do Poder Judiciário. A questão é saber se se pode pedir dos magistrados brasileiros isto? Aí o Poder Judiciário, na sua maioria, efetivamente, diz “não”. É só esperar, quem sabe, que o Gênio sirva de inspiração.
PS: parabéns aos formandos em Direito da UFSC (2014-1). Obrigado por me escolherem como paraninfo. A formatura foi sexta. Espero que consigam ler o texto depois do meio-dia. Sigam seus desejos. É o que vale na vida. Curtam. Sempre. Abraços.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Revista Consultor Jurídico, 6 de setembro de 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário