terça-feira, 6 de julho de 2010

Artigo: O debate legislativo a respeito do tratamento a ser dispensado aos tratados de direitos humanos anteriores à emenda constitucional n° 45, de 2004

Ao estabelecer equivalência de emenda constitucional às normas insculpidas em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos que fossem aprovadas em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, o art. 5.°, § 3.o da CF calou-se quanto à possibilidade de se conferir idêntico regime jurídico aos tratados multilaterais e bilaterais de direitos humanos que já haviam sido ratificados ou mesmo promulgados pelo Brasil(1) anteriormente à inserção daquele dispositivo no texto constitucional.
Em outros dizeres, conforme já expressado alhures(2), o parágrafo incluído pela EC 45/2004, não abriu uma porta para que se pudesse conferir o mesmo regime jurídico aos tratados de direitos humanos já ratificados pelo Brasil àqueles que futuramente o serão.
Na atual sistemática, se partirmos da premissa adotada pelo § 3.° do art. 5.° da CF torna-se possível conferir hierarquia constitucional a documentos complementares e subsidiários ratificados após a inclusão do aludido dispositivo, como é o caso da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto 6.949/2009), sem que se possa atribuir esse mesmo status aos instrumentos principais, isto é, os pactos internacionais citados na alínea "d" do preâmbulo daquele tratado, pela singela razão de terem sido ratificados anteriormente à introdução, em nosso ordenamento constitucional, do referido § 3.°(3).
O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana atentou-se para esse anacronismo ao examinar as alterações propostas pela PEC 29/00 (Reforma do Judiciário), no tocante à inclusão do § 3.° ao art. 5.°. Na oportunidade, sugeriu-se que sua redação afirmasse simplesmente que "os tratados internacionais de proteção de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro têm hierarquia constitucional"; ou que fosse reformulada, alternativamente, para "os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, gozarão de hierarquia constitucional".
Como essas propostas não surtiram efeito, deu-se origem à seguinte questão: os tratados internacionais de direitos humanos já ratificados ou mesmo promulgados pelo Brasil também podem integrar a CF, a despeito do que dispõe seu art. 5.°, § 3.°? Em busca de soluções, a doutrina se desdobrou entre aqueles que, defendiam a incorporação automática(4) dos tratados firmados antes da EC 45/2004 ao texto constitucional, a teor do que passou a dispor seu art. 5.o, § 2.°; e os que propugnavam pela recepção material(5), por parte daquele mesmo dispositivo, de todos os tratados internacionais de proteção de direitos humanos.
Embora essa última tese tenha alcançado certo prestígio em alguns tribunais(6), a ponto de se considerar encerradas "as controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias suscitadas pelo § 2.° do art. 5.°"(7), o fato é que a inserção do art. 5.°, § 3.° opõe-se, per se, à interpretação de que o § 2.° do mesmo art. 5.°, desde a sua edição em 1988, teria ensejado nivelamento constitucional para os tratados internacionais de direitos humanos preexistentes à EC 45/2004(8).
Outrossim, não há registro de que, em toda a sua história, o STF tenha acolhido a tese da hierarquia supraconstitucional dos tratados, consagrada pelos arts. 27 e 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, promulgada, no Brasil, pelo Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. O que consta são inúmeros julgados sustentando a tese de que "os tratados constituem leis especiais e por isso, não ficam sujeitos às leis gerais de cada país, porque, em regra, visam justamente a exclusão destas mesmas leis"(9).
Ocorre que, ao julgar o RE 71.154, o STF, em decisão do min. Oswaldo Trigueiro, afirmou diferentemente, no sentido de que os tratados aprovados e promulgados, além de fazer parte da legislação interna, revogam as leis internas contrárias e equiparam-se às leis federais. Não obstante, ao apreciar o RE 80.004, o STF promoveu mais nova reviravolta de sua jurisprudência, ao adotar entendimento no sentido de que as convenções internacionais não se sobrepunham "às leis do país", porque "a lei, provinda do Congresso, só pode ter sua vigência interrompida, se ferir dispositivo da Constituição e, nesta, não há nenhum artigo que declare irrevogável uma lei positiva brasileira pelo fato de ter sua origem em um tratado". Esse posicionamento foi sintetizado de modo exemplar pelo min. Cunha Peixoto: "são todos obrigados a aplicar o direito interno, mesmo contrário ao direito internacional".
Recentemente, o STF voltou a experimentar nova oscilação em seus julgados ao adotar dois novos posicionamentos sobre a matéria: o primeiro, majoritário, é o da supralegalidade desses tratados(10), defendida pelo min. Gilmar Mendes no HC 90.172, e recentemente confirmada pelo Tribunal no RE 466.343. O segundo, minoritário, é o da constitucionalidade das normas internacionais de direitos humanos, patrocinada pelo min. Celso de Mello, no HC 87.585.
Desde então, parece ter se firmado o posicionamento de que os tratados têm status infraconstitucional, são equiparados às leis ordinárias e, em caso de conflitos com leis da mesma espécie, se submetem aos critérios cronológicos e da especialidade, podendo ser derrogados por normas mais novas ou especiais. Manteve-se, ainda, a noção da supremacia constitucional sobre os tratados, sem que se tenha encontrado, por outro lado, uma destinação condizente com a prática jurisprudencial para o regime jurídico dos tratados de direitos humanos ratificados anteriormente à promulgação da EC 45/2004.
O legislador, atento a essa realidade, está buscando regulamentar a matéria por meio do Projeto de Resolução 204/2005, em que se propõe a criação do art. 203-A, § 10, no Regimento Interno da Câmara dos Deputados(11), que passaria a admitir a equivalência de tratado ou convenção internacional sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil anteriores à EC 45/2004, através de requerimento dirigido pelo Presidente ao Congresso Nacional(12), onde seria submetido a votação. Aprovado pelo Plenário, a matéria seria então regulada pelas disposições regimentais pertinentes ao trâmite e apreciação das propostas de emenda à Constituição. Essa solução, no entanto, causa controvérsia no âmbito do próprio Legislativo. Três são as correntes que se põem de manifesto.
A primeira, nitidamente influenciada pelo radicalismo extremado internacionalista, insiste em considerar materialmente constitucionais os tratados de direitos humanos ratificados anteriormente à EC 45/2004, e propõe uma redação “mais adequada” para o retro mencionado § 10 do art. 203-A, a fim de exprimir a necessidade daqueles compromissos serem recepcionados como normas equivalentes às emendas constitucionais, nos termos do § 3.° do art. 5.°.
A segunda, formalista, defende a supressão do projetado art. 203-A, § 10, ao argumento de ser impossível que um tratado já aprovado pelo quorum comum seja reapreciado na forma estabelecida pelo § 3.° do art. 5.° da CF, a fim de ser considerado equivalente a emenda constitucional. Segundo essa corrente, essa possibilidade feriria o princípio da segurança jurídica.
A terceira, por fim, entende que a transformação do conteúdo de uma lei ordinária em norma constitucional por meio de proposta de reforma à CF não representa nenhum óbice à segurança jurídica, na medida em que a inovação trazida pela EC 45/2004, não excluiu da regra do § 3.° do art. 5.° os tratados de direitos humanos ratificados antes de sua promulgação; ao contrário, antes lhes concedeu maior enforcement no âmbito local em tempos de restrição às liberdades individuais.
Esse último posicionamento, favorável à ideia de que os acordos internacionais aprovados antes da EC 45/2004 possam ser reapreciados nos termos do art. 5.o, § 3.°, da CF, para que passem a vigorar com status de norma constitucional, é, em nosso sentir, o que melhor se coaduna com a jurisprudência do STF sobre a matéria, razão pela qual, desde há muito, temos propugnado que "a salvaguarda da coerência do sistema estaria, eventualmente, na elaboração de uma resolução do Congresso Nacional, que se encarregaria de regular a matéria"(13).
Os debates legislativos, no entanto, indicam, até o momento, preferência pela posição formalista, com esteio na doutrina de Araújo e Nunes Júnior, que entendem não ser possível um tratado, já aprovado pelo quorum comum, ser reapreciado para que, votado pelo quorum do § 3.° possa ser considerado equivalente a emenda constitucional, porquanto "a Constituição projetou para o futuro e não tratou de disciplinar regras transitórias nesse sentido"(14).
Ousamos, não obstante, discordar da justificativa apresentada pelos insignes autores. A um, sob pena de afrontar a própria existência de um poder constituinte derivado reformador. A dois, porque não nos parece que o tema desafie a edição de nova Emenda Constitucional, na medida em que as matérias de competência privativa da Câmara e do Senado, que é do que estamos aqui a tratar, devem, necessariamente, ser disciplinadas por meio de resoluções, nos termos do que dispõem os arts. 51 e 52 de seus respectivos regimentos internos. Por fim, porque a prevalecer o entendimento que vem tomando forma, estaríamos diante de uma verdadeira não-solução para o problema, o que, como é bem de se ver, não é o que estamos a desejar como resposta, em face da inadiável necessidade de previsão legislativa que proveja tratamento adequado à matéria.


Notas

(1) É o caso, a propósito, de inúmeros tratados internacionais multilaterais e bilaterais em vigor para o Brasil, indicados em http://www2.mre.gov.br/dai/quadros.htm.
(2) CAMPOS COSTA, Aldo. A proteção internacional dos direitos humanos e a reforma do Poder Judiciário no Brasil. Revista Meridiano 47, ns. 52-53, nov.-dez., 2004, p. 4.
(3) PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed., Saraiva, 2006, p. 72-73.
(4) RAMOS TAVARES, André. Reforma do Judiciário no Brasil pós-88. Saraiva, 2005, p. 45.
(5) PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed., Saraiva, 2006, p. 74.
(6) Nesse sentido: TJRS 70011566882, DJ 10.08.05; TJMG 10408020001397, DJ 31.05.05. Em sentido contrário: STJ RHC 19.975, DJ 05.10.06.
(7) LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos. Manole, 2005, p. 16.
(8) DALLARI, Pedro. Tratados Internacionais na Emenda Constitucional 45, In: Reforma do Judiciário: analisada e comentada. Método, 2005, p. 91.
(9) STF Ap. Civ. 9.587, Lafayette de Andrada, j. em 21.08.1951.
(10) O que se aplicaria, inclusive, às hipóteses de incidência do art. 98 do CTN, a teor do que dispõe o RE 229.096, quando proclamou a "supremacia dos acordos internacionais, em torno de matéria tributária, sobre a lei».
(11) Eis a redação do dispositivo: "Tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil antes da promulgação da EC 45, de 2004, poderão ser objeto de requerimento previsto no caput deste artigo [203-A]», que, a seu turno, dispõe que, uma vez «recebida mensagem do Presidente da República contendo tratado ou convenção internacional sobre direitos humanos, a Mesa fará publicar no avulso da ordem do dia o prazo de dez sessões para a apresentação de requerimento subscrito por um terço de deputados solicitando sua equivalência a emenda constitucional, nos termos do §3.º do art. 5.º da CF, acrescido pela EC 45, de 2004".
(12) No Senado tramita o PRS 29/2008, que ao acrescentar o art. 376-A ao Regimento Interno daquela Casa para estabelecer o rito de tramitação dos tratados internacionais sobre direitos humanos, nada dispõe sobre a possibilidade de que os acordos ratificados anteriormente à edição da EC 45/2004 voltem a ser reapreciados.
(13) CAMPOS COSTA, Aldo. A proteção internacional dos direitos humanos e a reforma do Poder Judiciário no Brasil. Revista Meridiano 47, ns. 52-53, nov.-dez., 2004, p. 5.
(14) DAVID ARAÚJO, Luiz Alberto e SERRANO NUNES JÚNIOR,Vidal. Curso de direito constitucional, 10. ed., Saraiva, 2006, p. 216-217.

Aldo de Campos Costa, Doutorando em Direito Penal pela Universidade de Barcelona (Espanha).


COSTA, Aldo de Campos. O debate legislativo a respeito do tratamento a ser dispensado aos tratados de direitos humanos anteriores à emenda constitucional n° 45, de 2004. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 16-17, jun., 2010. 

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