quarta-feira, 14 de julho de 2010

Artigo: Justiça (ainda que depois): STF, por fim, desvincula medida de segurança de pena privativa de liberdade

Com a reforma de 1984 e a eliminação do sistema duplo binário, o inimputável passou a sujeitar-se exclusivamente à medida de segurança, e o semi-imputável à pena ou à medida de segurança(1). De modo geral, o que determina a escolha do juiz, nesse segundo caso, são as circunstâncias pessoais, sobremaneira os aspectos da periculosidade(2). Assim, uma vez constatada a periculosidade, submete-se o semi-imputável à medida de segurança, e não à pena (que tem como fundamento de aplicação a culpabilidade), enquanto ao inimputável é reservada invariavelmente a medida de segurança.
Superada a fase de eleição da medida de segurança, o modelo brasileiro impõe a superação de um problema criado pelo próprio mecanismo legal: firmar qual medida de segurança será aplicada, isto é, se detentiva (internação) ou restritiva (tratamento ambulatorial).
Os artigos 96, 97 e 98 do CP preveem, resumidamente, que: a) as medidas de segurança podem ser impostas mediante internação (em “hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado”), ou, ainda, sujeição a tratamento ambulatorial; b) se o fato previsto como crime for punido com reclusão, a internação é a única modalidade admitida; c) a medida de segurança pode consistir em tratamento ambulatorial, desde que o fato previsto como crime seja punido com detenção.
Conclui-se, dessa sistemática, que, aos olhos da lei, o primeiro fator determinante da escolha da medida de segurança (se detentiva ou restritiva) vem a ser a espécie de pena privativa de liberdade prevista para o crime (reclusão ou detenção). É esse absurdo que merece especial atenção, pois a previsão trai uma inexplicável confusão entre tipos de sanção completamente antitéticos: a pena, baseada na culpabilidade do homem que compreende por inteiro a ilicitude de suas ações, e a medida de segurança, a qual, por contemplar a inconsciência da ilicitude, é a própria negação da pena, pois enfocada no fenômeno da periculosidade.
Não há o menor sentido na vinculação proposta pelo legislador (medida de segurança detentiva com reclusão, medida de segurança restritiva com reclusão ou detenção). Se a medida de segurança não se relaciona à pena, qual é a importância de haver o agente cometido crime apenado com reclusão ou detenção?
O que fez a lei, ilogicamente, foi presumir periculosidade mais intensa quando é praticada conduta apenada (se crime) com reclusão, impondo automaticamente a modalidade detentiva. Admite a espécie restritiva, de tratamento ambulatorial, só quando está prevista a detenção. Essa horrorosa miopia legislativa não observa que, sendo o critério de eleição da medida de segurança a inimputabilidade ou a semi-imputabilidade, o foco reside na periculosidade, e é sobre ela que recai a sanção. Um perigoso psicopata pode praticar um delito apenado com detenção, sendo provável que a ele não se indique o tratamento ambulatorial; por outro lado, a um sujeito acometido eventualmente de inconsciência, envolvido em crime apenado com reclusão, pode ser muito mais indicado o tratamento ambulatorial.
A discussão toma corpo exatamente nesses casos dramáticos: por indicação de laudo, o juiz constata que o réu é inimputável ou semi-imputável; obrigatoriamente (no primeiro caso) ou facultativamente (no segundo caso), aplica a medida de segurança; observa, então, qual a espécie de pena privativa de liberdade prevista para o delito imputado. Se for de reclusão, impõe a medida de segurança detentiva, não raro em contradição com o teor de laudos que não recomendam a internação. Se for de detenção (e somente nesses casos), pode optar pelo tratamento ambulatorial, embora a internação seja a regra. E o juiz assim procede, infelizmente, baseado na lei em vigor. É nesses momentos que o indivíduo de alta periculosidade pode ser submetido a um tratamento inócuo, e o sancionado com grandes chances de recuperação pode ser internado inutilmente, sujeitando-se ao agravamento de sua condição.
O Supremo, finalmente, está revendo o descuro do Juiz com a opinião médica e abandonando a interpretação desfavorável, desprovida de lógica, sugerida pelos artigos 97 e 98 do Código Penal.
Exemplo disso (e também de como o caminho da Justiça pode ser excruciante) é o recente Habeas Corpus 85.401, do STF, concedido a um paciente semi-imputável, condenado, em maio de 2002, por roubo tentado, à pena de 3 anos, 6 meses e 10 dias de reclusão, em regime aberto, depois substituída por medida de segurança detentiva (internação) pelo mínimo de 2 anos.
A espécie detentiva foi eleita porque o roubo é apenado com reclusão. Apenas por isso. Um laudo, todavia, indicava veementemente o tratamento ambulatorial, ao qual o acusado, aliás, já se vinha submetendo antes da sentença. A defesa apelou.
Até a decisão do STF, longos (e irrepetíveis) anos foram consumidos. No recurso contra a decisão condenatória, sustentou-se que o critério de escolha da espécie de medida de segurança não podia ser o puramente legal. Era necessário que os operadores do Direito ouvissem outros estudiosos – tarefa vista com desprezo em nosso meio. O TJRS entendeu a questão e, em janeiro de 2003, proveu o apelo, determinando a adequação da medida àquela recomendada pelos expertos (ACr 70004805263, 8.ª Câmara Criminal).
Mas o MP ofereceu Recurso Especial e, em agosto de 2004, teve-o provido no STJ (REsp 567.352, 5.ª Turma), ordenando-se a internação do réu. A partir daí, o condenado virou foragido, pois contra ele expediu-se mandado de internação.
Foi essa a decisão que motivou a impetração do Habeas Corpus perante o STF. Negada a liminar pela Presidência, em época de férias forenses (fevereiro de 2005), a 2.ª Turma da Corte Suprema, relator o ministro Cezar Peluso, demorou quase cinco anos para julgar o mérito (em dezembro de 2009), mas, finalmente, concedeu a ordem.
Com essa decisão, muda, finalmente, o panorama da execução das medidas de segurança no país: se os profissionais da área médica, com saber científico específico mais acurado que a autoridade judiciária, repelem a medida de internação, por reputá-la prejudicial, não há razão em lançar o condenado em um sistema de tratamento que pode comprometer sua saúde (ao invés de auxiliá-lo em sua recuperação) com base na previsão abstrata (e estúpida) de reclusão para o delito praticado.
É pena que o beneficiado, o semi-imputável referido acima, foragido desde 2004, não tenha podido usufruir da nova orientação da Corte Suprema, pois morreu antes da Justiça, esta que veio, ainda que tardia, mas que, por isso mesmo, ainda não morreu.

Notas

(1) Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal – Parte geral e especial. São Paulo: RT, 2008. p. 541-542.
(2) Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. v.1º. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 738.



José Francisco de Fyschinger, Advogado criminalista. Professor de Direito Processual Penal do Centro Universitário Ritter dos Reis/RS. Mestre em Ciências Criminais.
Thiele Zinn Panta, Advogada criminalista.

 FYSCHINGER, José Francisco de. PANTA, Thiele Zinn. Justiça (ainda que depois): STF, por fim, desvincula medida de segurança de pena privativa de liberdade. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 01-02, jul., 2010. 

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