domingo, 18 de julho de 2010

Artigo: Contribuições do labelling approach à discussão sobre a definição de crime organizado

labelling approach – também denominado enfoque do etiquetamento ou teoria da rotulação social – consiste em uma corrente sociológica surgida nos Estados Unidos, no final da década de 1950, cuja tese principal é a de que o desvio é criado pela sociedade, não sendo um ato desviante por suas características intrínsecas, mas pela atribuição dessa qualidade que lhe é conferida pelo entorno social. Esse enfoque, aplicado à criminologia, abandona a ideia de que o crime guarda em si uma realidade sociológica ou ontológica, sendo imbuído tão somente de uma realidade definitorial. O ato desviante, nessa esteira, nada mais é que o ato que foi definido como tal por uma norma social.
A percepção de que o crime é um constructo jurídico e de que a condição de criminoso não é um dado natural, mas um produto da ação dos mecanismos sociais de controle, levou a uma mudança radical de abordagem no que respeita ao objeto de estudo da criminologia. A teoria da rotulação social impôs que a criminologia removesse seu foco das causas da conduta criminosa, passando a estudar as consequências da ação do sistema penal sobre o indivíduo selecionado. Em suma, a teoria dolabelling trazao pensamento criminológico uma inversão no que tange às suas perguntas fundamentais. Não se pretende descobrir por que as pessoas cometem crimes, mas sim por que algumas condutas são criminalizadas, enquanto outras, ainda que socialmente lesivas, não o são. Mais além, tal enfoque pretende responder por que algumas pessoas são mais criminalizáveis (vulneráveis perante o sistema repressor) que outras, mesmo mediante a prática de condutas idênticas.
Essa alteração de enfoque, por certo, levanta uma questão metodológica relevante em relação à viabilidade de definição do que seja “organização criminosa”, tarefa imposta pela dogmática penal à criminologia, especialmente a partir da edição da Lei 10.217/2001, que modificou os arts. 1º e 2º da Lei 9.034/1995.(1) Uma vez que o crime não possui uma realidade ontológica, mas tão somente normativa, não seria possível, a princípio, a investigação de características tangíveis comuns a grupos de criminosos. Seria um contrassenso imaginar que um grupo de pessoas seria dotado de características psíquicas peculiares apenas porque a lei define como delito as condutas que pratica. Afirmá-lo seria retornar ao equívoco metodológico do paradigma etiológico da criminologia tradicional.
A própria tentativa de definição do que seja uma organização criminosa – contrapondo tal ideia à de agrupamento lícito – é imbuída de forte carga ideológica. Por certo, um agrupamento considerável e duradouro de pessoas não praticará apenas atos ilícitos ou lícitos. Mesmo entre as organizações tidas como lícitas, como uma empresa, não é raro que se averigue a prática de certos atos ilícitos, como fraudes ou sonegações fiscais, sem que, por isso, seja possível atribuir-lhes o rótulo de “organização criminosa”. Desse modo, por certo, de acordo com os postulados do labelling approach, a adoção do termo “crime organizado” consiste em um etiquetamento criador de desviação em determinados grupos.
Por esse motivo, Zaffaroni considera desprovida de cientificidade a utilização do conceito de organização criminosa no discurso jurídico, afirmando tratar-se de uma “categorização frustrada”. Nesse sentido: “Não há um limite claro e nem sequer aproximado que permita distinguir, entre uma empresa ‘legal’ e outra ‘ilegal’, porque sempre combinam atividades, sendo inclusive muito raro que uma empresa ‘lícita’ não incorra em alguma atividade ilegal. A tentativa de categorizar a atividade como ‘crime organizado’ fracassou no plano científico, pois tudo o que se pode provar é a existência de um fenômeno de mercado”.(2)
No que diz respeito aos agrupamentos surgidos nos presídios brasileiros – as ditas facções criminosas, comumente apontadas pelo discurso midiático como principal exemplo de “crime organizado” no Brasil – nem se pode afirmar, em defesa da legitimidade de uma definição essencial científica, que tais grupos teriam surgido finalisticamente orientados à prática de delitos, o que os diferenciaria de uma agremiação legal. O surgimento desses grupos é apontado como reação às violações de direitos de que são vítimas os internos do sistema penitenciário. Nesse sentido, por exemplo, a facção conhecida como Primeiro Comando da Capital teve como primeiro alvo de enfrentamento o estabelecimento penal anexo à Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté – o “Piranhão” –, apontado pelos presos como local de prática rotineira de atos de tortura e classificado como “campo de concentração” pelo estatuto da facção. O estatuto também menciona o “massacre do Carandiru”, um dos mais graves episódios de violação a direitos humanos de que se tem notícia no Brasil. Nesse sentido, no limite, tais grupos não surgiram visando diretamente à prática de delitos, mas à defesa de direitos.
Partindo do paradigma da rotulação social, autores afinados com o pensamento criminológico crítico vão além da mera enunciação da impossibilidade de definição científica de organização criminosa, apontando a existência de uma funcionalidade política obscura na atribuição do statusde criminosos a determinados agrupamentos. A criação, no imaginário social, da figura do criminoso como um personagem poderoso, inserido em uma estrutura organizacional sólida, tem o condão de induzir a sociedade a conferir legitimidade, pela disseminação do medo, a investidas autoritárias por parte das instâncias de controle formal sobre as liberdades individuais.
A definição de organização criminosa, portanto, constitui tarefa inexequível imposta ao criminólogo por uma política criminal orientada pelo discurso da lei e da ordem, tendo como escopo garantir a plena aplicabilidade dos institutos penais e processuais constritores de direitos e liberdades. Não gozando o conceito de organização criminosa de cientificidade, assim, o especialista que aceita a tarefa de defini-lo normalmente acaba fazendo-o por meio da reprodução de concepções policialescas inconsistentes, aderindo à ideologia autoritária que se vale da disseminação do medo para autorizar a hipertrofia das instâncias de controle.(3)

Notas
(1) O art. 1º da Lei 9.034/1995, que antes mencionava os meios de prova e procedimentos investigatórios que versassem sobre crimes resultantes de ações de quadrilha ou bando, com a nova redação, passou a fazer menção a “ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”. A lei não se ocupou em definir o que seria organização ou associação criminosa, contudo.
(2) ZAFFARONI, Eugenio RaúlCrime organizado: uma categorização frustrada. In: Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, ano 1, n. 1, 1996, p. 62-63.
(3) Nesse sentido, vale mencionar o posicionamento de Vera Malaguti Batista“Os especialistas reproduzem os conceitos da crônica policial. Fala-se de Estado paralelo, tudo é crime organizado, e o traficante converte-se numa categoria fantasmática, totalizante, meio homem, meio demônio, a encarnação do mal. Esta produção acadêmica policialesca não é ingênua, produz efeitos concretos, são discursos que matam” (BATISTA, Vera MalagutiHistória sem Fim. In: PASSETTI, Edson (coord.). Curso Livre de Abolicionismo Penal. Rio de Janeiro. 2004. Revan, p. 159).

Bruno Shimizu
Defensor Público do Estado de São Paulo.
Mestrando em Criminologia pela USP.


SHIMIZU, Bruno. Contribuições de labelling approach à discussão sobre a definição de crime organizado. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 01-02, jul., 2010.

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