terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Artigo: Tribunal do júri e o devido processo no estado de direitos humanos

Competência ratione materiae versus ratione personae
A instituição do Tribunal do Júri existe no Brasil desde 1822 (ano da independência), através de lei, após a Constituição do Império de 1824, nos artigos 151 e 152, estabelece: \"O Poder Judiciário é independente e será composto de juízes e jurados\" ... \"Os jurados pronunciam sobre o fato e os juízes aplicam a lei\", para julgamento de vários crimes.

Encontra-se, atualmente previsto na Carta Magna de 1988, no artigo 5.º, XXXVIII, o Tribunal do Júri para julgamento apenas dos crimes dolosos (art. 18, I da Lei n.º 7.209/84, CP - Parte Geral) contra a vida - homicídio; induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; infanticídio e aborto, arts 121, §§ 1.º e 2.º, 122 usque 128 do código penal, parte especial.

Incluiremos também a legislação extravagante com relação ao crime de genocídio tipificado na Lei nº 2.889/56, art. 1.º \"a\" cc. art. 205 e 208 do Código Penal Militar (Dec.lei n.º 1.001/69), e art. 29 da Lei n.º 7.170/83 de Segurança Nacional, em uma nova perspectiva legal constitucional em defesa da inviolabilidade do direito à vida, da dignidade da pessoa humana e da igualdade de tratamento ante a lei e perante os Tribunais.

Em todas estas hipóteses resta assegurado a plenitude de defesa, o sigilo das votações e a soberania do veredicto do conselho popular de sentença, para o devido processo legal, justo e necessário.

Na competência ratione materiae, ou seja, por matéria, referente aos crimes dolosos contra a vida, tanto na justiça comum: federal ou estadual, como na justiça especial militar, objetiva-se a proteção e repressão ao mais hediondo de todos os delitos, que existe na face da Terra - em tempo de paz -, a ofensa à vida, razão pela qual a lex fundamentalis assegura a inviolabilidade da vida, art. 5.º caput, bem como os instrumentos internacionais de Direitos Humanos, cito a Declaração Universal art. 3.º (ONU/1948), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ONU/1966) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (OEA/1969).

A Constituição de 1934, previa a instituição do Júri na seção destinada ao Poder Judiciário (art. 72) condicionando sua organização e as suas atribuições a uma lei posterior, hoje na forma do Código de Processo Penal (Dec-lei n.º 3689/41, com alterações dadas pela Lei n.º 11.689/2008).

Note-se. Em nenhum momento a Carta Magna vigente destaca a instituição do júri somente na esfera da 1.ª instância.

Interpretando-se corretamente o preceito constitucional de maneira restritiva, ainda que reze \"com a organização que lhe der a lei\" (inc. XXXVIII, art. 5.º CF/88), não se exclui do julgamento popular as pessoas referidas na competência de foro por prerrogativa de função - ratione personae -, prevista no inciso III do art. 78 CPP de 1942, por ser lei ordinária arbitrária elaborada na vigência do \"Estado Novo\", período ditatorial e anti-democrático.

O Código de Processo Penal foi imposto pelo Executivo via decreto-lei (instituto hoje, revogado expressamente), e tacitamente boa parte do Codex também foi derrogado pela Constituição de 1988; portanto, o Código de Processo Penal não está recepcionado na sua íntegra.

A Carta Magna somente recepciona dispositivo com conteúdo democrático. No caso do processamento e julgamento dos crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal do Júri, especialmente quanto ao foro por prerrogativa de função, este ofende o princípio da representação popular, seja na feitura das leis, onde a Constituição expressa que as normas penais materiais e formais são de exclusividade do Congresso Nacional, Parlamento Popular (art.22, I CF/88), bem como viola a própria soberania da representação popular do conselho de sentença do Tribunal do Júri.

A lei processual penal, no artigo 84 do CPP, regula a espécie de competência ratione personae, em defesa de cargos ou funções públicas exercidos por determinadas autoridades (arts. 29 X, 96 III, 102 I \"b\", e 105 I CF/88); exceto para o processamento e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, conforme interpretação hermenêutica, na releitura do verdadeiro e não formal Estado de Direito e dos Deveres Humanos.

Na hipótese de antinomia ou de conflito entre competência ratione materiae e ratione personae, não é o cargo que prevalece para definir a forma ou meio de julgamento, mas a dever estatal de respeito à dignidade e o direito da pessoa da vítima, de seus herdeiros ou representantes legais de ver processar o réu por um juízo natural - conselho popular - em razão da matéria, art. 78 I CPP, por força do foro attractionis e princípio da isonomia nos termos previstos na Lei Maior - Constituição federal - e não do contido na legislação infra-constitucional que ofende a igualdade de tratamento, principio basilar do Estado de Direito.

Quando dois ou mais réus forem acusados da pratica de crime doloso contra a vida, um com prerrogativa de função e outros não, todos devem ser julgados pelo Tribunal do Júri, porque este seria o mandamento constitucional prevalente. A defesa da vida é prioritária e vale mais do que qualquer justificativa de proteção a cargo ou função pública.

É vedada interpretação extensiva, elasticamente ou que menospreze preceito constitucional pétreo, especificamente quando se refere a garantia fundamental, quando exclui certas pessoas - autoridades - do juízo de competência do júri. Trata-se de tutela e repressão a ofensa ao bem supremo vida, e não de proteção ao cargo ou função pública, em nome dos princípios da igualdade, juízo natural, independência, transparência, maior publicidade e soberania da representação popular do conselho de sentença.

Na ponderação entre valores, maior sempre será a proteção e a repressão à ofensa a vida, princípio da obrigatoriedade da ação penal, versus a tutela da função pública. No Estado de Direito é defeso qualquer forma de mitigação do valor material e bem vida, em relação e comparativamente ao flagrantemente inferior valor formal do cargo público.

Seja na jurisdição de categorias ou hierarquia (1.ª e 2.ª instância), e especial (ex. militar, em tempo de paz), incisos v e iv do artigo 78 do Código de Processo Penal, sempre democraticamente prevalecerá o direito material superior vida, ante a prerrogativa formal de cargo ou função, posto que as autoridades públicas possuem o dever de prestação de serviços em atenção e respeito à vida.

Interpretando-se o texto constitucional modernamente e não à luz do Código de Processo Penal ditatorial, tem-se em todas as instâncias do Poder Judiciário a organização do júri, onde os regimentos internos dos tribunais superiores (TJ, STJ, STM, STF) disciplinariam a composição de listas de jurados (art. 425 CPP), de acordo com a previsão legal constitucional do júri, sendo o julgamento pelo conselho de sentença popular, porém presidido no 2º grau jurisdicional por desembargador ou ministro (o que não é uma novidade, visto que por força do Decreto nº 4.992 de 1872, as sessões do Júri eram presididas por desembargadores), e não como se têm agora, os crimes dolosos contra a vida julgado pelo Órgão Especial ou Pleno dos Tribunais.

Deste modo assegurar-se-ia o devido processo legal dos crimes dolosos contra a vida, e comitantemente as competências ratione materiae e ratione personane restariam mantidas, dando-se a mesma forma ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida, até para quem detêm prerrogativa de foro.

Destacamos imperativamente. Se isentos, estão, os magistrados de participarem do conselho soberano do júri (juízes de direito, juiz federal, desembargadores estaduais e federais e ministros dos tribunais superiores), em fulcro ao disposto no art. 437, V da Lei nº 11.689/08, alteração ao Código de Processo Penal; portanto, também restam impedidos de participarem do primeiro julgamento (seja na 2ª instância) que estão submetidas às autoridades acusadas da pratica de homicídio. Todos os cidadãos da República deverão ser julgados pelo juízo natural, composto por seus munícipes, eleitores e contribuintes.

Se os magistrados se encontram legalmente impedidos de comporem o corpo de jurados, é porque a instituição do júri democraticamente objetiva dar ao cidadão leigo, juízes não \"letrados\" ou não \"togados\", o direito de julgar as circunstâncias fáticas, a intenção (o dolo ou livre arbítrio do agente ativo), motivo, forma, maneira de execução e possíveis causas de exclusão da ilicitude (arts.23/25 do Código Penal).
O \"cidadão comum\" julgando outro \"cidadão comum\"; nesta mesma linha de raciocínio não se admite, \"in contrarium sensu\", \"cidadãos incomuns\", autoridades julgando com exclusividade e privilégio outras autoridades. Na lógica filosófica e sociológica tal situação no mínimo é ilegítima e injusta.

O sentimento de justiça está na natureza e é humano, está no coração do homem, dos simples e puros de espírito, estes possuem noções até mais exatas de justiça do que os doutos e daqueles que se dizem detentores do saber acadêmico ou jurídico.

Estamos diante de um direito constitucional dos cidadãos, de ser e ter seu algoz julgado pelo júri popular, sem preconceito, nenhuma distinção ou discriminação de qualquer espécie ou natureza, para a concretização de uma sociedade justiça e solidária (art. 3.º, I e IV cc. 5.º caput e inc. I CF/88).

Pelo princípio básico da ciência médica homeopática, similia, similibus curantur, os semelhantes se curam (método desenvolvido pelo médico alemão Dr. Samuel Hahnemann, no sec. xiv), é racional, seja para punição ou absolvição, esta por indulgência, clemência ou perdão humano.
\"Pai nosso que estais no Céu, Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido\" oração que se traduz em fraternidade, liberdade e igualdade, tripé da Revolução Francesa sec. xviii.

Falamos de mandamentos em defesa do direito supremo da vida e da criação universal: não matar, amar uns aos outros e fazer pelo próximo exatamente o que gostaríamos que o próximo fizesse por nós. Esta é a lex generalis major que derroga todas as demais.

A garantia judicial penal fundamental e formal em análise, que se dá é a do direito da vítima, de seus herdeiros ou representantes legais de ver o autor de delito doloso contra a vida julgado por seus próprios co-cidadão (juízes de fato), em sessão do júri popular, na esfera do 1.º ou 2.º grau de jurisdição. Somente em grau de recurso, na forma da lei, que se legitima o processamento e julgamento pelos desembargadores estaduais ou federais e ministros dos tribunais superiores.

De outro lado, a importância do julgamento dos crimes dolosos contra a vida, no local da infração, onde se pode apura melhor as circunstâncias fáticas do ilícito, posto que geralmente vive o réu e/ou a vítima.
Esta regra número um da competência ratione loci (art. 69, I CPP), também deveria ser para o Tribunal do Júri. Não acontece com a competência ratione personae que desloca o processamento para as capitais dos Estados ou à Brasília, capital da República, na sede dos Tribunais de Justiça e Superiores, respectivamente.

Segundo as Nações Unidas (Declaração sobre os Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos, ONU Res. 40/34, 1985), na expressão \"vítima\" se inclui familiares e todas as pessoas com relação direta e que tenham sofrido qualquer espécie de dano moral ou material pelo crime; e deve-se ter compaixão e respeito com a dignidade da vítima, através de mecanismos legais e práticos de acesso a justiça que demonstrem mais democráticos, transparentes, imparciais e céleres.

Os documentos internacionais Pacto San José da Costa Rica (art 8.º) e Pacto Internacional (art. 14) expressam: \"Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e cortes de justiça... com as devidas garantias de competência, independência e imparcialidade\" (ratificados pelos decretos n.º 592 e 678/92, respectivamente).

No Projeto de lei do Senado Federal n.º 156/09, de reforma do Código de Processo Penal, a competência do júri consta prevista nos artigos 98 e 99 e sua composição no art. 309 usque art. 398.
Propomos adequação e revisão no § 1.º do artigo 113, em nome da garantia ao princípio de isonomia e do objetivo maior de tutela à vida e repressão a sua violabilidade, a fim dos autores de crimes dolosos contra a vida, independentemente do cargo ou função, serem submetidos ao conselho de sentença composto sempre por cidadãos, juízes de fato, na 1.ª e 2.ª instância jurisdicional.

Assim se efetivará a democracia em todos os níveis da prestação jurisdicional (inc. XXXV, art. 5.º CF/88), e também a literatura sócio-jurídica e a doutrina penal-criminológica deixará de denominar certas formas de julgamentos como se fosse uma espécie de \"judicatura de compadres\" ou \"tribunal de exceção maquiado ou acobertado\" (inc. XXXVII, art. 5.º CF/88).

A administração pública e as leis - por ela elaboradas e aprovadas através dos representantes legais - devem ser éticas, em prol dos princípios maiores que prestigiam a justiça, a imparcialidade e a isonomia, sendo inadmissível, portanto, a divisão entre cidadãos de 1.ª ou de 2.ª categoria. Viva a Vida, a Defesa da Cidadania, os Deveres Humanos e o Estado de Direito na República Federativa do Brasil.


Autor: Cândido Furtado Maia Neto é professor pesquisador e de pós-graduação.

Fonte: Bom Dia Advogado.

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