quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Artigo: Ativismo judicial e processo penal: mais warren’s court e menos law and order


Encontra-se na pauta do dia a discussão acerca do chamado ativismo judicial operado pelo Poder Judiciário, notadamente o desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal. A reflexão sobre tal “fenômeno” ultrapassa por vezes o âmbito jurídico, estando presente nos veículos midiáticos(1).
No que tange às críticas sobre o desempenho de tal função ativa, argumenta-se que haveria uma extrapolação da função institucional e constitucional do órgão de cúpula do ordenamento jurídico nacional, devido à ausência de legitimidade democrática para exercício de algumas funções, e pelo desvirtuamento de sua competência de tribunal constitucional. Tal insurgência parte frequentemente do setor mais “conservador” da sociedade brasileira justamente contra decisões em questões da seara penal e processual penal que, geralmente, pendam para a limitação e contenção do poder punitivo estatal.
De qualquer forma, há de se registrar que tal fenômeno não é de exclusividade do nosso Poder Judiciário. Em diferentes partes do mundo, em épocas diversas, cortes constitucionais ou supremas cortes destacaram-se em determinadas quadras históricas como protagonistas de decisões envolvendo questões de largo alcance político(2), despertando a atenção dos interesses dos mais variados setores (conservadores) da sociedade. Destaca-se como um dos maiores exemplos dessa postura ativa a atuação da Suprema Corte norte-americana a partir da década de 50, a Warren´s Court(3), na qual houve a produção de notável jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais, p. ex., direitos dos acusados e investigados em processo criminal (Mirandav. Arizona, 1966), e liberdade de escolha acerca da interrupção de gravidez, descriminalizando o aborto (Roe v. Wade, 1973).
Voltando ao caso brasileiro, tal avanço das funções da jurisdição constitucional pode ser atribuído talvez como característica de um estágio neoconstitucionalista para o qual se encaminha o direito nacional(4), cujo traço característico é o foco no Poder Judiciário. De poder quase “nulo”, mera “boca da lei”, o juiz se viu alçado a uma posição muito mais importante no desenho institucional do Estado contemporâneo. Essa redefinição de postura se deveu à nova engenharia constitucional positivada nas mais variadas constituições contemporâneas, com destaque para as da Europa continental do pós-guerra. Inicialmente, a percepção de que as maiorias políticas podem perpetrar ou acumpliciar-se com a barbárie, como ocorrera de forma exemplar no nazismo alemão, levou as novas constituições a criarem ou fortalecerem a jurisdição constitucional, instituindo mecanismos potentes de proteção dos direitos fundamentais mesmo em face do legislador(5).
Essa preocupação não passou desapercebida pelo legislador constituinte brasileiro de 1988, ainda que tardiamente, por questões óbvias. Nossa Carta Magna representou a passagem do Estado de Polícia a um efetivo Estado Democrático de Direito. Após a violência institucionalizada do regime ditatorial, a República brasileira optou por uma grande renovação de seus valores. E a opção da Constituinte ficou evidente ao inscrever os valores que iriam se transformar em seus fundamentos, dentre os quais se destaca a dignidade da pessoa humanaE com o estabelecimento no título seguinte “Dos direitos e garantias fundamentais”, destacando-se a posição topográfica escolhida para sua alocação e principalmente a extensão de seus dispositivos, a Constituição realmente merecia a alcunha de “cidadã”.
E como bem ressalta Ingo Sarlet, o procedimento analítico do Constituinte revelou “certa desconfiança em relação ao legislador infraconstitucional, além de demonstrar a intenção de salvaguardar uma série de reivindicações e conquistas contra uma eventual erosão ou supressão pelos Poderes constituídos”(6).
É nesse sentido que o Supremo Tribunal Federal, em recentes decisões de questões processuais penais, vem desempenhando sua função de guardião da Constituição. De forma absolutamente compromissada com os direitos e garantias fundamentais do cidadão, assegura o respeito aoprincípio republicano da dignidade humana, não inovando ou extrapolando; apenas aplicando ao caso concreto os princípios constitucionais que são ou desprezados pelos outros atores políticos, ou erroneamente interpretados (invariavelmente feita pelas instâncias judiciais ordinárias em sede processual penal no sentido da “busca pela verdade real”, ou em “defesa da sociedade”).
É inegável que essa atividade acaba adquirindo caráter político. Porém, esse atuar emerge pelo fato dos entes políticos aparentarem relegar os princípios constitucionais processuais penais (alicerces constitucionais do Estado)(7) a um segundo plano. Tal postura rememora um estágio positivista violador contumaz do princípio da supremacia da Constituição, clamando pela atuação do Supremo Tribunal Federal, seja na reforma (ou cassação) de decisões judiciais contrárias à Constituição, principalmente em sede de habeas corpus, seja pela declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos e edição de enunciados de súmula vinculante (revelando o caráter contramajoritário da corte constitucional, que embora seus membros não tenham sido eleitos, têm o poder de afastar ou conformar leis elaboradas por representantes escolhidos pela vontade popular)(8).
No momento em que vivemos uma fase delicada do Parlamento brasileiro, de promulgação de leis criminais altamente punitivas (eivadas invariavelmente do vício da inconstitucionalidade) como produtos da política de Law and Order pautada pela agenda político-eleitoral, clama-se em muitas ocasiões a atuação do Supremo Tribunal Federal com vistas a salvaguardar os direitos e garantias fundamentais do cidadão alvo de persecução criminal, expressamente consagrados no texto constitucional.
A atividade criadora do Supremo Tribunal Federal, em matéria de garantias constitucionais ligadas ao sistema punitivo, encontra-se contida em seu dever de delimitar o círculo de atuação das instituições estatais, definindo a exata conformação do âmbito de proteção dos direitos individuais(9).
Esta assertiva tanto é verdadeira que recentemente foi celebrado o “II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo”, que contou com assinatura dos representantes dos 3 (três) Poderes da República(10). Registre-se a subdivisão do mesmo em três pontos prioritários, destacando-se o relativo à proteção dos direitos humanos e fundamentais. Dos 12 (doze) subitens apresentados como desdobramento desse ponto, 9 (nove) são relativos a assegurar garantias processuais penais (dentre os quais podem ser citados a atualização da Lei 9.296/96, objetivando evitar violação aos direitos fundamentais; revisão da legislação relativa ao abuso de autoridade, a fim de incorporar os atuais preceitos constitucionais de proteção e responsabilização administrativa e penal dos agentes e servidores públicos em eventuais violações aos direitos fundamentais; atualização da disciplina legal das CPI’s; disciplina do uso de algemas, de forma a atender ao princípio da dignidade humana).
A celebração desse pacto revela a “distância entre os princípios constitucionais (desdobrados nos direitos e garantias fundamentais do cidadão) e a efetiva prática infraconstitucional penal, buscando-se coadunar as condutas institucionais dos entes da Administração Pública aos parâmetros estabelecidos pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”.
Em verdade, as críticas a um “ativismo judicial” deveriam ser direcionadas para uma outra postura ativa judicial, que doutrinariamente não é classificada como “ativismo”, mas que, em nosso entender, extrapola as funções institucionais do julgador, afetando sua imparcialidade, sendo potencialmente danosa à dignidade humana e desequilibradora de um processo penal justo: os poderes ativos do juiz em sede de persecução criminal. A mera previsão legal desses poderes(11) revela direta violação ao princípio acusatório e da inércia da jurisdição penal, dispositivos típicos de um sistema inquisitório, colocados invariavelmente à disposição de uma política Law and Order de combate à criminalidade.
Desta forma, no que tange à discussão do ativismo judicial em matéria penal, a grande questão que se apresenta é a identificação do ponto de vista político a ser adotado, de forma simples e sem rodeios: “ou se objetiva a proteção dos direitos e garantias fundamentais do cidadão ou o combate à criminalidade como ‘defesa social’; pensa-se no homem ou no Estado; na efetividade constitucional (centrada na dignidade humana) ou no eficientismo penal”.
A escolha política do Constituinte de 1988 foi feita, solucionando a problemática colocada por Bobbio, de que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los (...) sendo um problema não filosófico, mas político”(12).
Inserindo-se nessa reflexão, devemos analisar o exemplo norte-americano. Mas não na importação de institutos e políticas hipercriminalizadoras, recaindo num “deslumbramento ingênuo que impele à imitação acrítica de modelos estrangeiros”(13), e sim no que funcionou nos Estados Unidos; o que fez essa nação ser lembrada justamente pelo respeito à ordem constitucional e os direitos e garantias fundamentais do cidadão.
Em outras palavras, em matéria de ciências penais, urge a nossa criminal procedure revolution espelhando-nos mais no exemplo da Warren’s Court e menos no da Law and Order.

NOTAS

(1) Por todos: BRASIL, O GLOBO. O papel do Supremo. Coluna de Merval Pereira. 21.03.09, p. 4.

(2) BARROSO, Luís Roberto. A judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: Revista Atualidade Jurídicas: revista eletrônica do C.F. da OAB. n 4. jan/fev 2009. Disponível em: www.oab.org.br/oabeditora. Acesso em 21.05.2009.

(3) Durante a presidência de Earl Warren na Suprema Corte norte-americana, operou-se a “criminal procedure revolution” haja vista a reformulação da base constitucional do processo penal estadunidense, criando “constitutional standards” que vincularam toda a Administração Pública daquele país. ISRAELJerold H.; LaFAVE, Wayne RCriminal procedure: constitutional limitations. 6th ed. St. Paul, Minnesota (EUA): West Group. 2001. p.1/9.

(4) Sobre o tema: SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil.In: LEITE, George S.; SARLET, Ingo W. (coord.). Direitos Fundamentais e Estado Constitucional: estudos em homenagem a J.J. Gomes CanotilhoSão Paulo: RT; Coimbra (PT): Coimbra. 2009. p. 32. O autor, porém deixa claro que não há ainda uma definição clara de que o ordenamento jurídico nacional tenha incorporado o neoconstitucionalismo, mas registra que há inegável emergência de uma nova forma de conceber o direito e o Estado na sociedade brasileira contemporânea.

(5) SARMENTO, Daniel. op. cit. p. 14.

(6) SARLET, Ingo WA eficácia dos direitos fundamentais. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2009. p. 65.

(7) FIGUEIREDO DIAS, JorgeDireito Processual Penal. Coimbra editora: Coimbra. 1974. p. 74.

(8) BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo.São Paulo: Saraiva. 2009. p. 385.

(9) BOTTINO, ThiagoO direito ao silêncio na jurisprudência do STF. Rio de Janeiro: Elsevier. 2009. p. 196.

(10) Tal pacto foi assinado em 13.04.2009. Disponível em: www.mj.gov.br. Acesso em 13.04.2009.

(11) Artigos 5o, II; 127; 156, II; 209; 311e 383, todos do CPP. LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. vol.I. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007. p. 185.

(12) BOBBIO, Norberto. Era dos direitos. trad. Carlos Nelson Coutinho. 7a reimp. Rio de Janeiro: Elsevier. 2004. p. 23.

(13) BARBOSA MOREIRA, José CarlosTemas de direitos processuais. (8a série). São Paulo: Saraiva. 2004. p. 7.



Diogo Tebet, Mestre em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica/RJ. Coordenador adjunto da 6ª região do IBCCRIM. Membro efetivo da Comissão Permanente de Direito Penal do IAB. Advogado criminal.




TEBET, Diogo. Ativismo judicial e processo penal: mais warren’s court e menos law and order. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 205, p. 06-07, dez., 2009.


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