“O habeas corpus não é só uma reclamação da sociedade civil, mas uma necessidade do próprio governo, pois a boa autoridade só pode vigiar a má autoridade pelo controle das prisões, proporcionado pelo habeas corpus”.
Ainda hoje ressoam as palavras de Raymundo Faoro, quando, presidente da OAB, em 15 de junho de 1977, em entrevista à Folha de São Paulo, mobilizava a sociedade brasileira em sua luta pelo restabelecimento da democracia. Pelo que conhecia da história brasileira, o jurista e grande pensador brasileiro tinha em mente a dinâmica própria dos nossos periódicos ciclos autoritários, medidos pelo sismógrafo do habeas corpus, com suas restrições e mesmo supressões, como foi o caso do AI 5. Nosso intérprete do Brasil sabia, como leitor de Pontes de Miranda e de seu clássico História e Prática do Habeas Corpus, por exemplo, que a Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, em seu artigo 18, §2º excluía das hipóteses de cabimento do writ as impugnações a ilegalidades derivadas de pronúncia e condenação! E conhecia suas circunstâncias! A Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871), a prenunciar a liberdade de negros que o sistema penal haveria de recolher e “educar” e para os quais a garantia do habeas corpus poderia significar a defesa da liberdade de locomoção, certamente afligia as elites intolerantes e reclamava, preventivamente, medidas duras.
É claro que o aceso debate parlamentar sobre as restrições ao habeas corpus também deixava evidente a peneira por onde escorreriam, acaso se fizesse necessário, as demandas de defesa da liberdade atingida indiretamente pela via do abuso da acusação contra integrantes das classes dominantes, que eventualmente, muito eventualmente mesmo e bastante por conflitos intestinos na própria elite, viessem a ser processados. São paradigmáticas as palavras do senador José Tomás Nabuco de Araújo, durante a discussão do projeto, que alertava para o fato de que a adoção do texto restritivo do habeas corpus, conforme proposta do Ministro da Justiça do Império, teria impedido o então Supremo Tribunal de Justiça de conceder habeas corpus ao Visconde de Abaeté, que, já na situação, presidia o Senado!
A resposta de Antonio Paulino Limpo de Abreu, o Visconde, ao parlamentar liberal, fala do estado da arte em nossa história e contra o qual a luta republicana e democrática tem o dever de ser travada: “no meu caso”, citava o senador visconde, havia incompetência porque fora processado perante juiz municipal e as leis previam a jurisdição mais elevada ao então Desembargador da Relação do Rio de Janeiro (Pontes de Miranda, 1999, p. 181)!
Bem... os futuros libertos, basicamente ex-escravos, não fariam jus a ser julgados em qualquer foro privilegiado, tampouco mereceriam defesa em forma da hábil esgrima interpretativa que tomava uma das modalidades de nulidade absoluta por gênero, para dar habeas corpus ao Desembargador Visconde, presidente do Senado, quando a lei poderia negar ao cidadão comum às voltas com o processo criminal!
Ao grupo majoritário das pessoas sujeitas ao processo penal reservava-se o habeas corpus com perfil bastante restrito, do tipo que a atual reforma do Código de Processo Penal, pelo texto do parágrafo único do projetado artigo 636, pretende implantar: “Não se admitirá o habeas corpus nas hipóteses em que seja previsto recurso com efeito suspensivo”!
Em tema de limitação de direitos parece que estamos condenados a repetir o passado autoritário!
Sem dúvida que agora, sob o pálio da Constituição da República de 1988, a invocação expressa do medo que os indesejáveis e excluídos geram não pode tomar a frente e dar-se toda como argumento ao propósito de limitação do HC. Para isso, a moderna teoria do processo irá buscar fundamentos técnicos: a) a multiplicação de demandas de HC nos Tribunais, especialmente nos Superiores, a emperrar as pautas; b) a manifesta inidoneidade de muitos writs, que inviabilizam o julgamento antecipado do próprio mérito dos processos em que a coação ilegal pode estar ocorrendo; c) o desiderato de atender às exigências de duração razoável do processo, direito fundamental da EC 45 que, em tese, termina atingido pelas interrupções provocadas por liminares e decisões definitivas dos HCs.
Será ingenuidade supor algo do gênero. A técnica e a ciência como ideologia não são novidade. As recentes propostas legislativas de endurecimento das respostas penais – e mesmo, no projeto, as circunstâncias da condenação sumária denominada “procedimento” – são reveladoras do real contexto de “punitivismo exacerbado” que domina o debate sobre o sentimento de violência nos dias atuais. E o parente próximo da lamentável iniciativa pode ser encontrado na Lei Antiterrorista e de Efetividade da Pena de Morte, dos Estados Unidos da América, editada pós 11 de setembro de 2001 e cujo nome já diz tudo, mas justifica que algo mais seja ressaltado: por essa lei, qualquer questão apresentada por meio de habeas corpus tem que haver sido argumentada no processo estatal!
Restringir o exercício da defesa penal. Limitar, contra o texto constitucional, a legitimidade de quem poderá reclamar das ilegalidades no processo, afastando a possibilidade de intervenção de qualquer outra pessoa – até do juiz de ofício - para circunscrevê-la às partes, pelos recursos. Tratar casos manifestos de “abusos de poder” como meros percalços no processo, sanáveis por recurso, dispensando-se, pois a apuração das origens e responsabilidades pelas citadas ilegalidades. Mostrar contradição com o viés de garantias que em várias passagens o próprio projeto intenta consagrar, quer pela exigência de defesa efetiva, quer por cercar de cuidados a instrução preliminar, proscrevendo o juiz garantista. Ignorar recente jurisprudência dos tribunais superiores que, pelos HCs, expulsam dos processos as provas ilícitas; abominam exigências abusivas na execução penal (Cezar Peluso, Celso de Mello); materializam o princípio do juiz natural (Laurita Vaz); questionam matéria processual (Maria Thereza) e põem cobro ao abuso do exercício da ação penal. Fazer pouco caso da proibição do retrocesso.
Eis, aí claramente o cenário que o PLS n.º 156 desenha para o nosso futuro, afligindo sim nossos espíritos, ainda não descansados da recente história autoritária que por certo faz pular Raymundo Faoro, onde quer que esteja!
Pontes de Miranda prefaciou, em 1972: “Há cinqüenta e seis anos publiquei esta obra; e o que me alegra, profundamente, é que, durante toda a vida, até hoje, continuei com as mesmas convicções e nunca as traí. Vi lá fora os erros dos que ferem a liberdade, fraudam a democracia e não compreendem que se tem de avançar no sentido de se diminuir a desigualdade humana. O habeas corpus foi um dos passos mais seguros e uma das armas mais eficientes para a salvação da civilização ocidental. É o “não”, que a Justiça diz, em mandamento, à violência e à ilegalidade; é o “sim”, a quem confia nos textos constitucionais e nas leis. Mesmo aqueles povos que avançaram... com revoluções, para a maior igualdade, têm, com o tempo, de atender a que para o Homem há três caminhos que o elevam no futuro: a democracia, a liberdade e a maior igualdade”.
É, pois, justificado o receio de que a restrição ao habeas corpus nos faça olvidar da advertência de Boaventura de Souza Santos, sobre descobrirmos com atraso o que sabíamos quando nos considerávamos atrasados, e tratarmos a questão com ironia distinta da que Pontes de Miranda reservou contra os ditadores brasileiros dos anos 70, e assim fazermo-nos vítimas do “progresso” que se expressa em limites estreitos para a defesa da liberdade, justamente agora sob a égide de uma Constituição que proclama a dignidade de todos os brasileiros e que se propõe a ser o instrumento das liberdades!
O IBCCRIM, por sua história, vocação e compromissos lutará politicamente para que o HC permaneça como instrumento e remédio a serviço da liberdade.
EDITORIAL: Pelo habeas corpus, outra vez. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 205, p. 01, dez., 2009.
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