quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Artigo: O novo artigo 213 do código penal, uma verdadeira novatio legis in mellius

Recentemente, pela Lei n.º 12.015/2009, houve uma grande reforma no Título VI do Código Penal, que passou a ser intitulado “Dos crimes contra a dignidade sexual”. Uma das alterações mais relevantes trazidas por esta novel legislação, salienta-se, foi a junção dos antigos artigos 213 (estupro) e 214 (atentado violento ao pudor) do Estatuto Penal, em um tipo único (artigo 213, caput, Código Penal), com a seguinte redação: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”.
A partir de agora, como facilmente se percebe, a figura do estupro se transformou em um claro exemplo de crime de ação múltipla (conteúdo variável, tipo misto alternativo), ou seja, é uma figura penal que em seu preceito primário contém a descrição de diversas condutas, comportamentos, que podem ser perpetrados pelo agente.
À primeira vista, numa análise apressada, principalmente porque a pena cominada permaneceu inalterada e a descrição do tipo não sofreu grandes alterações, poder-se-ia dizer que não houve mudanças significativas neste dispositivo.
No entanto, esta não é uma assertiva correta. Isto porque, aglutinando aqueles dois crimes em um único dispositivo, certamente se terá como repercussão prática a mudança do entendimento quase pacífico no âmbito dos Tribunais Superiores(1), não reconhecendo a existência de crime continuado(2) entre o antigo estupro e o atentado violento ao pudor, afora as hipóteses de praeludia coiti, sob o argumento de que não seriam crimes da mesma espécie, ainda que praticados nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução.
Afinal, doravante, o óbice intransponível apontando por esta corrente – tratar-se de crimes antevistos em tipos diferentes – deixou de existir, pois as duas condutas, antes autônomas, estão agora tratadas na mesma figura penal.
Por ser assim, quando perpetrados nas mesmas condições de locus, tempus e modus operandi, nos termos do artigo 71 do Código Penal, deverá ser reconhecida a existência de crime continuado, quanto às condutas que antes recebiam o nomen iuris de estupro e de atentado violento ao pudor, hoje contempladas no artigo 213, caput, da Lei Penal.
E, ainda, sendo esta lei muito mais benéfica ao agente, deverá incidir no caso concreto a regra do artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, que determina que “a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado” (destacou-se).
Ressalta-se, como se vê, que o aludido dispositivo confere retroatividade aos dispositivos que de qualquer maneira sejam mais benéficos àqueles que pratiquem os respectivos crimes, mesmo que de maneira reflexa, como na hipótese do reconhecimento da continuidade delitiva.
Ademais, mesmo nos casos de processos com sentença condenatória irrecorrível, ainda assim deve ser aplicada tal conclusão, isto porque o supracitado dispositivo do Código Penal, que consagra o princípio do novatio legis in mellius, é expresso no sentido de que a nova lei retroage para alcançar fatos anteriores à sua vigência, “ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.
Neste último caso, destaca-se, caberá ao juiz das execuções criminais reconhecer a existência do mencionado benefício, segundo o teor da Súmula 611 do Supremo Tribunal Federal(3), decorrente da interpretação da parte final do artigo 82 do Código de Processo Penal(4)combinado com o artigo 66, inciso III, alínea a, da Lei de Execução Penal(5).
Entretanto, esta não é a única grande modificação relevante trazida pela Lei nº 12.015/2009. Ainda mais sur­preendente é a hipótese do agente que, num único contexto fático e contra a mesma vítima, pratica os crimes que antes se chamavam de estupro e de atentado violento ao pudor (por exemplo, uma conjunção carnal e um coito anal), fora da citada hipótese do prelúdio do coito; até a citada mudança legislativa, havia a tipificação dos dois crimes autônomos e em concurso material(6), porém, a partir de agora, estar-se-á diante de um único estupro (artigo 213, caput, Código Penal).
Isto porque, por se tratar presentemente, conforme dito acima, de um crime plurinuclear,“o agente, mesmo realizando duas ações, estará violando a norma apenas uma vez”(7), em razão da incidência do princípio da alternatividade; mas, por outro lado, certamente com um maior grau de reprovabilidade, o que influenciará na fixação da sua pena-base (artigo 59 do Código Penal).
Lembre-se, para reforçar a assertiva acima feita, do exemplo do artigo 33 da Lei de Tóxicos: se o agente realiza mais de uma das dezoito condutas ali antevistas – como na hipótese do criminoso que fabrica determinada porção de droga e, depois, a transporta para certo local, onde a mantém em depósito por um tempo e, finalmente, a entrega a consumo de um usuário – desde que em uma mesma situação de fato, obviamente terá cometido, da mesma maneira, apenas e tão somente um único crime.
Nem se diga, outrossim, que a existência da conjunção alternativa ou entre as duas condutas previstas na mencionada cabeça do artigo 213 do Código Penal (“constranger alguém, (...), a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”) possa afastar a interpretação apontada, já que tal expressão tem como função única unir as duas condutas previstas no preceito primário do tipo.
Existe, aliás, no Código Penal um outro crime que contém a estrutura do tipo bastante parecida ao do delito sob análise, trata-se do crime definido no artigo 122, caput, da Lei Penal, o Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (“induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça”).
Este delito, como o novo estupro, é de ação múltipla e as condutas criminosas descritas são conectadas pela partícula “ou”. E é bom frisar, para o crime contra a vida, a doutrina já se pacificou no sentido de que “ainda que o agente pratique mais de uma ação, o crime será único (tipo alternativo)”(8), afinal, há somente lesão a um bem jurídico.
Ora, por ser assim, é evidente que, no caso do estupro, da mesma maneira, mesmo que realizadas pelo autor as duas condutas antevistas no tipo, ainda assim haverá um crime único. Esta é a conclusão mais lógica, justa e legítima, que se pode encontrar diante dos princípios reguladores do Direito Penal.
Destaca-se, por derradeiro, que esta interpretação, por ser mais benéfica, igualmente alcança todos os fatos pretéritos, ainda que apreciados em processo com sentença já transitada em julgado, pela já citada incidência do artigo 2º, parágrafo único, do Estatuto Penal.
A Lei n.° 12.015/2009, por tudo o que foi dito aqui, certamente trouxe grandes inovações, principalmente quanto ao concurso das condutas previstas no caput do artigo 213 do Código Penal, sendo que a solução jurídica encontrada, malgrado certamente não tenha sido a intenção do legislador, é muito mais benéfica aos criminosos.
NOTAS
(1) Como exemplos recentes: STJ, HC 102.362/SP; HC 86.860/CE; HC 85.034/SP; HC 80.969/SP; AgRg no REsp 838.743/RS; STF, HC 95.413/SP; HC 94.504/RS; HC 91.370/SP; HC 88.466/SP. Em sentido contrário: STJ, HC 99.810/SP; STF, HC 89.827/SP.
(2) Artigo 71 do Código Penal.
(3) Súmula 611 do STF - “transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna”.
(4) Art. 82, parágrafo único, CPP - “Se, não obstante a conexão ou continência, forem instaurados processos diferentes, a autoridade de jurisdição prevalente deverá avocar os processos que corram perante os outros juízes, salvo se já estiverem com sentença definitiva. Neste caso, a unidade dos processos só se dará, ulteriormente, para o efeito de soma ou de unificação das penas”.
(5) Art. 66, inciso III, letra a, LEP - “Compete ao Juiz da execução: (...) decidir sobre: soma ou unificação de penas”.
(6) Neste sentido: STF, HC 96.959/SP; HC 95.629/SP; HC 91.370/SP.
(7) TELES, Ney Moura. Direito Penal:Parte Geral. 2a edição. Editora Atlas, 2006, p. 194.
(8) DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. 6a edição. Renovar, 2002, p. 265.


Matheus Silveira Pupo, Advogado.


PUPO, Matheus Silveira. O novo artigo 213 do código penal, uma verdadeira novatio legis in mellius. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 205, p. 13-14, dez., 2009.
 

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