Autor(es): Fausto Martin De Sanctis |
Valor Econômico - 13/11/2009 |
O Projeto de Lei nº 156, de 2009, do presidente do Senado Federal, José Sarney, com propostas para alterações do Código de Processo Penal (CPP), além de considerar os magistrados totalmente inertes, inova ao permitir ao investigado sugerir provas e até "entrevistar pessoas", possibilitando uma investigação conduzida por ele próprio. Ao contrário do direito americano, que não prevê acesso às investigações, a menos que haja recebimento da acusação pelo "grand jury", e mesmo se não prejudicar a continuidade das apurações com relação aos demais envolvidos, possibilita um acesso amplo, conferindo um direito subjetivo ao investigado, antes mesmo que a investigação sigilosa seja concluída, como se fosse possível avisar previamente as ações estatais e não comprometer o resultado útil, desconsiderando o risco existente para as testemunhas e para os réus colaboradores. O projeto de lei condiciona o processo penal, no caso de representação da vítima, a uma nova manifestação desta em 30 dias após a conclusão das investigações, sob pena de decadência, constituindo mais um ônus a ela desnecessário. Determina a conclusão do inquérito policial em 10 dias, salvo no caso de prorrogação da prisão, ou em 90 dias, se solto - prazos exíguos considerando a criminalidade organizada e as dificuldades de sua investigação e processamento. E inclui uma questão ainda sob debate nacional: impõe ao juiz a motivação da suspeição invocada por razões de foro íntimo junto aos órgãos correcionais, além de criar uma nova figura de suspeição, isto é, a de que "do fato se puder deduzir", colocando em dúvida a imparcialidade em qualquer decisão que desatenda os interesses das partes. À exceção do júri, não existe previsão da faculdade de separação de processos por motivo relevante ou por outro motivo (excessivo número de acusados e conveniência da instrução), dificultando enormemente a atuação processual, em claro prejuízo da celeridade e da verdade. No caso de testemunhas residentes no exterior, há silêncio quanto à não suspensão da instrução criminal, o que pode torná-la infinita. O projeto de lei passa a prever a possibilidade de o juiz sucessor que vier a proferir a sentença repetir todas as provas produzidas - mais um elemento procrastinatório discutível. Na sentença, não mais poderá o juiz reconhecer agravante, havendo manutenção do recurso anacrônico de embargos infringentes (contra decisões não unânimes), além de instituir o recurso de agravo passível de impetração contra quaisquer decisões, inclusive na fase de investigação. Pode-se, com uma grande margem de segurança, afirmar que o inferno abaterá os tribunais. A proposta de alteração no Código de Processo Penal prevê também os casos de emprego de algemas, quando a questão é controvertida, sendo notórios os casos recentes de agressões a juízes e policiais. O projeto somente passa a permitir a decretação da prisão preventiva no caso de crime com pena superior a quatro anos, o que afasta, dentre outros, o crime organizado ou quadrilha ou bando; o homicídio tentado, ainda que qualificado; o infanticídio tentado; as lesões corporais dolosas, ainda que graves e mesmo no caso de lesão seguida de morte tentada; os crimes contra a honra consumados; os furtos consumados; os furtos qualificados tentados; os roubos tentados; as extorsões tentadas; as apropriações indébitas consumadas, inclusive previdenciárias tentadas; as fraudes consumadas e tentadas; a receptação consumada e tentada; o estupro tentado; o abandono de incapaz consumado; o peculato tentado; o emprego irregular de verbas públicas consumado; a corrupção passiva, advocacia administrativa e concussão tentados; a resistência, desobediência e desacatos consumados; a corrupção ativa tentada; o falso testemunho ou falsa perícia consumados; todos os crimes contra as finanças públicas consumados; nove dos dez crimes de fraudes em licitações consumados, e o remanescente na forma tentada; o contrabando ou descaminho consumado; os crimes ambientais consumados e tentados; os crimes de colarinho branco tentados e consumados; a lavagem de dinheiro tentada; e parte dos crimes da Lei de Drogas, inclusive o caso de fabricação, utilização, transporte, venda etc. tentados. Pelo mesmo projeto de lei, a decretação somente é possível se outras medidas não forem adequadas, como o pagamento de fiança; o monitoramento eletrônico; o recolhimento domiciliar em período integral; a suspensão de direitos; a proibição de frequentar determinados lugares; o afastamento do lar ou outro local de convivência da vítima; a proibição de ausentar-se do país; o comparecimento periódico em juízo; e a proibição de se aproximar ou manter contato com pessoa determinada. Um total de nove possibilidades antes da aplicação da prisão, o que praticamente a inviabiliza. Além disso, prevê o tempo máximo de prisão de 180 dias, prorrogável na sentença, prazo totalmente impossível de ser cumprido se considerarmos o próprio teor do projeto, com seus infindáveis recursos. Por sua vez, a prisão temporária passa a ser admitida apenas na hipótese de pena igual ou superior a 12 anos ou no caso de organização criminosa, restringindo-se praticamente aos delitos de homicídio qualificado consumado, latrocínio consumado e tráfico de drogas consumado. Sem mencionar o caso de ressarcimento cível e contrariamente às convenções internacionais da organização das nações unidas (ONU) contra o crime organizado transnacional e contra a corrupção, adotadas pelo Brasil, o projeto de lei apenas prevê a apreensão de bens e sua indisponibilidade, demonstrando "com precisão, os bens de origem ilícita", desconsiderando o caso de conversão ou mistura com bens lícitos, ou estes em proporção ao quantum da ilicitude. Esqueceu-se da apreensão de bens, ainda que não exista vínculo com a infração, em se reconhecendo o crime organizado, caso em que há inversão do ônus da prova da origem lícita. E prevê ainda que a indisponibilidade de bens cessaria após 120 dias e o sequestro em 60 dias se não intentada a ação penal, quando o projeto de alteração da Lei de Lavagem de Dinheiro já tinha afastado essa previsão, diante de sua impossibilidade prática. Com relação às interceptações telefônicas, telemáticas e ambientais, o projeto em tramitação estabelece sua limitação temporal de 180 dias, salvo no caso de crime permanente - o que significa, na prática, a limitação de investigações, havendo dúvidas quanto à sua constitucionalidade. O tráfico não é tipicamente um crime permanente e muitas vezes se revela com medidas adotadas por um ou mais anos, o que não podem ser tidos, por si só, por abusivos. Doutra parte, seis meses de interceptação podem se constituir arbitrários se não existir fundamento para tal. Longe de significar um limite a abusos, a previsão coloca em risco a busca da verdade e a repressão do crime organizado. O projeto ainda determina a impossibilidade de interceptações no caso de pena mínima de até um ano, salvo se conduta criminosa realizada apenas dessa forma ou no caso de quadrilha ou bando, o que afastaria, por exemplo, alguns crimes previstos na Lei de Drogas; sete dos dez crimes de fraudes em licitações; grande parte dos crimes ambientais; parte dos crimes de colarinho branco, inclusive a de fazer funcionar instituição financeira sem autorização do Banco Central; todos os crimes contra as finanças públicas; o emprego irregular de verbas públicas; a advocacia administrativa; a falsa perícia; as fraudes e os furtos e os crimes contra a honra etc. É notória a grave distorção das penas no direito brasileiro, de forma que qualquer alteração de tal naipe demandaria uma meticulosa revisão. O projeto, por outro lado, deixa intocável o foro por prerrogativa de função, conferido a várias autoridades que continuam a ser processadas perante os tribunais, quando se discute sobre a sua adequação perante a Constituição cidadã de 1988. Há ainda a ratificação de uma recente alteração que permite ao acusado ser ouvido no fim da instrução, antes da prolação da sentença. A experiência, contudo, demonstra que a mudança prejudicou enormemente a busca da verdade quando o Estado confere aos acusados a possibilidade de manifestação a partir do que se produziu em juízo - uma legitimação inconteste da manipulação dos fatos. Não se pode consagrar teorismos em prejuízo ao ideal de Justiça, que deve contemplar a variedade infinita dos fatos, a sociedade em que vivemos e a busca de soluções eficazes ao já desgastado processo penal brasileiro. Fausto Martin De Sanctis é juiz titular da 6ª Vara Federal Criminal especializada em crimes financeiros e em lavagem de dinheiro de São Paulo, Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações |
sábado, 12 de dezembro de 2009
Artigo: O Projeto de Lei 156 e o processo penal
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