sábado, 6 de dezembro de 2008

Artigo: Anencefalia e tortura

O Supremo Tribunal Federal encerrou a audiência pública de instrução da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental sobre anencefalia (ADPF 54). O pedido da ADPF é por reconhecer a atipicidade da interrupção da gestação em caso de anencefalia no feto, não caracterizando o procedimento médico de antecipação do parto como aborto tal como definido pelo Código Penal. As mulheres serão livres para decidir se querem ou não antecipar o parto em caso de anencefalia no feto. A audiência pública registrou uma diversidade de posicionamentos sobre a matéria e alguns consensos foram atingidos. O mais importante deles é o que atesta o caráter letal e irreversível da anencefalia. A tese da inviabilidade fetal foi sustentada por todas as sociedades médicas e científicas que compareçam à audiência.

Não há crianças ou adultos com anencefalia no mundo, por isso não há como confundir anencefalia com deficiência. Um feto com anencefalia não sobrevive ao parto e mais da metade deles não resiste à gravidez. Diferentemente do desafio ético imposto pela deficiência que é o de como promover a igualdade na diferença, o desafio ético da anencefalia é sobre como proteger as mulheres do luto imposto pelo diagnóstico da letalidade precoce do feto. As mulheres sofrem intensamente após receberem o diagnóstico de anencefalia no feto, mas sofrem ainda mais quando são obrigadas pelo Estado a manterem a gestação por mais cinco ou seis meses para simplesmente enterrarem o feto, instantes após o parto.

Obrigar uma mulher a manter durante nove meses a gravidez de um feto que provavelmente nascerá morto é um ato do Estado que desrespeita princípios constitucionais, tais como a dignidade, a intimidade e a liberdade. Muitas mulheres descrevem o dever da gestação em caso de anencefalia como um ato cruel do Estado contra elas. Toda mulher tem o direito a uma vida livre de violência. O artigo 1º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher define violência contra a mulher como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause a morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como privado”. Esse foi exatamente um dos aspectos éticos enfrentados na audiência pública e que será tema do julgamento da ADPF 54: proibir uma mulher de antecipar o parto por anencefalia do feto é um ato de violência perpetrado pelo Estado contra as mulheres.

O Estado impõe sofrimento físico e psicológico às mulheres, acrescentando nuances de tortura à tragédia do luto precoce pelo futuro filho. Não há como mudar o sofrimento do diagnóstico de anencefalia no feto, mas há como cuidar da dor dessas mulheres. Impor o dever da espera sem sentido é cruel. É violentar a dignidade, a integridade e desrespeitar a liberdade das mulheres. É cruel obrigar uma mulher a conviver com o luto em seu próprio corpo. Seu corpo é sua existência, mas também os limites onde o Estado deve reconhecer as fronteiras de sua soberania. Há uma esfera de intimidade e de privacidade que desafiam qualquer ímpeto do Estado em regular os corpos em matéria de direitos reprodutivos, mas que é especialmente desafiante no caso da anencefalia.

O dilema ético vivenciado por essas mulheres — elas vivem entre o berço e o caixão — foi continuamente lembrado na audiência pública. Essa não é uma metáfora que representa apenas o dilema da espera sem sentido, mas representa a dor inscrita nos corpos das mulheres. Essa mulher gesta um feto que não sobreviverá. Ela vive a espera de um enterro que sequer poderá acompanhar, impedida pelo resguardo pós-parto. É uma experiência diuturna de dor e de humilhação: trata-se de violência psicológica, nos termos da Lei Maria da Penha.

Mas o caráter persistente da violência psicológica pode ser definido como um ato de tortura do Estado contra as mulheres. Tortura, segundo o Decreto n. 40, 15 de fevereiro de 1991, que promulgou a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, são atos do Estado contra as pessoas para fins de confissão ou por discriminação. A Convenção somente ressalva situações de sofrimento e dor impostas pelo Estado, em casos de sanção legítima. Proibir uma mulher de antecipar o parto em caso de anencefalia no feto pode se configurar como uma sanção legítima às mulheres?

Não se qualifica como tortura os atos do Estado que provoquem dor ou sofrimento em conseqüência de sanções qualificadas como legítimas. Uma mulher descreve o dever da gestação de um feto com anencefalia como a imposição de uma dor, de uma sanção contra ela. Não há razões para punição ou sanção às mulheres. Não há razões legítimas para punição de uma gestante sem esperanças face à gravidez de um feto sem vida. Por isso, proibir uma mulher de antecipar o parto em caso de anencefalia no feto é impor-lhe sofrimento psicológico e físico, é, portanto, submetê-la à violência psicológica, é mantê-la sob tortura.

Uma mulher grávida de um feto com anencefalia está em sofrimento. Esta é uma dor de mulheres. São as mulheres que sofrem a violência psicológica pela proibição de antecipar o parto. Essa é uma violência psicológica imposta às mulheres por uma dor que somente elas podem sentir na profundidade de suas entranhas. O ministro relator Marco Aurélio Mello anunciou que a ADPF 54 deverá ser julgada em 2009. Até lá as mulheres esperam pelo fim da tortura.


Debora Diniz e Janaína Penalva, Pesquisadoras da Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

DINIZ, Debora; PENALVA, Janaína. Anencefalia e tortura. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 192, p. 19, nov. 2008.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog