terça-feira, 9 de setembro de 2008

Artigo: Qual justiça penal?

Veio em enfim à luz a tão esperada criação dos Juizados Especiais Penais com competência para julgamento de causas de menor potencial ofensivo. E foi mais além, criando também o mecanismo da suspensão condicional do processo, alterando no conjunto a corroída estrutura processual penal pátria.

Natural que no primeiro momento as preocupações dogmáticas superem as indagações estruturais, na medida em que inúmeros dispositivos guardam ineditismo no aparato instrumental e exigirão do estudioso acuidade na formação de uma interpretação sistêmica ao mesmo tempo que eficaz do ponto de vista operacional.

Mas não se pode abrir mão de uma reflexão, mínima que seja, quanto ao perfil que poderíamos chamar "metodogmático" desse juizado e sua significação para a Justiça Penal, que compreende não apenas a função própria das instituições incumbidas da administração da Justiça definidas nesse capítulo na Constituição Federal de 1988, mas também o próprio papel do Poder Legislativo (deixemos num primeiro momento o Executivo de lado) na construção do modelo penal.

A primeira grande questão que se pode colocar em face dessa nova estrutura é bastante simples de ser formulada, qual seja, a de se saber a qual modelo de Justiça Penal ela está atrelada. Uma segunda, não de menor projeção, é o que efetivamente esperamos desse novo aparelho justicial. No fundo, ambas são inter-relacionadas e complementares.

Veja-se que se o Juizado for encarado de uma mera forma utilitarista, com o singelo intuito de "agilizar" o funcionamento da máquina e desafogar os operadores da Justiça da alegada carga excessiva de trabalho, não há muito que se festejar. Teríamos então chegado à pós-modernidade processual, onde o processo, que é ao mesmo tempo garantia e instrumento, não é sequer necessário para a formação de títulos executivos judiciais penais (vide a proposta de pena sem processo contido no novo ordenamento). Oswald de Andrade não teria melhor exemplo de autofagia.

Mas se a visão meramente utilitarista não prevalecer – e não deve prevalecer – temos um longo de caminho de meditação a percorrer, que necessariamente passará pela primeira das inquietações apontadas, ou seja, qual modelo penal e processual penal construiremos com o que agora temos em mãos.

Observe-se que a nova legislação faz do processo não um mero instrumento do direito material, mas verdadeiramente um seu agente de transformação substancial. Parece ser difícil afastar a idéia de não ser a proposta anterior à ação penal, inserida no contexto transacional, um processo conhestro de descriminalização.

Passamos a ter um quadro interessante no campo penal. De um lado, os crimes denominados hediondos (e agora os mecanismos de repressão à criminalidade organizada), onde ofensas graves ao devido processo legal surgem com o pretexto de necessária eficiência na repressão. Por outro lado, nos delitos de menor potencial ofensivo dispensa-se o processo para a formação da legitimidade do Estado em executar a pena, também em nome da eficiência (aqui poder-se-ia parar e também indagar em quais situações o due process of law não atrapalha).

Mas, se na primeira situação não é o caso de pregar a idéia abolicionista do Direito Penal, no segundo momento é difícil deixar de concluir que estamos a um passo de exercitar via Ministério Público e Poder Judiciário uma função descriminalizante. Mas – e esta é outra das perguntas que deve ser feita –, se tão insignificante é o fato criminoso que para puni-lo não precisamos sequer do processo, se tão pequeno é o desvio social, a ponto de se dar ao autor do fato a possibilidade de abrir mão do devido processo legal que existe para sua proteção, será necessário dotar de relevância penal essa conduta?

Aqui nossa encruzilhada se apresenta. Se a resposta para a última pergunta for negativa, o Juizado se configura como uma estrutura completamente fora do modelo global da nossa Justiça Penal, porque, queiramos ou não, a tarefa descriminalizante é do Poder Legislativo e não do Judiciário (e quantas vezes esta argumentação não foi usada para sustentar condenações em crimes de sedução, adultério, lesões corporais entre marido e mulher, ínfimas lesões corporais culposas e, entre outras, a contravenção do jogo do bicho).

No entanto, se é dada alguma sustentação teórica ao novo modelo (não se trata de assento constitucional, isto obviamente o Juizado possui), com plena legitimidade sistêmica, a premissa será a de que o Juizado configura uma ponte entre aquilo que denominamos de modelo da "civil law" para o modelo da "cammon law" (e isto já é verificável até no emprego de expressões como "probation", "crossing over", "probable cause", etc.), aí sim ocupando um expressivo espaço.

Com certeza a construção dessa resposta será longa no tempo e colocará em relevância pontos não muitas vezes evidenciados no discurso acadêmico – mas sempre no discurso comum – que são a eficiência e o garantismo que devem permear a persecução penal. O que parece preocupante é que caminhamos para abandonar um modelo que nunca foi baseado nesse princípios, para outro, onde a eficiência parece ser exclusivamente sinônimo de rapidez e as garantias podem ser abandonadas como se não significassem fruto de conquistas históricas advindas com tanto aviltamento à condição da dignidade humana.

Fauzi Hassan Choukr

Mestre e doutorando em Processo Penal e professor de Direito Processual pela USP e USJT e Promotor de Justiça

CHOUKR, Fauzi Hassan. Qual justiça penal?. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.35, p. 15, nov. 1995.

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