sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Artigo: Princípio da Insignificância e Justiça Militar

1. Introdução

Muito se discute sobre a real função do Direito Penal nos dias de hoje. De um lado, uma ampla parte da sociedade clamando, cada vez mais, por uma incidência quase que desmedida deste ramo do Direito, talvez vendo nisto uma esperança para o refreamento dos altos índices de violência que assolam o país. Por outro, uma outra parcela (sobretudo os operadores do Direito) que entendem existir uma premente necessidade em se “poupar” o Direito Penal e só utilizá-lo em situações realmente justificáveis, haja vista o grande impacto por ele causado.

Este dilema só pode ser resolvido a partir do consenso de que o Direito Penal ao ser utilizado em situações extremas (ou seja, ultima ratio) atende aos preceitos de Política Criminal mais atuais, em que outras ferramentas podem e devem ser acionadas para o desafogamento do sistema penal e, principalmente, para a conquista de uma justiça verdadeira e não meramente simbólica.

Quando se defende uma grande incidência do Direito Penal, tem-se a falsa idéia de que os problemas serão resolvidos, até porque como preconizam os Abolicionistas[1], “... o direito penal, longe de funcionar na totalidade dos casos em que teria competência para agir, funciona em um ritmo extremamente reduzido.” [2] Isto é o reflexo do que acompanhamos atualmente, ou seja, cada vez mais condutas tidas como criminosas não estão recebendo o tratamento penal esperado, tendo em vista inúmeras dificuldades encontradas pelo sistema penal ou porque novos princípios doutrinários têm interferido na forma como os fatos são analisados.

Neste sentido, temos o Princípio da Insignificância (ou da Bagatela) que vem mudando muitos pensamentos acerca das condutas que estão sob o manto do Direito Penal.

2. Apontamentos sobre o Princípio da Insignificância

O Princípio da Insignificância, ao lado do Princípio da Adequação Social, é um “auxiliar interpretativo” para determinação do injusto, permitindo, pois, “excluir os danos de pouco importância”[3]. Significa, então, que nem todas as condutas descritas formalmente como crime assim devem ser consideradas, sendo “necessário (sic) uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal”.[4] Como verdadeiro corolário do Princípio da Intervenção Mínima, ele determina que o Direito Penal deva ser visto como ultima ratio, e sua aplicabilidade só deve proceder quando estritamente necessário, ou seja, quando houver efetiva lesão (e grave) ao bem jurídico tutelado. Lembrando que o Princípio da Intervenção Mínima assume dois aspectos: a fragmentariedade e a subsidiariedade. O primeiro aspecto fragmenta o Direito Penal de tal forma que ele só poderá atuar nos casos em que houver necessidade de tutelar os bens jurídicos mais relevantes e contra graves ofensas; o segundo significa que este ramo do direito só estará autorizado a atuar quando outros meios não solucionarem satisfatoriamente o problema.

Em 2004, o Supremo Tribunal Federal deu um sinal na direção de que, apesar de não previsto na legislação pátria (salvo no Código Penal Militar), este princípio tem uma notável importância no Direito Penal. Assim, ao analisar a decisão proferida no HC 84.412-0/SP, tendo como relator o Ministro Celso de Mello, observa-se:

“Princípio da Insignificância. Identificação dos vetores cuja presença legitima o reconhecimento desse postulado de política criminal. Conseqüente descaracterização da tipicidade penal em seu aspecto material. Delito de furto. Condenação imposta a jovem desempregado, com apenas 19 anos de idade. ‘Res Furtiva’ no valor de R$ 25,00 (equivalente a 9,61% do salário mínimo atualmente em vigor). Doutrina. Considerações em torno da jurisprudência do STF. Pedido deferido”.

Deste Acórdão, algumas informações merecem destaque: a. “postulado de Política Criminal”: na busca de alternativas para a melhoria da situação criminal que paira no país, alguns posicionamentos no sentido de desautorizar o Direito Penal a atuar em determinadas situações têm sido cada vez mais constantes; assim, o grande desafio para os estudiosos de Política Criminal e para as autoridades é encontrar saídas que contemplem um desafogamento do sistema penal (através da utilização de outros meios, tais como o Direito Administrativo, o Direito Civil, Trabalhista, etc.) sem que se incentive, com isto, práticas delituosas tidas como de menor efeito; b. “descaracterização da tipicidade penal, em seu aspecto material”: isto quer dizer que o fato deixa de ser típico, mas não em decorrência de uma análise da subsunção da conduta à letra da lei, mas porque se deve verificar que além da tipicidade formal, também se faz necessária a existência de uma análise a respeito da tipicidade material.

Uma das grandes discussões na Teoria do Delito reside na definição do que vem a ser crime. Brevemente, assinalamos que alguns doutrinadores, dentre eles o professor Luiz Flávio Gomes, entendem que o fato para ser punível deve atender aos requisitos de tipicidade formal e tipicidade material. A primeira, amplamente verificada na doutrina formalista clássica, consiste na análise: a) da conduta; b) da produção de um resultado naturalístico (para os crimes materiais); c) da existência de um nexo de causalidade entre a conduta e o resultado; d) da adequação da conduta à letra da lei (adequação típica).[5]

No entanto, como observado anteriormente, além desta análise formal, é necessária a verificação da tipicidade sob o aspecto material. A tipicidade material cuida de identificar a produção de um resultado jurídico relevante, ou seja, o desvalor do resultado é de um patamar tal que chega a perturbar a ordem social e para estes casos outros meios não trariam uma resposta satisfatória, devendo se valer, com isto, do Direito Penal (ultima ratio). Portanto, uma conduta para ser materialmente típica deve produzir um resultado além de jurídico, relevante. Assim, no HC 88.393/RJ, julgado em 03 de abril de 2.007, cujo relator foi o Ministro Cézar Peluzo, tem-se

“1. AÇÃO PENAL. Justa causa. Inexistência. Delito de furto. Subtração de garrafa de vinho estimada em vinte reais. Res furtiva de valor insignificante. Crime de bagatela. Aplicação do princípio da insignificância. Atipicidade reconhecida. Extinção do processo. HC concedido para esse fim. Precedentes. Verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, é de ser extinto o processo da ação penal, por atipicidade do comportamento e conseqüente inexistência de justa causa. 2. AÇÃO PENAL. Suspensão condicional do processo. Inadmissibilidade. Ação penal destituída de justa causa. Conduta atípica. Aplicação do princípio da insignificância. Trancamento da ação em habeas corpus. Não se cogita de suspensão condicional do processo, quando, à vista da atipicidade da conduta, a denúncia já devia ter sido rejeitada”.

É de se perceber que o resultado da conduta formalmente criminosa verificado no Acórdão acima não traz qualquer impacto na ordem social, haja vista o valor de R$ 20,00 não justificar a movimentação de todo o sistema de justiça[6] e, por outro lado, é desproporcional à conduta praticada com o resultado produzido o fato de o indivíduo ter incidido sobre si todo o peso do Direito Penal, cujo processo etiqueta e traumatiza a pessoa. Neste caso, um outro meio menos impactante resolveria (ou melhor, resolve) o problema, qual seja o Direito Civil em que o autor da conduta fica obrigado a ressarcir o prejuízo causado, não restando a impunidade diante da conduta praticada. Ademais, poupa-se o Direito Penal que quando aplicado de forma desmedida e para qualquer situação, acaba por ficar desacreditado o que pode fomentar condutas cada vez mais graves, como bem lembra Paulo de Souza Queiroz “A intervenção penal – traumática, cirúrgica e negativa – há de ficar reservada para repressão de fatos que assumam magnitude penal inconstratável; havendo-se, assim, de recusar curso aos chamados delitos de bagatela”.[7]

De tudo isto, para a conclusão de que uma conduta gerou um resultado sem relevância jurídico-penal, é necessário que se faça uma avaliação sob diversos aspectos, não havendo espaço para posturas radicais no sentido de legitimidade ou não deste postulado. Estes diversos aspectos são os “vetores” a que o Acórdão do HC 84.412-0/SP se refere e que se traduzem: a) na mínima ofensividade da conduta do agente, b) em nenhuma periculosidade social da ação, c) no reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) na inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Ainda que seja um Princípio que começa a ser considerado de muita relevância para o Direito penal, não é tranqüilo o entendimento de sua ampla aplicação no âmbito da Justiça Penal Militar, fato este que justifica um estudo mais pormenorizado sobre o assunto.

3. O Princípio da Insignificância na Justiça Penal Militar

Existem muitas pessoas que, inicialmente, desconhecem a existência e legitimidade deste Princípio e/ou não admitem sua incidência, há outras que entendem a possibilidade de uma parcial aplicação no âmbito da Justiça Militar e outros, no sentido de que se trata de Princípio Geral de Direito, cuja aplicabilidade deve ser admitida como qualquer outro princípio norteador.

Geralmente o argumento de sua recusa permeia pela defesa da Disciplina e da Hierarquia, bases das instituições militares, em que ao não se punir severamente aquele que deixou de observar os preceitos da caserna, estar-se-ia fomentando condutas indisciplinadas, o que se traduz na necessidade de preservação da “regularidade das instituições militares”.[8] O castigo deve sempre estar presente para que sirva de exemplo, independentemente do desvalor da conduta ou do resultado.

Há os que entendem existir uma aplicação parcial, pois para alguns tipos, cuja característica principal é a preservação da ordem militar, não deve ser admitida a mitigação da sanção, restando assim, a aplicação do referido Princípio somente àqueles casos que não haja prejuízo aos valores institucionais.

Por fim, existem os que identificam no Princípio da Insignificância um Princípio Geral de Direito e, portanto, de legítima incidência na seara Penal Militar, devendo o operador de direito verificar sua viabilidade caso a caso, haja vista que “... Os princípios gerais de Direito põem-se, dessarte, como as bases teóricas ou as razões lógicas do ordenamento jurídico, que deles recebe o seu sentido ético, a sua medida racional e a sua força vital ou histórica.” [9]

O Código Penal Militar já traz de maneira expressa em seu conteúdo este Princípio, o que gera a idéia da aceitação da incidência deste instituto. Assim, por exemplo, o art. 240 que trata do Furto Simples, faculta à autoridade judiciária a substituição da sanção penal pela sanção administrativa:

“Art. 240. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, até seis anos.Furto atenuado: § 1º Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou considerar a infração como disciplinar”. (grifo nosso)

Da mesma forma procedeu o legislador para os crimes de Dano (art. 260 - atenuado), Lesão Corporal Levíssima (art. 290, § 6º) e de Receptação Culposa (o art. 255). Ao admitir a adequação da conduta à letra da lei, constituindo, assim, a tipicidade formal, o juiz deveria, in tese, proceder a aplicação da sanção penal. No entanto, ao decidir que a conduta possa ser avaliada na esfera administrativa, pois será uma via capaz de solucionar satisfatoriamente o conflito, está a autoridade judiciária aceitando, exatamente, o aspecto subsidiário do Direito Penal, uma vez que este é desnecessário ao caso concreto.[10] Neste passo, outros artigos do Código Penal Militar trazem de maneira expressa a possibilidade de considerar a conduta ilícita como mera infração administrativa.[11] Portanto, o que se observa é uma autorização legal para que a autoridade judiciária proceda consoante a postura minimalista de afastar do âmbito de incidência do Direito Penal este tipo de conduta “insignificante”, não havendo usurpação do poder legislativo, pois não está o juiz legislando, mas interpretando a lei.

Porém, os julgados e a doutrina hodiernos não admitem que se pense que somente para estes casos expressos é que pode ser invocado o Princípio da Insignificância, ou seja, somente para estes crimes pode ser a conduta avaliada à luz do Direito Administrativo Disciplinar, muito menos oneroso e que tutela o interesse da Disciplina e da Hierarquia uma vez que não deixa impune a conduta. Por se tratar de um Princípio Geral de Direito, em que fica difícil sustentar sua inaplicabilidade em alguma esfera, parece que deve ele também ser observado na Justiça Militar, pois neste âmbito existe a perfeita possibilidade de outro meio menos impactante, qual seja a esfera administrativa, detentora do mesmo fim punitivo de uma conduta desvaliosa e cuja atuação é amplamente conhecida por sua rigidez e singularidade. Desta forma, terá o infrator incidido sobre si todo o peso de uma sanção administrativa o que pode gerar mais efeito sob o aspecto da prevenção geral negativa, sem que se desgaste ainda mais o Direito Penal, pois seguramente, não será o cárcere o destino do militar que pratica uma conduta de natureza “bagatelar”.

Para entender melhor: partindo-se do princípio de que o Direito Penal é considerado ultima ratio, sempre que for possível preservá-lo, assim se deve proceder. Então, diante de uma conduta bagatelar, têm-se duas alternativas: uma em que atuam o Direito Penal e o Administrativo Disciplinar concomitantemente (haja vista a independência das esferas) e outra em que somente atuará o Direito Administrativo Disciplinar. Qual a diferença? No primeiro caso, haverá incidência do Direito Penal na sua forma mais branda e que causa maior descrédito, pois dificilmente o autor da conduta ilícita permanecerá encarcerado, haja vista a possibilidade de algum tipo de benefício (e até mesmo a prescrição), o que gerará, para os demais, a idéia de que o “penal é fraco”, causando-lhe um desgaste dispensável, podendo levar à idéia da existência de impunidade. De outro modo, se somente atua a esfera administrativa, o autor sofrerá a mesma punição disciplinar que, em alguns casos, caminhará pela seara da exoneração do militar, mas se terá poupado o Direito Penal. Em outras palavras: restará para os demais o raciocínio de que o infrator sofreu uma punição extremamente severa e que poderia ter sido pior, caso a esfera penal fosse acionada. Esta é a idéia que deve prevalecer, ou seja, a de que o quadro do infrator poderia ser agravado se houvesse a incidência abrupta do Direito Penal. Portanto, “Essa forma de se reprimir o fato em nível disciplinar, primeiro, já alcançará o objetivo estabelecido pelo legislador, que é a responsabilização do autor do fato de tão pequena monta, pela própria Administração Militar”.[12]

De um lado tem-se a necessidade de observação de disposição constitucional no sentido de que a Disciplina e a Hierarquia são as bases das Instituições Militares[13] e de outro existe a indispensável atenção a um dos princípios reitores e mais notáveis do direito que é o Princípio da Proporcionalidade. Aliás, é este postulado o esteio do Princípio da Insignificância uma vez que por meio da aferição proporcional do fato e do impacto penal é que se conclui que para algumas situações não há um mínimo de equilíbrio nesta relação. Diante disto, o Min. Gilmar Mendes, no RHC 88.880/SC, reafirmou que “... há que se realizar um juízo de ponderação entre o dano causado pelo agente e a pena que lhe será imposta como conseqüência da intervenção penal do Estado. A análise da questão, tendo em vista o princípio da proporcionalidade, pode justificar, dessa forma, a ilegitimidade da intervenção estatal por meio do processo penal”.

Deste aparente conflito entre princípios, não é imprudente relembrar que o Princípio da Proporcionalidade - apesar de não estar explícito na Constituição Federal – mas que cuja existência está na própria estrutura normativa da Constituição a partir da interpretação de vários outros princípios norteadores de cunho constitucional e infraconstitucional, deve ser o guia para que o operador do Direito conclua qual o melhor caminho a seguir, sempre tendo em seu horizonte a busca pela justiça.[14]

Assim, o Princípio da Insignificância sendo uma causa supra legal de exclusão da tipicidade penal tem gerado diversas discussões sobre sua aplicabilidade no âmbito da Justiça Castrense, haja vista o juiz adquirir, in tese, poderes atinentes ao legislador. Ocorre que no Estado Constitucional e Democrático de Direito, o Poder Judiciário assume uma posição de guardião da justiça em que sempre que houver necessidade de se corrigir algum desarranjo legal, está ele autorizado a atuar, sempre tendo a Proporcionalidade como parâmetro nesta apreciação, não como feitor de uma lei, mas como intérprete dela.

4. O Princípio da Insignificância e o Tribunal de Justiça Militar de São Paulo

O Tribunal de Justiça de São Paulo tem reconhecido a incidência deste Princípio em alguns julgados, notadamente seguindo a disposição do CPM naquelas situações em que se verifica uma expressa autorização para se desclassificar a conduta de crime para infração disciplinar.

Assim, ao analisar a Apelação 5.517/06, os Juízes da Primeira Câmara decidiram por unanimidade que a conduta apreciada que gerou lesão corporal de natureza levíssima na vítima, fosse desclassificada para infração administrativa, haja vista a produção de um resultado jurídico insignificante para o Direito Penal, tanto que o Relator Juiz Coronel PM Fernando Pereira reproduziu parte da sentença do juízo ad quem em que: “(...) com fulcro na lei e até mesmo por razões de política criminal, deixa de aplicar a sanção penal, relegando a questão para a órbita administrativa”.

A partir deste exemplo, pode-se concluir que o este Tribunal de Justiça Militar entende ser aplicável o instituto da insignificância, restando saber se futuramente, quando assim for provocado, este tribunal aceitará o mesmo argumento para crimes mais controversos e até aqueles de natureza eminentemente militar.

5. O Princípio da Insignificância e o Superior Tribunal Militar

O Superior Tribunal Militar ponderou a incidência deste princípio em várias ocasiões, havendo julgados favoráveis e contrários. Interessante verificar que o STM caminhou no sentido de não observar a existência deste instituto somente para os casos em que o próprio CPM admite expressamente. Fê-lo em situações outras, significando a adoção da postura de que o Princípio da Insignificância é um Princípio Geral de Direito e que, portanto, deve ser observado no âmbito da Justiça Militar.

Foi o que aconteceu na decisão proferida em 04/05/2000, em Recurso Criminal acerca do crime de Peculato-Furto (art. 303, §2º, CPM). Para este crime não existe a expressa previsão da admissão da desclassificação para infração administrativa e esta conduta é tida como uma importante afronta aos valores éticos e morais inerentes às instituições militares o que, para muitos, não justificaria o afastamento da incidência do Direito Penal. Ocorre que houve um entendimento dos magistrados desta corte no sentido de que se tratava de um fato penalmente irrelevante e que não justificava a movimentação de todo o aparato penal. Assim:

“Ementa. Peculato-furto. Tentativa. Rejeição de denúncia. Princípio da Insignificância. I- Tentativa de subtração de uma lata de tinta de uma Belonave. II – Fato penalmente irrelevante pela insignificância do valor da res furtiva insuscetível de lesionar o interesse protegido, aliado à ausência de perigosidade social da conduta incriminada, não justificando o reconhecimento do crime nem a imposição da pena. III - Receber-se a Denúncia para, no final, verificar-se a impunidade da conduta do agente seria uma providência pouco recomendável até por infringir o princípio da economia processual. IV - Improvido o recurso do Parquet Militar, mantendo-se a rejeição da Exordial Acusatória. V - Decisão unânime.” [15]

É importante salientar o posicionamento deste Tribunal em relação às condutas que envolvem entorpecentes e armas de fogo. Para aquelas, não existe um julgado sequer que reconheça a atipicidade da conduta do militar (com fulcro no Princípio em estudo) que se encontrava com pequena quantidade de entorpecente no interior do quartel. Com relação aos danos decorrentes dos disparos acidentais de arma de fogo (sobretudo das lesões corporais), também não se reconhece a incidência desta causa supra-legal de exclusão de tipicidade por se considerar que o que se rechaça é o desvalor da conduta, uma vez que se deixou de observar algum procedimento de segurança afeto ao manuseio da arma de fogo.

6. O Princípio da Insignificância e o Superior Tribunal de Justiça

Em um cotejo desta Corte com a anteriormente verificada, mormente quanto ao Princípio ora estudado e especificamente com relação à conduta de porte de entorpecente no interior de quartel e de peculato, nota-se que para aquela o fundamento da afastabilidade da causa supra-legal de excludente de tipicidade é o mesmo; porém com relação ao peculato houve certa divergência.

Para o porte de entorpecente, caminha este Tribunal pela seara de que independe da quantidade de substância para configurar o tipo, uma vez se trata de crime de perigo, não sendo aceita, portanto, a idéia de que seja uma conduta insignificante para o Direito Penal. (HC 81.734/PR - Relator: Mininstro Sydney Sanches, 26/03/2002)

De outra forma, não houve o mesmo entendimento no que concerne ao fundamento da negação do pedido de reconhecimento do aludido Princípio com relação ao crime de peculato. No RESP 69.6985, de 07/04/2005, de Relatoria do Min. Hamilton Carvalhido, uma justificativa para se afastar a incidência do Princípio da Insignificância foi o fato de que esta conduta ataca “o interesse do Estado, a moralidade, a probidade administrativa, sendo de menor relevância o valor do bem desviado”. Observe que no acórdão proferido pelo STM, estudado acima, o fundamento da aceitação foi justamente o valor da res furtiva, o que não aconteceu aqui, ou seja, o STJ permeou pela necessidade de se avaliar a lesão verificada não sob o ponto de vista patrimonial, mas ligada aos valores ético-morais inerentes à Administração Pública.

7. O Princípio da Insignificância e o Supremo Tribunal Federal

O STF já acenou para a aceitação deste Princípio da Insignificância em situações que não aquelas expressas no Código Penal Militar. Assim o fez no recente HC 92.961/SP (11/12/2007), cujo relator foi o Ministro Eros Grau, decidindo-se pela admissão da incidência do Princípio da Insignificância no caso em que um militar do Exército fora flagrado, dentro do quartel, fumando um cigarro de maconha e tinha consigo outros três. Os fundamentos da aplicação deste Princípio permearam no sentido de que o militar atendia aos quesitos de natureza objetiva autorizadores da aplicação deste instituto (i. a mínima ofensividade da conduta, ii. a ausência de periculosidade social da ação, iii. o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e iv. a inexpressividade da lesão jurídica), bem como em virtude da dignidade da pessoa humana. Assim, no caso concreto, o eminente Ministro fez um cotejo com a atual legislação de entorpecentes (Lei nº 11.343/2006) no sentido de que esta trata o usuário de forma diferenciada em relação ao traficante e é merecedor de tratamento e não de pena; entendeu não haver justificativas para tratar de outra forma o militar que não chegou a lesar os valores da caserna, mas que deve ser recuperado do vício das drogas e, por fim, que a citada lei é mais benéfica e que o a dignidade da pessoa humana está acima dos valores militares in tese afrontados (Disciplina e Hierarquia). Norteou-se este Tribunal pela negação de que somente a adequação (subsunção) da conduta à letra da lei seria suficiente para a caracterização do crime, ou seja, “a tipicidade penal não pode ser compreendida como mera adequação do fato concreto à norma abstrata”.

Uma outra decisão interessante e que chama a atenção foi a proferida por ocasião do HC 92.910/RJ, de relatoria do Ministro Celso de Mello (20/11/2007), em que foi deferido habeas corpus em favor de um Cabo da Marinha que teria cometido o crime de abandono de posto (art. 195, CPM) ao se afastar por algumas horas de seu posto de serviço (vigiava uma bomba de gasolina trancada com cadeado) para socorrer seu filho que fora internado, em caráter de urgência, para retirada de um rim. Em uma primeira leitura, identifica-se uma excludente de ilicitude, qual seja o estado de necessidade; porém, além desta fundamentação, também o Ministro da Suprema Corte brasileira admitiu a existência do Princípio da Insignificância “ante o reduzido grau de reprovabilidade da conduta e considerando seus motivos determinantes”. Interessante observar que além de não existir expressa previsão para a aplicação do instituto bagatelar a este tipo penal, também se trata de um crime propriamente militar, ou seja, que só tem previsão no Código Penal Militar, devendo ser considerada tal decisão como mais uma novidade para a justiça castrense, pois até então não havia sido aplicado este Princípio em crimes desta natureza.

Nota-se uma mudança de postura judicial, em que a Corte Suprema já reconhece a incidência do Princípio em estudo para situações que até então não se aceitava, em um claro sinal de que a visão sobre os acontecimentos mudam conforme o dinamismo da sociedade.

8. Conclusão

A partir das análises aqui realizadas, situamo-nos em que sentido alguns tribunais têm se posicionado com relação ao tema. Naturalmente que a pretensão não foi a de afirmar através dos acórdãos mencionados que se trata da postura de todo o tribunal, mas sim de mostrar os fundamentos da aceitação ou não do Princípio em estudo. E serão exatamente estes fundamentos que fortalecerão uma ou outra tese quando se estiver diante de uma circunstância desta natureza.

Verifica-se o quão complexo é o assunto e não existe um padrão de juízo. Cabe sim, mais uma vez, realizar uma averiguação no caso concreto a partir dos conceitos atinentes e concluir pela viabilidade ou não da incidência desta causa supra-legal de exclusão de tipicidade.

Restou claro que o Código Penal Militar, diploma do final da década de 60, demonstrou-se bastante avançado ao prever a possibilidade da aplicação do Princípio da Insignificância em algumas situações já naquela época, possibilidade esta que somente nos dias de hoje tem ganhado considerável espaço na discussão acadêmica, doutrinária e jurisprudencial relativamente aos crimes comuns. Por outro lado, o âmbito de aplicação deste instituto na justiça castrense parece estar limitado, o que não se coaduna com os fundamentos de sua aceitação, quais sejam os Princípios Gerais de Direito.

Desta forma, o Direito Penal é um todo, tendo suas divisões apenas um aspecto “didático” voltado para a organização e otimização da justiça. Aquilo que é aceitável em um ramo do Direito Penal, não pode ser simplesmente ignorado, refutado em outro, sob pena de se ferir diversos princípios reitores e a própria razão de ser do Direito.

Não é demais afirmar que os operadores do Direito Penal Militar não devem se isolar em entendimentos de repulsa deste instituto a partir de argumentos sem uma sólida base diante dos fundamentos que asseguram sua existência. A sociedade é dinâmica. Os fatos são dinâmicos e o entendimento sobre eles também se alteram. Neste passo, o Direito também deve acompanhar este dinamismo e se “modernizar” conforme as necessidades. Se os tribunais superiores têm entendido - a partir de razões, sobretudo, de política criminal – que o Princípio da Insignificância tem aplicabilidade em nosso ordenamento jurídico, por quais motivos não se deveria reavaliar o juízo de admissibilidade no Direito Penal Militar afora os casos expressamente previstos na lei? Pensar diferente disto seria caminhar na direção contrária ao próprio Direito.

Há que se entender que a mínima aplicação do Direito Penal visa justamente a sua efetiva aplicação, ou seja, ao se reservar este ramo do Direito para questões mais sérias (para as quais outro ramo não foi o bastante), tem se promovido a sua preservação e, consequentemente, garantido sua credibilidade perante a sociedade, não devendo ser diferente no âmbito da Justiça Militar, sendo, aqui, oportuna a lição de Ronaldo João Roth “(....) esse procedimento indicado trará um aperfeiçoamento ao serviço de Polícia Judiciária Militar e levará a autoridade militar a não deixar de aplicar o Regulamento Disciplinar, quando for o caso, deixando a aplicação do Direito Penal Militar somente quando as medidas previstas no Diploma Administrativo Disciplinar não forem suficientes para reprimir o fato com proporcionalidade da sanção adequada”.[16]

Se o receio da não aplicabilidade deste instituto é que se deixaria de tutelar a Disciplina e a Hierarquia, cumpre ressaltar que os valores militares não serão afrontados, pois não se fala em impunidade. Pelo contrário, nas instituições militares há uma ferramenta bastante eficaz que é o Regulamento Disciplinar capaz de dar cabo a qualquer conduta que venha a afrontar os princípios castrenses, culminando na demissão ou na expulsão daquele que por ventura destoar do que se espera de um verdadeiro militar. Neste sentido, o Ministro Eros Grau justificou a aplicação do Princípio da Insignificância no HC 92.961/SP (estudado acima) com o argumento de que “... o paciente foi punido com a exclusão das fileiras do Exército, o que já é suficiente para que restem preservadas a disciplina e a hierarquia militares, o que se há de ter como indispensável ao regular funcionamento de qualquer instituição militar”.

Conclusivamente, o que se buscou neste trabalho foi uma reflexão sobre o tema a partir do apresentado, escrito e decidido hodiernamente no mundo jurídico pelos mais ilustres operadores do direito, fato este que desautoriza o distanciamento e o isolamento do Direito Penal Militar relativamente aos demais ramos, em uma espécie de mundo próprio.

BIBLIOGRAFIA

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[1] O Movimento Abolicionista tem como expoente maior o professor holandês Louk Hulsman.

[2] Cf. Louk Hulsman e Jacqueline Bernat de Celis, Penas Perdidas, p. 65.

[3] Cf.: Francisco de Assis Toledo, Princípios básicos de direito penal, p. 133.

[4] Cf. Cezar Roberto Bitencourt e Francisco Muñoz Conde, Teoria Geral do Delito, p.163.

[5] Cf. Luiz Flávio Gomes, Princípio da Ofensividade no Direito Penal, p. 60. O autor destaca que “(...) Nisso se esgotava o juízo de tipicidade. Mas esta construção é incompleta e exageradamente formalista. Só se preocupa com a subsunção formal da conduta à letra da lei (...)”.

[6] “(...) cada hora de labor da Polícia, do Ministério Público, Tribunal e das Autoridades Penitenciárias afastada dos domínios marginais do direito criminal é uma hora retirada à prevenção da criminalidade séria”. Cf. Paulo de Souza Queiroz, Do Caráter Subsidiário do Direito Pena. p. 100.

[7] Idem.

[8] Cf.: Cícero Coimbra Neves e Marcelo Streifinger, Apontamentos de Direito Penal Militar, p. 43.

[9] Cf. Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, p. 319.

[10] “A autoridade militar, valorando que o fato constitui-se de um delito de bagatela ou insignificante, considerando os fatores já comentados, e antevendo que aquele mesmo fato analisado poderá ser objeto de desclassificação pelo juiz, reconhecendo-o como infração disciplinar, por ser o mesmo uma ninharia ou não representar qualquer lesividade, poderá, ao invés de instaurar o IPM, adotar de pronto o procedimento administrativo mais adequado e chegar à repressão do ocorrido, se for o caso, em sede disciplinar”. Cf.: Ronaldo João Roth, op. cit., p. 117.

[11] Ao se fazer um estudo dos tipos penais previstos no Código Penal Militar, pode ser verificado que outros artigos permitem a aplicação do mesmo dispositivo dos §1º e 2º do art. 240, ou seja, existem algumas condutas que o legislador permite a mitigação da pena, chegando ao ponto de a infração poder ser desclassificada de penal para administrativa. É o caso dos artigos 240, §4º (furto qualificado por ser praticado durante a noite) e §5º (coisa furtada pertencente à Fazenda Pública); 248 e 249 (apropriação indébita simples e de coisa havida acidentalmente); 251 (estelionato) e 252 (abuso de pessoa); 254 (receptação); 260 (dano atenuado); 313 (cheque sem fundo). Teria também para estas situações o legislador autorizado a aplicação do Princípio da Insignificância? Parece não existir dúvida no sentido afirmativo.

[12] Cf.: Ronaldo João Roth, op. cit., p. 117.

[13] Cf.: Art. 42, CF: “Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina...”

[14] Assim, são princípios que tem ligação com o da Proporcionalidade: a) Princípio da Reserva Legal, art. 5º II, b) Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional, art. 5º, XXXV, c) Princípio da Cidadania, art. 1º, II, d) Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, art 1º, III, dentre outros.

[15] Cf.:AcórdãoNum: 2000.01.006701-4 UF: AM, Relator: José Sampaio Maia, in www.stm.gov.br, acesso em 22/09/2007.

[16] Cf.: Ronaldo João Roth, op. cit., p. 118.

Valdinei Arcanjo da Silva, 2º Tenente da Polícia Militar/SP, 2º Ten PM da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Bacharel em Direito pela Universidade Bandeirante de São Paulo, Pós Graduado em Ciências Criminais pelo Instituto de Ensino "Luiz Flávio Gomes"

SILVA, Valdinei Arcanjo da. Princípio da Insignificância e Justiça Militar. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 25.09.2008.

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