terça-feira, 9 de setembro de 2008

Artigo: Os questionamentos provocados pela Lei nº 9.099/95

A Lei nº 9.099/95 é capaz de despertar reações contrapostas, de extrema radicalidade. De um lado, os que entendem que, em face do novo diploma legal, os problemas da Justiça Criminal estarão daqui por diante resolvidos: a lerdeza da máquina judiciária será substituída por uma Justiça ágil, dinâmica, de pronto equacionamento. De outro, posicionam-se os que não convivem bem com nenhum tipo de mudança: mudar significa desarticular o que está em funcionamento (bem ou mal, pouco importa) e isso é um convite à desordem, quando não representa uma perda de poder.

Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. A lógica do "tudo ou nada", não se ajusta, com facilidade, ao pensamento jurídico que requer sempre uma certa maleabilidade na medida em que o seu objeto de investigação é afinal o ser humano tão carregado de surpresas, indefinições, contradições e incertezas. Daí porque mais do que analisar os termos da Lei nº 9.099/95, interessa clarificar e, tanto quanto possível, internalizar, as perspectivas que o legislador levou em conta ao formulá-la. Sob essa ótica, parece inafastável ter ele considerado como ponto de partida uma das manifestações criminológicas próprias da sociedade moderna, ou seja, a pequena criminalidade. Não se cuida, no caso em foco, da criminalidade grave, da criminalidade violenta, da criminalidade na qual os "agentes recusam qualquer colaboração processual, qualquer crença nos valores da ordenação democrática da sociedade e qualquer predisposição para aceitar as sanções" (Costa Andrade, "Consenso e Oportunidade", in "O Novo Código de Processo Penal", p. 334, Coimbra, 1988).

A Lei nº 9.099/95 não objetiva, em verdade, imiscuir-se no espaço de conflito mas, tão-somente, alargar o espaço de consenso em que os agentes colaboram na procura da verdade e aceitam ' "os caminhos que lhe são propostos como os mais adequados ao seu reencontro com os valores e os modelos de ação do Estado de Direito". A criação dos Juizados Especiais para crimes de pequeno potencial ofensivo, a suspensão condicional do processo e a exigência de representação nos crimes de lesões corporais culposas ou de lesões corporais dolosas de natureza leve são propostas legais que trilham indiscutivelmente nessa direção. O legislador poderia, sem dúvida, ter escolhido uma linha de atuação diversa: ao invés de expandir o espaço de consenso, poderia ter optado – e a meu ver, com acerto – por uma descriminalização, ou até mesmo, por uma despenalização mais abrangente. Ma preferiu seguir outro caminho e, nesse, a transação constitui, sem sombra de dúvida, a peça-chave.

É evidente que se consagra, nessa situação, a autonomia da vontade e, portanto, a possibilidade de renúncia a direitos e garantias constitucionais imanentes ao Estado Democrático de Direito. Mas até onde essa autonomia pessoal guarda pertinência? É ela ilimitada? Até que ponto direitos e garantias constitucionais têm uma dimensão subjetiva (são faculdades ou poderes à disposição de seus titulares) ou assumem uma dimensão objetiva (significam os elementos fundamentadores da sociedade)? Até onde, como diz Amelung, "poderia o indivíduo ser indiscriminadamente autorizado a modificar os fundamentos da organização de toda a sociedade, inclusive do Estado?" (Costa Andrade, ob. cit., p. 333).

Confesso estar povoado de dúvidas (o que, de resto, graças ao bom Deus, não constitui novidade) e algumas delas se mostram, a meus olhos, de extrema relevância e gravidade. Como entender que se possa, mediante um acordo, aplicar, por força do art. 76 da Lei nº 9.099/95, pena restritiva de direitos ou multa, conversíveis em pena privativa de liberdade, sem que o acusado responda ao devido processo legal? Como falar em conciliação, na suspensão condicional do processo, se a aceitação do acusado à proposta do Ministério Público envolve o acolhimento de um pacote fechado de condições? Que acordo é este em que o acusado não pode discutir cada uma das condições que vão, durante alguns anos, reger sua vida: ou aceita todas ou recusa a conciliação? Além disso, não tem aspectos tão estigmatizantes quanto as cerimônias degradantes do processo, a execução das regras obrigatórias de conduta da suspensão condicional do processo? Não há, nesse caso, mera troca de etiquetas? Como entender que a exigência da representação não tem incidência nos processos pendentes? Onde situar o princípio constitucional da igualdade? Essas e outras considerações demandam, sem dúvida, um espaço maior para exame.

Desde logo, no entanto, é mister que se extraiam do contexto legal algumas conseqüências. Antes de tudo, torna-se imprescindível desmitizar a Lei nº 9.099/95. É falacioso o argumento de que a Justiça Penal, com ela, está salva. O diploma legal não cuida da criminalidade que tensiona o cidadão e a coletividade. Trata apenas da pequena criminalidade. É preciso que não se vendam ilusões. Depois, é necessário que se afirme que a redução de processo será apenas momentânea: haverá, sem dúvida, uma redução a que se seguirá um novo fluxo.

Por fim, é imprescindível que se ponha termo ao açodamento na criação dos Juizados Especiais de pequeno potencial ofensivo. A matéria deve ser cuidada com cautela, sem precipitações, nem preocupações personalistas. As regras penais mais favoráveis, inseridas na Lei nº 9.099/95, têm aplicação imediata, por força do inciso XL do art. 5º da Constituição Federal. O mais não demanda urgência-urgentíssima, mas debate, discussão, questionamento entre os operadores do Direito.

Alberto Silva Franco
Desembargador aposentado

FRANCO, Alberto Silva. Os questionamentos provocados pela Lei Nº9099/95. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.35, p. 09, nov. 1995.

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