quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Artigo: O estilista desavisado

O legislador penal brasileiro perdeu, há alguns anos, por razões, que demandam, por certo, um exame psicológico mais aprofundado, sua capacidade criativa. Da prancheta desse estilista, não mais surgiram desenhos originais nem traçados de linhas modernas, nem esboços atraentes. A imaginação esgotou-se. Embora a produção continue num ritmo febril, a qualidade do trabalho definhou a olhos vistos. Por exaustão, por incompetência ou, até mesmo por propósitos políticos, o estilista jogou fora, em vários momentos, o papel e o lápis, e ao invés de pontos, linhas, ângulos ou traços que dão forma a um novo desenho, preferiu privilegiar a aposição de sua "griffe" em modelos velhos. O método da etiquetagem tomou conta do estilista. A modernidade, a criação, a originalidade não despertaram mais seu interesse: um rótulo alfinetado numa roupa velha mostrou-se suficiente. A Lei dos Crimes Hediondos é um exemplo desse tipo de modelagem. Alguns crimes do Código Penal e um tipo inserido em lei penal especial ganharam a assinatura de "hediondos" e o estilista não definiu o conteúdo da nova marca, nem mudou uma linha do traçado primitivo. Só exigiu um exorbitante aumento de preço. Na passarela legal, para aquietar uma multidão ansiosa e insegura, homens e mulheres desfilam, de modo desengonçado, sem "aplomb", até mesmo com um toque de vergonha, modelos velhos, sem graça, sem viço, sem brilho.

Nas raras vezes em que o estilista apanhou a prancheta para lançar um desenho diferente, seu vôo criativo revelou-se de limitado curso, tocando as raias do ridículo. Pouco tempo faz, ideou alguns "modelitos" especiais. Na Lei 8.930/94, imaginou um homicídio simples praticado "em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente"... Na Lei 8.974/95, criou um "modelito" sem pé, nem cabeça: uma denominação lançada no ar, sem nenhum traço visível capaz de concretizá-la. Qualquer um, em seu laboratório de fundo de quintal, poderia, em princípio, manipular células germinais humanas ou intervir em material genético humano "in vivo"... E a pena cominada deveria ser seriamente exacerbada se, em função dessa intervenção genética, decorresse (não se sabe pra quem) "incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias", "perda, inutilização, de membro, sentido ou função", "deformidade permanente", "aceleração de parto", "aborto", etc... Na recentíssima lei 9.034/95, articulou um "modelito" incomum: o "crime organizado", "Comme in faut" e é do agrado de quem exerce essa atividade, foi capaz de formular um tipo que não define, nem explica, a criminalidade organizada.

A assistência, que permanece aglomerada em torno da passarela, continua inquieta e, a cada dia, por força do bombardeamento dos meios de comunicação social, sente-se mais insegura. Por isso, exige novos modelos que a tranqüilizem. E o nosso estilista desavisado já noticia o aparecimento de um exclusivo "modelito" da sua inefável coleção "More oƒ the Same": os "crimes de especial gravidade", que utilizando o rotineiro e ultrapassado processo de etiquetagem, torna a ocupar o espaço, no início da passarela, para um novo desfile que é uma repetição vulgar de um outro que já houve e foi um retumbante insucesso.

Alberto Silva Franco

Franco, Alberto Silva. O estilista desavisado. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.33, p. 03, set. 1995.

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