sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Artigo: O crime de embriaguez ao volante e o "bafômetro": algumas observações

Recentemente foi editada a Lei nº 11.705/08, que, em seu art. 5º, VIII, alterou a redação do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), que tipifica o crime de embriaguez ao volante.

A nova redação dada a referido artigo excluiu do tipo penal a circunstância “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem” eincluiu a circunstância “estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas”, inserido, ainda, o parágrafo único, que determina que “o Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo”.

A regulamentar a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeitos de crime de trânsito, o Poder Executivo Federal fez publicar o Decreto nº 6.488/08, que, em seu art. 2º, determina que: “Para os fins criminais de que trata o art. 306 da Lei no 9.503, de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro, a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia é a seguinte: I – exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou II – teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro): concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões.”

Pois bem, diante de tal novidade legislativa, é imperioso analisar se o popularmente conhecido “bafômetro” (etilômetro) é meio penalmente idôneo a comprovar o crime de embriaguez ao volante e a resposta, s.m.j., deve ser negativa.

Em um Estado Democrático de Direito, é elementar que o Direito Penal seja limitado, já que o ius puniendi estatal não é um poder absoluto, mas, sim, um poder submetido a controles e limites(1), e, dentre tais limites, um dos mais antigos e famosos é o princípio da legalidade penal, que, entre nós, tem natureza constitucional (art. 5º, XXXIX, da CF).

O princípio da legalidade penal, em última instância, visa a impedir a insegurança jurídica (ius incertum) e a arbitrariedade estatal, objetivando e determinando clareza, certeza e limites precisos à intervenção punitiva do Estado(2), constituindo-se, pois, como “a chave mestra de qualquer sistema penal que se pretenda racional e justo”(3).

Por sua vez, tal princípio constitucional possui diversas funções, merecendo destaque o mandato de taxatividade (lex certe) sobre o legislador, que, assim, deve descrever o tipo penal incriminador de forma clara, inequívoca e exaustiva para que todos — cidadãos e juízes — possam conhecer com a certeza e segurança necessárias o conteúdo da proibição e seus precisos contornos(4).

Inegável que em relação à nova redação dada ao crime de embriaguez ao volante, tipificado pelo art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, o legislador brasileiro obedeceu ao mandato constitucional da lex certe, descrevendo com clareza e rigor o pressuposto da incriminação penal, apresentando com segurança seus elementos constitutivos, inclusive fazendo constar explicitamente do caput do artigo o elemento descritivo “estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas”.

Entretanto, não se pode dizer o mesmo em relação à regulamentação da equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeitos da configuração do referido crime ao estipular, no art. 2º, II, do Decreto nº 6.488/08, que o “bafômetro” (etilômetro) é equivalente ao exame de sangue, estando, pois, tal método apto a comprovar a embriaguez e, conseqüentemente, a comprovar a materialização do tipo penal.

Ora, o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro é claro e explícito ao determinar a concentração superior de 06 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, e, assim, o crime só se configurará com a comprovação de tal quantidade de álcool no sangue do condutor do veículo, o que, por sua vez, somente poderá ser averiguado — o que me parece bastante óbvio —, através do competente exame de sangue, aliás, como corretamente observado pelo inc. I, do art. 2º do Decreto nº 6.488/08.

Já o “bafômetro” (etilômetro) não é o meio correto e eficaz para comprovar e aquilatar a quantidade de álcool no sangue, pois, nos termos da própria regulamentação, o etilômetro utiliza meio e medida diversos ao analisar a quantidade de álcool por litro de ar expelido dos pulmões do condutor.

Tratam-se, portanto, de coisas absolutamente diversas, pois álcool no sangue é uma coisa e álcool no ar expelido dos pulmões é outra.

Assim, se o tipo penal do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro é taxativo ao mencionar que o crime se configura com determinada quantidade de álcool no sangue do condutor do veículo e que tal prova, por questões óbvias, somente pode ser feita através de exame do sangue daquele, impossível a responsabilização penal através do teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), mediante o exame do ar expelido dos pulmões, já que, mediante a escrupulosa observação do princípio constitucional da legalidade, tal crime não existe.

Dessa forma, a adoção do “bafômetro” (etilômetro) como meio de prova para a configuração do crime de embriaguez ao volante, como pretende ver reconhecido e legitimado o Decreto nº 6.488/08, é clara e patente afronta ao art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, e que, portanto, deve ser energicamente rechaçado pelo Poder Judiciário, pois “las ne­gaciones del principio de legalidad pueden acabar transformando un régimen de Derecho en un sistema de ‘terror penal’. Porque cuando se habla de terror penal no debe pen­sarse en que se manifiesta solo a través de guillotinas y pelotones de ejecución, porque terror es una leve condena pronunciada por el juez cuando no se señalan límites precisos a su arbítrio”(5).

Notas

(1) Cfr. GARCIA PABLOS, Antônio. Derecho Penal – Introducción. Madrid: Universidad Complutense, 1995.

(2) Cfr.GARCIA PABLOS, Antônio. Op. cit., p. 233.

(3) Cfr.BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 3ª ed., Rio de Janeiro: Revan, p. 65.

(4) Cfr.GARCIA PABLOS, Antônio. Op. cit., p. 248.

(5) In COBO DEL ROSAL, Manuel; VIVES ANTÓN, Tomás. Derecho Penal – Parte General. 5ª ed., Valencia: Tirant lo Blanch, p. 74.

Vinicius de Toledo Piza Peluso, Juiz de Direito/SP; professor de Direito Penal da Universidade Católica de Santos e da Escola Paulista da Magistratura; membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP)


PELUSO, Vinicius de Toledo Piza. O crime de embriaguez ao volante e o “bafômetro”: algumas observações. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 189, p. 16, ago. 2008.

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