terça-feira, 16 de setembro de 2008

Artigo: As inconstitucionalidades da lei seca

Duas importantes modificações feitas no Código de Trânsito Brasileiro pela Lei nº 11.705, de 19 de junho último — a que acrescentou um § 3º ao art. 277 e a que alterou o caput do art. 306 — são manifestamente inconstitucionais.

Dispõe o art. 277, caput, do Código de Trânsito, não modificado pela nova lei, que “Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidentes de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob a suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo Contran, permitam certificar seu estado”.

Tais “aparelhos” são os chamados “bafômetros”, que, no caso de recusa do condutor em usá-los, são substituídos pelo exame de sangue.

Já o § 3º acrescentado a esse artigo 277 pela Lei Seca preceitua que “Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput desde artigo”.

As “penalidades e medidas administrativas” previstas no art. 165 são: infração gravíssima (sete pontos), multa de R$ 955,00, suspensão do direito de dirigir por um ano, retenção do veículo e recolhimento do documento de habilitação. Ou seja, quem se recusar a usar o “bafômetro” ou fazer exame de sangue sofrerá essas punições administrativas.

Sucede, porém, que o Brasil é signatário de dois tratados internacionais — o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque (PIDCP) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), também conhecida por Pacto de San José da Costa Rica — cujos direitos e garantias individuais estão no mesmo patamar daqueles constantes de nossa Constituição, por força do art. 5º, § 2º, desta.

E ambos tratados estabelecem, entre as “garantias mínimas” de toda pessoa acusada de um delito, o direito de “não ser obrigada a depor contra si mesma, nem confessar-se culpada” (PIDCP, art. 14,3,g e CADH, art. 8º, 2,g).

Trata-se do direito do acusado de não se auto-incriminar, de não fazer prova contra si mesmo, inclusive não se submetendo ao bafômetro ou a exame de sangue.

Em decorrência desse direito, erigido em garantia de nível constitucional, o novo § 3º de art. 277 do Código de Trânsito Brasileiro é inconstitucional, pois ninguém pode ser punido, ainda que apenas administrativamente, por ter exercido um direito. Em conseqüência, a recusa em se submeter ao bafômetro ou exame de sangue também não configurará crime de desobediência (CP, art. 330), por não haver dever jurídico de obedecer.

Inconstitucional é igualmente o art. 306 do Código de Trânsito, que, alterado pela Lei Seca, dispõe ser crime, apenado com 6 meses a 3 anos de detenção e multa, além da suspensão ou proibição de dirigir, o ato de “Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.

Tal artigo fere o princípio da ofensividade, princípio este que só permite penalizar criminalmente a conduta de quem, ao menos, exponha a incolumidade de outra pessoa a um dano potencial.

Com efeito, não se admite em Direito Penal a punição de alguém por um perigo abstrato, presumido, hipotético, exigindo-se seja o perigo concreto, real e efetivo.

Exatamente como dispunha o antigo art. 306 do Código de Trânsito que apenas considerava crime a conduta do motorista que, estando com 0,6 gramas de álcool por litro de sangue ou mais, expusesse “a dano potencial a incolumidade de outrem”, como, por exemplo, dirigindo em ziguezague ou na contramão.

Em resumo: nenhum motorista pode ser punido administrativa ou criminalmente por se recusar a fazer o teste do “bafômetro” ou exame de sangue, nem punido criminalmente por dirigir alcoolizado sem, entretanto, colocar em risco de perigo concreto a incolumidade alheia.

Por força do direito de não se auto-incriminar também não será obrigado a colaborar com eventual exame médico, v.g., fazendo posições corporais para mostrar equilíbrio.

Restará, portanto, à autoridade policial valer-se de “outras provas em direito permitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor”, como prevê o § 2º do art. 277 do Código de Trânsito.

Tais provas — lícitas, ao contrário dos ilícitos bafômetro e exame de sangue não voluntários — consistirão, principalmente, nas declarações de testemunhas e em parecer médico. Essas provas poderão dizer se o motorista estava ou não alcoolizado, mas não em que grau, frustrando os objetivos da nova lei de punir administrativamente quem estivesse com 2 decigramas ou mais, de álcool por litro de sangue e, penalmente, aquele que estivesse com 6 decigramas ou mais.

Melhor seria que o legislador houvesse optado por punir apenas administrativamente, embora com severidade, o motorista que, embriagado de acordo com o relato de testemunhas e parecer médico ou por resultado de teste de bafômetro ou exame de sangue voluntários, expusesse a incolumidade de outrem a perigo real, concreto e efetivo.

E só viesse a penalizá-lo criminalmente se descumprisse as sanções administrativas impostas ou causasse lesão corporal ou homicídio culposos, nestes casos com aumento de pena pela embriaguez como já consta dos arts. 303, parágrafo único, e 302, parágrafo único, inciso V, do Código de Trânsito Brasileiro.

O Direito Penal só deve ser aplicado em último caso, quando os demais ramos do direito se mostrem incapazes de solucionar graves conflitos sociais, e não como solução primeira e “mágica” para eles.

A Lei Seca teve o mérito de conscientizar a todos da incompatibilidade entre o álcool e ato de dirigir. Seus autores tiveram a melhor das intenções, mas, infelizmente, trilharam por caminho legalmente equivocado, que precisará ser refeito dentro dos princípios constitucionais, para o bem comum.

Todavia, a Suprema Corte, como de costume, haverá de dizer a última palavra na ação direta de inconstitucionalidade que está prestes a julgar.

Roberto Delmanto
Advogado criminalista, foi membro do Conselho de Política Criminal do Estado de São Paulo e do Ilanud - Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinqüente

DELMANTO, Roberto. As inconstitucionalidades da lei seca. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 189, p. 18, ago. 2008.

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