quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Artigo: Artigo: Financiamento ou custeio para o tráfico e violação ao princípio ne bis in idem

A famigerada Lei n.º 11.343/06, a Lei de Drogas, inovou em alguns aspectos: elevou e criou penas, bem como tipificou novas condutas como crimes. Mas manteve outros: sua própria caracterização como lei penal em branco[1] por excelência, a sistemática de estipulação de marcos legais para o número de dias-multa, no tocante à multa cominada, assim como a ruptura à teoria monista adotada no art. 29 do CP. Entretanto, uma das principais inovações está disposta no art. 36, que dispõe expressamente “financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34 desta Lei”. Trata-se da figura do financiamento ou custeio para o tráfico.

Naturalmente não se pode entender que as condutas previstas no dispositivo sejam idênticas, isso porque a conduta de financiar compreende o ato de fornecer, disponibilizar dinheiro, fundos ou capital para algo, o que supõe a espontaneidade do agente ao colocar deliberadamente capital à disposição com o intuito de contribuir para o tráfico. Diferentemente, a conduta de custear compreende o ato de suportar, pagar despesas de alguém relativas a algo, mais especificamente despesas ou custos relativos à consecução do resultado ilícito. Isso se pode vislumbrar melhor casuísticamente, ou seja, reportando-se ao aspecto material com as respectivas circunstâncias. Assim, por exemplo, se A, sabendo do intuito de B de proceder à importação de determinada quantidade de drogas sem autorização, deliberadamente coloca à disposição deste, valores com a finalidade de contribuir com a prática do fato, praticará a conduta de financiamento. Por outro lado, se B leva à conhecimento de A o seu intuito de proceder à importação das drogas sem autorização, sendo que este último efetua o pagamento de despesas decorrentes da importação mediante solicitação de B, terá praticado a conduta de custeio.

Entendeu o legislador, no entanto, que tais condutas – do art. 36 – seriam as mais gravosas dentre todas aquelas previstas nas demais normas incriminadoras dispostas na Lei, posto que cominou pena de reclusão de 8 a 20 anos e pena de multa de 1500 a 4000 dias-multa. Em outras palavras, se analisarmos sob uma perspectiva causal, pode-se dizer que o legislador entendeu que as condutas ali previstas – no art. 36 – representariam não causas, mas sim condições sem as quais, por exemplo, o resultado tráfico não se produziria, daí o estabelecimento das sanções mais elevadas previstas na lei de um modo geral (tanto no que diz respeito à pena privativa de liberdade, como à multa). Entretanto, se esta colocação estiver correta, poder-se-á dizer que ali existe flagrante violação ao princípio da proporcionalidade, eis que, por exemplo, a conduta de fabricar aparato destinado à preparação de drogas sem autorização, prevista no art. 34 da Lei, também representa condição sem a qual o resultado tráfico não se produziria e, nesse sentido, assim como no art. 36, também deveria ser submetida à penas mais gravosas que as cominadas para as condutas previstas no art. 33, caput da Lei e não, ao contrário, à penas mais brandas. Porém, descabe aqui perquirir a voluntas (ou mens) legislatoris, com o intuito de evidenciar uma inobservância ao critério da proporcionalidade, o que analisaremos oportunamente.

No art. 40 da Lei, o legislador previu uma série de condutas e circunstâncias (incisos I a VII) que autorizam o julgador a majorar a pena de um sexto a dois terços sobre as penas previstas nos arts. 33 a 37.

Uma vez que a causa de aumento prevista no art. 40, por expressa disposição, deve incidir sobre as penas previstas nos arts. 33 a 37 da Lei, evidentemente também deverá incidir sobre a pena prevista no art. 36, ou seja, sobre a pena daquele que procede ao financiamento ou custeio para o tráfico. Contudo, no inciso VII do art. 40, o legislador determinou o aumento da pena do “agente que financiar ou custear a prática do crime”[2].

Parece-nos que aqui o legislador incorreu em erro. No art. 36 da Lei, como dito, já foram previstas as condutas de financiar e custear, sendo que, pela análise do tipo objetivo, constata-se que em qualquer hipótese o agente que financiar ou custear a prática das condutas previstas nos arts. 33 caput e § 1.º e 34 será submetido às penas previstas no referido dispositivo. Nesse sentido, o comportamento consciente e voluntário de financiamento ou custeio para o tráfico conduzirá à caracterização do indivíduo como autor, desde que possua o domínio do fato (previsto no art. 36).

Mutatis mutandis a causa de aumento de pena prevista no art. 40, inciso VII, da Lei de Drogas, jamais poderá ser aplicada ao agente do crime tipificado no art. 36, posto que conduzirá à flagrante violação princípio ne bis in idem. Tal princípio, que vem do direito romano e faz parte da tradição democrática do direito penal, nada mais é do que corolário do ideal de justiça, uma vez que determina que jamais alguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato[3]; dito de outro modo, jamais uma mesma circunstância pode ser levada em consideração mais de uma vez para punição de um mesmo indivíduo, para evitar a dupla punição.[4]

Evidentemente, o princípio ne bis in idem não está consolidado expressamente em preceito constitucional. Porém, o próprio Supremo Tribunal Federal, em decisão do Pleno, afirmou que “a incorporação do princípio do ne bis in idem ao ordenamento jurídico pátrio, ainda que sem o caráter de preceito constitucional, vem, na realidade, complementar o rol dos direitos e garantias individuais já previsto pela Constituição Federal, cuja interpretação sistemática leva à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade em detrimento do dever de acusar.”[5] Ad comparandum o próprio princípio da proporcionalidade não existe, no Brasil, enquanto norma expressa, mas sim como norma esparsa no texto constitucional, cuja noção se infere de outros princípios que lhe são afins e positivação do disposto no art. 5.º, § 2.º da Constituição Federal.[6] De acordo com isso, se o princípio ne bis in idem complementa o rol de direitos e garantias individuais previsto pela Constituição Federal, significa que possui status constitucional e, nesse sentido, pode-se dizer que está previsto naqueles preceitos que tutelam o direito à liberdade e sua positivação assenta no mesmo art. 5.º, § 2.º. Conseqüentemente pode-se afirmar a inconstitucionalidade do art. 40, inciso VII da Lei de Drogas, por consistir em violação ao princípio ne bis in idem, na medida em que legitima a consideração de uma mesma circunstância mais de uma vez em prejuízo do réu, e isto porque tal princípio não padece lesão sem que ocorra dano irreparável à natureza e integridade do sistema constitucional.

Com isso, vamos além em nossa fundamentação. A circunstância prevista no art. 40, inciso VII, da Lei, de per se constitui uma contradictio in adjecto cometida pelo legislador. Isso porque não é só em relação ao agente do crime tipificado no art. 36 que a circunstância deve ser desconsiderada (por violação ao ne bis in idem), senão em toda e qualquer hipótese de conduta que caracterize um dos crimes tipificados nos arts. 33, caput e § 1.º e 34 da Lei, uma vez que o financiamento ou o custeio para a prática dos crimes previstos nos arts. 33 caput e § 1.º e 34 da Lei, constitui a figura delitiva autônoma tipificada no art. 36. Assim, na situação anteriormente relatada, se A, sabendo do intuito de B de proceder à importação de determinada quantidade de drogas sem autorização, deliberadamente colocar à disposição deste, valores com a finalidade de contribuir com a prática do fato, responderá pelo art. 36, pois praticou a conduta de financiamento, ao passo que B, ao efetuar a importação, responderá pelo art. 33. Porém, neste caso não se poderá aplicar a causa de aumento do art. 40, VII, em relação à A, caso contrário, haverá violação do princípio ne bis in idem.

Em síntese, a previsão legal de aplicação da causa de aumento do art. 40, VII, aos crimes tipificados no art. 33, caput e § 1.º, no art. 34 e no próprio art. 36 da Lei de Drogas constitui uma teratológica inconstitucionalidade. Aliás, cremos tratar-se de aspecto em relação ao qual o próprio legislador deva atentar, isso porque o dispositivo consolida (legitima) atentatória violação a postulados do Estado Democrático de Direito, mais especificamente, um bis in idem autorizado (quiçá se possa dizer, determinado) legalmente.

[1] Sobre isso Carvalho que afirma que “a técnica dos preceitos em branco gera profunda crise no sistema formal de legalidade, pois permite que o executivo estabeleça o conteúdo formal do tipo penal” (CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, 2006, p. 168) e por isso assevera, mais recentemente, que “os artigos base dos preceitos incriminadores da Lei 11.343/06 incorporam na estrutura do direito penal das drogas estes efeitos da descodificação (CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil, 2007, p. 186)”.

[2] “Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se: VII – o agente financiar ou custear a prática do crime.”

[3] Assim HASSEMER, Winfried. Einführung in die Grundlagen des Strafrechts, 2. Aufl., 1990, p. 318 (há tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva, sob o título Introdução aos Fundamentos do Direito Penal, Porto Alegre: safE, 2005); igualmente NAUCKE, Wolfgang. Strafrecht. Eine Einführung, 10. Aufl., 2002, p. 169, referindo expressamente “ne bis in idem = es darf wegen der gleichen Sache nicht zweimal bestraft werden”, bem como indicando que o princípio está previsto expressamente na GG (Lei Fundamental Alemã), no art. 103, alínea 3.

[4] A respeito, inclusive, já referiu o Supremo Tribunal Federal que “A lei brasileira não admite seja o indivíduo processado criminalmente por delito pelo qual foi condenado, consagrando a regra, que vem do direito romano, no non bis in idem: não se pune duas vezes a um acusado pelo mesmo crime” (STF, Ext. 871-4/República da Grécia, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, D.J. 12.03.2004).

[5] STF, HC 80.263/SP, Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, D.J. 27.06.2003.

[6] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 2004, p. 434.


Pablo Rodrigo Alflen da Silva, Advogado Criminal/RS; Professor Concursado de Direito Penal e Processual Penal da UNIVATES (Lajeado, RS); Professor de Direito Penal e Processual Penal da ULBRA (São Jerônimo, RS); Professor Permanente da Especialização em Direito Penal e Política Criminal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; Mestre em Ciências Criminais (PUCRS); Doutorando em Ciências Jurídico-Penais (UMinho); Pesquisador credenciado ao CNPq (DOU 22.08.06, Sec. 01, p. 04); Membro da Gesellschaft für Völkerstrafrecht, Berlin.

SILVA, Pablo Rodrigo Alflen da. Financiamento ou custeio para o tráfico e violação ao princípio ne bis in idem. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 09.09.2008.

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