segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Porte de droga para consumo pessoal e criminalização

O Plenário iniciou julgamento de recurso extraordinário em que se discute a constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006, que tipifica a conduta de porte de droga para consumo pessoal. Preliminarmente, o Colegiado resolveu questão de ordem no sentido de admitir, na condição de “amici curiae” e com o direito de realizarem sustentação oral, a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDF), a Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD), a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família (PRÓ-VIDA-FAMÍLIA), a Central de Articulação das Entidades de Saúde (CADES) e a Federação de Amor-Exigente (FEAE). As referidas entidades não teriam se inscrito até o momento em que o processo fora colocado em pauta. O Tribunal entendeu que a admissão dos referidos “amici curiae” seria importante do ponto de vista da paridade de armas e auxiliaria os trabalhos da Corte. Além disso, haveria dois grupos: os favoráveis à constitucionalidade da lei e os contrários a ela. Assim, ambos os grupos teriam o direito a 30 minutos de sustentação oral cada, e dividiriam o tempo entre as entidades como aprouvesse. No mérito, o Ministro Gilmar Mendes (relator) proveu o recurso, para: a) declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do referido dispositivo, de forma a afastar todo e qualquer efeito de natureza penal. Todavia, manteve, no que couber, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas, com natureza administrativa; b) conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 48, §§ 1º e 2º, da Lei 11.343/2006, no sentido de que, tratando-se de conduta prevista no art. 28 do diploma, o autor do fato será apenas notificado a comparecer em juízo; c) conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 50, “caput”, da Lei 11.343/2006, no sentido de que, na prisão em flagrante por tráfico de droga, o preso deve, como condição de validade da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, ser imediatamente apresentado ao juiz; e d) absolver o acusado, no caso, tendo em vista a atipicidade da conduta. Ademais, determinou ao CNJ as seguintes providências: a) diligenciar, no prazo de seis meses, a contar desta decisão, por meio de articulação com tribunais de justiça, CNMP, Ministério da Justiça e Ministério da Saúde, sem prejuízo de outros órgãos, os encaminhamentos necessários à aplicação, no que couber, das medidas previstas no art. 28 da Lei 11.343/2006, em procedimento cível, com ênfase em atuação de caráter multidisciplinar; b) articulação, no prazo de seis meses, a contar desta decisão, entre os serviços e organizações que atuam em atividades de prevenção do uso indevido de drogas e da rede de atenção a usuários e dependentes, por meio de projetos pedagógicos em campanhas institucionais, entre outras medidas, com estratégias preventivas e de recuperação adequadas às especificidades socioculturais dos diversos grupos de usuários e das diferentes drogas utilizadas; c) regulamentar, no prazo de seis meses, a audiência de apresentação do preso ao juiz determinada nesta decisão, com respectivo monitoramento; e d) apresentar ao STF, a cada seis meses, relatório das providências determinadas nesta decisão e resultados obtidos, até ulterior deliberação.
RE 635659/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 19 e 20.8.2015. (RE-635659)

O Ministro Gilmar Mendes assentou que estariam em jogo os valores da saúde pública, de um lado, e da intimidade e vida privada, de outro. Enfatizou, no ponto, que os direitos fundamentais expressariam um postulado de proteção, a qual não poderia ser insuficiente, sequer excessiva. Assim, a Constituição conteria mandados expressos de criminalização, bem assim conferiria ao legislador margem de ação para definir a forma mais adequada de proteção aos bens jurídicos fundamentais, inclusive a opção por medidas de natureza penal. A liberdade do legislador estaria, portanto, limitada pelo princípio da proporcionalidade, sob pena de excesso de poder legislativo. Enfatizou que o principal argumento em favor da criminalização do uso de drogas estaria assentado no dano em potencial da conduta, tendo em conta a saúde e a segurança públicas. Tratar-se-ia de crime de perigo abstrato, fruto de opção do legislador por um direito penal de caráter preventivo. Destacou a existência de políticas regulatórias relacionadas à posse de drogas para consumo pessoal, mediante processo em que deslocado o problema do campo penal para o da saúde pública. Isso não significaria, entretanto, pura e simples legalização de substâncias, mas conjugação de descriminalização com políticas de redução e prevenção de danos. Ponderou que, no caso, seria necessário analisar se a norma impugnada seria adequada à proteção do bem jurídico tutelado. Em outros termos, se as medidas adotadas pelo legislador seriam idôneas à efetiva tutela do bem fundamental e se a decisão legislativa teria sido tomada após apreciação objetiva e justificável das fontes de conhecimento então disponíveis. A respeito, ponderou haver incongruência entre a criminalização de condutas circunscritas ao consumo pessoal de drogas e os objetivos expressamente estabelecidos pelo legislador em relação a usuários e dependentes, potencializada pela ausência de critério objetivo de distinção entre usuário e traficante. A norma impugnada seria, sob esse aspecto, desproporcional e inadequada a seu almejado fim. Além disso, não seria seguro afirmar que a repressão ao consumo teria eficiência para combater o tráfico de drogas. Ao contrário, seria evidente o aumento da atividade nos últimos tempos. Acresceu que modelos menos rígidos no que diz respeito à posse de drogas para consumo pessoal não demonstrariam aumento na proporção populacional usuária de substâncias. A problemática estaria relacionada a uma série de fatores complexos, e a criminalização teria pouca influência na conduta do indivíduo. Ademais, no próprio projeto da Lei 11.343/2006, o usuário seria considerado pessoa vulnerável, merecedora de atenção à saúde e oportunidade de inserção e reinserção social.
RE 635659/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 19 e 20.8.2015. (RE-635659)


O relator lembrou que qualquer lesão potencial à saúde pública não poderia ser utilizada para legitimar a intervenção penal no indivíduo. O tabaco e o álcool, por exemplo, ofereceriam lesividade, mas sua venda e consumo não seriam criminalizados. Nesses casos, o incremento de medidas restritivas de caráter administrativo viria se mostrando eficaz. O mesmo raciocínio deveria ser aplicado em relação às demais drogas. Sublinhou que a criminalização da posse de drogas para consumo pessoal também afetaria de modo desproporcional o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, e à autodeterminação, em suas diversas manifestações. Ademais, a autolesão seria criminalmente irrelevante. Frisou que a criminalização do usuário teria efeito de rotulá-lo como marginalizado, o que dificultaria sua recuperação, especialmente em se tratando de jovens, que seriam o principal grupo consumidor de substâncias ilícitas. Salientou, ainda, que outros países já apresentariam medidas alternativas no que se refere às consequências legais do uso pessoal de drogas. No Brasil, como ainda não haveria critérios objetivos de distinção entre usuário e traficante, seria recomendável regulamentação nesse sentido, precedida de estudos sobre as particularidades regionais. A própria Lei 11.343/2006 conteria diretivas capazes de contribuir para resultados mais eficazes no combate às drogas, se comparadas à criminalização, no que se refere a usuários e dependentes. Nesse aspecto, o art. 28 — afastada a natureza penal de suas medidas — poderia ser mais efetivo ao propiciar novas abordagens ao problema do uso de drogas por meio de práticas mais consentâneas com a complexidade do tema. Por outro lado, também estaria afastada não apenas a possibilidade de prisão em flagrante, como a condução coercitiva à presença do juiz ou à delegacia. Remanesceria, entretanto, a possibilidade de prisão pela posse, quando o policial entendesse que a conduta se qualificasse como tráfico. Assim, a imediata apresentação ao juiz conferiria maior segurança na distinção entre traficante e usuário, até que legislação específica viesse a lume, com critérios mais objetivos. Por ora, dever-se-ia interpretar a lei de forma que o ônus de provar tratar-se de traficante, e não mero usuário, incumbisse à acusação, e o escrutínio final, ao juiz. Da mesma forma, a avaliação da necessidade de prisão em flagrante e de sua conversão em prisão preventiva deveria ser objeto de especial análise pelo Poder Judiciário. Em seguida, pediu vista dos autos o Ministro Edson Fachin.
RE 635659/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 19 e 20.8.2015. (RE-635659)


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