No momento em que o Supremo Tribunal Federal decide sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006 (posse para consumo de drogas ilícitas), após o longo e substancioso voto do relator ministro Gilmar Mendes pela inconstitucionalidade do referido artigo e, consequentemente, pela descriminalização da posse para consumo de drogas ilícitas, o ministro Luiz Edson Fachin pediu vista.
Segundo o relator, “a criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”. O voto do ministro Gilmar Mendes se baseia no argumento da Defensoria Pública de São Paulo, autora do recurso.
A alegação dos defensores públicos é que o artigo é inconstitucional por violar o direito fundamental à intimidade e à privacidade. Afirmam, ainda e acertadamente, que criminalizar o uso de drogas viola o princípio da lesividade, segundo o qual só podem ser considerados crimes condutas que afetem bens jurídicos de terceiros ou coletivos.
Embora represente um progresso, poderia o eminente relator ter avançado mais na questão. Não há, com todas as vênias, razão alguma para se impor qualquer medida no âmbito civil ou administrativo contra o usuário de drogas. O tratamento dado às drogas ilícitas deveria ser no máximo o mesmo que é dado às drogas lícitas (álcool e tabaco).
Por inúmeras razões, valeria a pena aos ministros e ministras que porventura estejam indecisos, no que pese o tempo em que o assunto já é debatido, ler de novo o artigo de Maria Lúcia Karam “Aquisição, guarda e posse de drogas para uso pessoal: ausência de tipicidade penal” (Karam, Maria Lucia. De crimes, penas e fantasias. Niterói, RJ: Luam, 1991.). A magistrada aposentada é, sem dúvida, uma das maiores estudiosas do assunto no Brasil. Embora tenha sido escrito sob a vigência da antiga Lei 6.368/76, o artigo, mutatis mutandis , continua atual.
Na epígrafe do referido artigo, Maria Lúcia Karam traz a lição de J. Stuart Mill (Sobre a Liberdade, 1858), transcrevendo o seguinte trecho: “Ninguém pode ser obrigado a realizar ou não realizar determinados atos, porque isso seria melhor para ele, porque o faria feliz ou porque, na opinião dos demais, seria mais acertado ou justo. Estas são boas razões para discutir, para ponderar ou persuadir, mas não para obrigar”.
Inicialmente, Maria Lúcia Karam aborda a questão das condutas privadas, ou seja, aquelas que não afetam ou lesam bens ou interesses de terceiros. Dessas condutas, diz a autora, “não se pode dizer que sejam permitidas ou proibidas juridicamente, não cabendo dar a elas qualificação jurídica, na medida em que, por sua própria definição, o Direito não deve alcançá-las”. Como bem assevera, é imprescindível distinguir entre Direito e moral, entre crime e pecado.
Em seguida, Maria Lúcia Karam faz uma profunda análise do objeto jurídico do crime — para a maioria da doutrina e dos Tribunais, a saúde pública —, o qual é devidamente colocado em xeque pela autora. É evidente, afirma Karam, “que na conduta de uma pessoa, que destinando-a a seu próprio uso, adquire ou tem em posse de uma substância, que causa ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde pública, dada a ausência daquela expansibilidade do perigo”.
Com base nos conceitos trazidos por Eugênio Raúl Zaffaroni, Maria Lúcia Karam trabalha a distinção de tipicidade legal e tipicidade penal demonstrando com toda a clareza que na conduta da posse para uso pessoal não há que se falar em tipicidade penal e, portanto, em ofensa ao bem jurídico que se pretende proteger.
Para aqueles que insistem em afirmar que a impunidade da posse de drogas para uso pessoal incentivaria a disseminação das drogas, Maria Lúcia Karam assim responde: “Uma análise mais racional revela que tal afirmação não parte de dados concretos, sendo mera suposição, que também seria possível fazer num sentido oposto, pois não é irrazoável pensar que a ameaça de punição pode, não só ser inócua no sentido de evitar o consumo, como até funcionar como uma atração a mais notadamente entre os jovens e adolescentes, setor onde o problema é especialmente preocupante”.
Não é despiciendo lembrar o que afirmou o prêmio Nobel de Economia em 1976, Milton Friedman: “Tivessem as drogas sido descriminalizadas 17 anos atrás, o crack nunca teria sido inventado [ele foi inventado porque o alto custo das drogas ilegais torna lucrativo fornecer uma versão mais barata] e hoje haveria um número bem menor de dependentes...”.
Apenas para ilustrar e exemplificar, o nosso vizinho Uruguai, no último dezembro, legalizou a produção, distribuição e venda da maconha sob o controle do Estado. Todos os uruguaios ou residentes no país, maiores de 18 anos, que tenham se registrado como consumidores para o uso recreativo ou medicinal da maconha poderão comprar a erva em farmácias autorizadas.
Em Portugal, desde 1º de julho de 2001 (Lei 30/2000, de 29 de novembro), a aquisição, posse e consumo de qualquer droga não mais caracterizam crime, constituindo apenas violações na esfera administativa onde não há prisão. Desde então, o uso de droga em Portugal está entre os mais baixos da Europa, sobretudo quando comparado com Estados com regimes de criminalização mais rigorosos. O consumo diminuiu entre os mais jovens, e reduziram-se a mortalidade (de 400 para 290, entre 1999 e 2006) e as doenças associadas à droga.
Enquanto isso, no Brasil o número de presos condenados por tráfico vem aumentando desproporcionalmente. O número de presos condenados por tráfico de drogas cresceu 30% nos últimos dois anos, passando de 106.491 em 2010 para 138.198 em 2012. No mesmo período, o número de presos em geral aumentou apenas 10%, passando de 496.251 para 548.003. Segundo o último levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), concluído em dezembro de 2012, os 138.198 presos por tráfico de drogas no país representam um quarto de todo o contingente carcerário.
Como bem disse Maria Lúcia Karam em Congresso em homenagem ao jurista alemão Winfried Hassemer realizado no último dia 20 de agosto, a “guerra as drogas” mata mais gente que as próprias drogas. Na verdade, é uma guerra contra pessoas, onde os que mais morrem são os mais vulneráveis.
Por tudo, vale a pena ler de novo De Crimes, Penas e Fantasias, de Maria Lúcia Karam.
Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista, doutor em Ciências Penais e professor de Direito Penal da PUCMinas
Revista Consultor Jurídico, 25 de agosto de 2015.
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