O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, apresentou ao ministro da Justiça uma proposta de reforma do Código de Processo Penal. A mudança na lei obrigaria os juízes a se manifestarem sobre a possibilidade de aplicação das medidas cautelares alternativas previstas no artigo 319 do código antes de ser determinada a prisão em flagrante ou preventiva. Lewandowski disse que a proposta tem como objetivo mudar o que chamou de “cultura do encarceramento” existente no país.
Tal proposta parece-nos um tanto quanto despicienda, à luz da alteração do Código de Processo Penal com a promulgação da Lei 12.403/201, que alterou substancialmente o Título IX do Livro I do Código de Processo Penal, passando a ter a seguinte epígrafe: “Da Prisão, Das Medidas Cautelares e Da Liberdade Provisória”. Com efeito, o novo art. 282 estabelece que as medidas cautelares previstas em todo o Título IX deverão ser aplicadas observando-se um dos seguintes requisitos: a necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais (periculum libertatis).
Além desses requisitos (cuja presença não precisa ser cumulativa, mas alternativamente), a lei estabelece critérios que deverão orientar o juiz no momento da escolha e da intensidade da medida cautelar, a saber: a gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do indiciado ou acusado (fumus commissi delicti). Evidentemente, merecem críticas tais critérios, pois muito mais condizentes com as circunstâncias judiciais a serem aferidas em momento posterior quando da aplicação da pena, além de se tratar de típica opção pelo odioso Direito Penal do Autor[1].
Procura-se, portanto, estabelecer neste título os requisitos e os critérios justificadores para as medidas cautelares no âmbito processual penal, inclusive no que diz respeito às prisões provisórias, incluindo-se a prisão temporária, “pois são regras abrangentes, garantidoras da sistematicidade de todo o ordenamento”[2]. Assim, quaisquer das medidas cautelares estabelecidas neste título (repetimos: inclusive as prisões provisórias codificadas ou não) só se justificarão quando presentes ofumus commissi delicti e o periculum libertatis (ou o periculum in mora, conforme o caso) e só deverão ser mantidas enquanto persistir a sua necessidade, ou seja, a medida cautelar, tanto para a sua decretação quanto para a sua mantença, obedecerá à cláusula rebus sic stantibus.
Caso haja descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do art. 312, parágrafo único do Código de Processo Penal. Observa-se que a lei é expressa ao considerar a prisão cautelar (incluindo-se a temporária) como ultima ratio. É imposição legal a excepcionalidade da prisão provisória, que somente deverá ser decretada quando não for absolutamente cabível a sua substituição por outra medida cautelar. E, na respectiva decisão, essa imprescindibilidade deve restar claramente demonstrada, nos termos do art. 93, IX da Constituição. Como dissemos acima, a medida cautelar decretada poderá ser revogada ou substituída quando se verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a ser decretada, se sobrevierem razões que a justifiquem (é a conhecida cláusula rebus sic stantibus). Aqui também deve-se atender à exigência constitucional do contraditório, na forma do § 3º. do art. 282.
Com a nova redação proposta para o art. 310 estabelece-se que o juiz de Direito deveria, fundamentadamente, ao receber o auto de prisão em flagrante, tomar uma das seguintes decisões: a) relaxar a prisão ilegal (aquela cujo auto de prisão em flagrante não observou os requisitos legais acima indicados); b) converter a prisão em flagrante (legalmente lavrado) em prisão preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; de se observar que a prisão preventiva não pode ser decretada de ofício pelo juiz de Direito nessa fase pré-processual, logo para a conversão é necessário ter havido a representação da autoridade policial ou após requerimento do Ministério Público (art. 311 do Código de Processo Penal); c) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança (idem, ou seja, para a conversão da prisão em flagrante em liberdade provisória com alguma medida cautelar, impõe-se o requerimento neste sentido do delegado de polícia ou do Ministério Público. Caso contrário, deve ser concedida liberdade provisória sem imposição de qualquer outra medida cautelar, inclusive a fiança, à vista do art. 321 – “se for o caso”).
Nesse momento, se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Código Penal (causas excludentes de ilicitude), poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória (sem fiança), mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação. Nada obstante o silêncio da lei entendemos também ser obrigatória a concessão da liberdade provisória vinculada ao comparecimento a todos os atos processuais, quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato sob o pálio de uma excludente de culpabilidade, pois a similitude das circunstâncias (todas retiram o caráter criminoso da conduta) obriga a igualdade de tratamento. Trata-se, aqui, de liberdade provisória, sem fiança, vinculada, porém ao comparecimento aos atos processuais. Nada impede, igualmente, que a liberdade provisória aqui prevista seja cumulada com outra medida cautelar. Importante atentar que, nada obstante o não comparecimento do réu aos atos processuais (e mesmo diante do descumprimento da medida cautelar porventura imposta), a prisão preventiva será de toda maneira incabível, à luz do art. 314. Observa-se, outrossim, que o auto de prisão em flagrante só deverá ser lavrado caso efetivamente tenha ocorrido um crime (fato típico, antijurídico e culpável!).
Observa-se que a prisão preventiva só poderá ser decretada de ofício pelo juiz durante a fase processual; antes, ou seja, no curso de uma investigação criminal, apenas quando instado a fazê-lo, seja pelo Ministério Público, seja pela polícia (como se sabe, na fase inquisitorial não há querelante nem assistente). Como já afirmamos acima a respeito das demais medidas cautelares, ainda que haja esta limitação, parece-nos que no sistema acusatório é absolutamente desaconselhável permitir-se ao juiz a possibilidade de, ex officio, ainda que em juízo, decidir acerca de uma medida cautelar de natureza criminal.
Continuam sendo requisitos para a prisão preventiva: a) a garantia da ordem pública (desgraçadamente); b) a garantia da ordem econômica (idem, mas menos mal); c) por conveniência da instrução criminal; d) para assegurar a aplicação da lei penal. Além desses, podem ser também indicados como requisitos legais para a decretação da prisão preventiva, nos termos da nova lei, os seguintes: a) o descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (tal como já previsto no art. 282, § 4o.); b) a garantia para a execução de medidas protetivas de urgência estabelecidas em relação a determinadas vítimas (mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência). Aqui está consubstanciada a necessidade indispensável para a decretação da prisão preventiva, o chamado periculum libertatis.
Também é importante salientar ser incabível a decretação da prisão preventiva quando a medida protetiva de urgência tiver um caráter eminentemente civil, como, por exemplo, as medidas previstas no art. 24 da Lei nº. 11.340/06 (Lei Maria da Penha). Tal afirmação decorre do fato que a prisão preventiva, em tais casos, decorreria de um inadimplemento de natureza cível, não passível de prisão (como se sabe, a prisão civil só é legítima constitucionalmente quando se trata de alimentante faltoso)[3].
Como pressuposto da medida extrema temos o fumus commissi delicti, ou seja, a demonstração cabal e induvidosa de prova da existência de determinados crimes e indício suficiente de autoria (o que coincide com a justa causa para a ação penal, nos termos do art. 395, III do Código de Processo Penal).
Ainda em relação ao fumus commissi delicti, a prisão preventiva, em regra, só poderá ser decretada em relação aos supostos autores de crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos, a não ser se o indiciado ou acusado tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado (ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Código Penal), ou se o delito envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (aqui está um requisito específico para essa última hipótese). Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida (nesse aspecto, atente-se ao disposto nos artigos 2º. e 3º da Lei 12.037/2009[4]).
Observa-se, portanto, que, excepcionalmente (mesmo porque a prisão preventiva só será decretada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, nos termos do art. 282), permite-se a prisão preventiva mesmo em crime culposo e qualquer que seja a pena privativa de liberdade cominada. Não seria mais necessária a demonstração daqueles outros requisitos (garantia da ordem pública ou econômica, conveniência da instrução criminal e aplicação da lei penal).
Obviamente, mais uma vez não se observou o princípio da proporcionalidade, perfeitamente exigível quando se trata de estabelecer requisitos e pressupostos para a prisão provisória; aqui, pode-se prender preventivamente quando, muito provavelmente, não haverá aplicação de uma pena privativa de liberdade quando da sentença condenatória.
Aliás, além das medidas cautelares (aplicadas durante a investigação criminal ou o processo penal), melhor seria que incrementássemos as penas alternativas.
[1] Nesse mesmo sentido Pierpaolo Cruz Bottini, “Medidas Cautelares – Projeto de Lei 111/2008”, inAs Reformas no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 458.
[2] Pierpaolo Bottini, ob. cit., p. 457.
[3] Nesse sentido, Rogério Sanches Cunha, “Prisão e Medidas Cautelares”, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 151.
[4] Em nosso Curso Temático de Direito Processual Penal (Curitiba: Juruá, 2010), analisamos esta lei.
Rômulo de Andrade Moreira é procurador-geral de Justiça adjunto para Assuntos Jurídicos na Bahia.
Revista Consultor Jurídico, 6 de fevereiro de 2014
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