O Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro é pioneiro no país. Criado em 1924 por decreto presidencial, o primeiro colegiado trazia em suas fileiras o criminalista Sobral Pinto, entre outros notáveis. Mas somente após seis décadas de serviços prestados, suas atribuições passaram a ser reguladas, com a promulgação da Lei de Execução Penal (7.210/1984).
A LEP, como é mais conhecida, dá aos conselhos o poder de fiscalizar a execução penal de quatro maneiras: pela produção de pareceres sobre redução e perdão de penas, que são elaborados com base nos decretos presidenciais de indulto natalino e comutação de penas publicados a cada dezembro e encaminhados ao Judiciário; relatórios sobre as unidades penais, feitos a partir das inspeções e enviados ao Executivo estadual e federal; cerimônias de livramento condicional nas unidades, e acompanhamento dos chamados egressos do sistema prisional, que cumprem pena em liberdade condicional.
À frente do Conselho desde 2011, a advogada Maíra Fernandes tornou-se a primeira mulher a presidir o colegiado em quase 90 anos. Quando aceitou a indicação, ela completava seu mandato como representante da OAB-RJ. Aliás, de acordo com a lei, os Conselhos devem ter uma composição multidisciplinar que inclua ainda defensores, promotores, procuradores, profissionais de saúde e representantes da comunidade.
A advogada acredita que essa diversidade tem sido determinante para os resultados obtidos em sua gestão, que vai até 2015. Em três anos foram produzidos 14.470 pareceres e realizadas 10.705 cerimônias de livramento condicional. Desde 2012, o Conselho também passou a promover as Ações Pró-Egresso, reunindo empresas e instituições dispostas a ajudar quem passou pelo sistema prisional a reconstruir sua vida do lado de fora. Nesses eventos anuais são oferecidos diversos serviços, como emissão de carteiras de trabalho, bolsas em cursos profissionalizantes e até contratos de emprego.
Apesar dos números exitosos, Maíra Fernandes começou 2014 preocupada. Desde janeiro a Vara de Execução Penal, por decisão própria, parou de enviar os autos judiciais para análise do Conselho. A medida da VEP baseou-se no último decreto presidencial de indulto natalino e comutação de penas. Pelo decreto, o juiz passa a ter um prazo de cinco dias para ouvir as manifestações do Ministério Público e da defesa. O Conselho Penitenciário não é citado no texto.
O recém-criado Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários, do qual Maíra é coordenadora-geral, já enviou ofício ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, questionando a legalidade do decreto. “Qualquer mudança do papel dos conselhos deve vir por meio de uma alteração na Lei de Execução Penal”, afirma ela, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico. Até o momento, o Judiciário fluminense foi o único a excluir a análise do Conselho Penitenciário com base no decreto.
Para Maíra, a decisão da VEP enfraquece um dos braços principais da fiscalização feita pelo Conselho. Segundo ela, é comum descobrir nos autos enviados pela Justiça do Rio direitos a reduções de pena não concedidas em anos anteriores. "Aliás, não raras vezes entrávamos em contato com a própria VEP para avisar que havíamos enviado um processo com tarja de 'urgente', porque o preso já tinha prazo para livramento condicional", conta.
Graduada pela UFRJ e com pós-graduação em Direitos Humanos e Relações do Trabalho pela mesma instituição, Maíra Fernandes integra o escritório Técio Lins e Silva & Ilídio Moura, especializado na área criminal. Também faz parte da Comissão de Segurança Pública da OAB-RJ e do Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher.
No último dia 4 de janeiro, em Brasília, Maíra tomou posse como representante da seccional fluminense da OAB na Coordenação de Acompanhamento do Sistema Carcerário da OAB Nacional.
Leia a entrevista
ConJur — Fale sobre o trabalho desenvolvido pelo Conselho Penitenciário.
Maíra Fernandes — O Conselho Penitenciário tem quatro funções previstas na Lei de Execução Penal. Uma das principais é opinar sobre comutação da pena (redução) e indulto (perdão). O Conselho recebe os autos judiciais, geralmente com pedido feito por um defensor público ou advogado, e então analisa, com base nas normas estabelecidas pelo decreto presidencial, publicado sempre perto do Natal, se o apenado preenche aqueles requisitos para a obtenção do benefício. É claro que quando estamos com os autos em mãos fazemos um verdadeiro saneamento do processo.
ConJur — De que maneira?
Maíra Fernandes — É que nessa hora aproveitamos para ver se o preso tem direito a outro benefício além daquele solicitado. Às vezes, recebemos um pedido de comutação da pena referente ao decreto de 2012, mas descobrimos que o preso tinha direito a reduções não concedidas em 2004, 2006, 2009... É comum opinarmos sobre benefício mais antigo do que aquele que está sendo solicitado.
ConJur — Quais são as outras três funções?
Maíra Fernandes — O Conselho fiscaliza o sistema prisional por meio de inspeções às 53 unidades do estado. De um lado, nós fiscalizamos a execução da pena no Judiciário por meio dos pareceres sobre comutação da pena e indulto, de outro, com as inspeções, fiscalizamos a execução da pena in loco, nos reportando diretamente ao Executivo. As inspeções geram relatórios que são encaminhados à própria Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) e ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). Além disso, fazemos cerimônias diárias de livramento condicional nas próprias unidades e acompanhamos a assistência dada aos egressos. Por fim, supervisionamos o patronato Margarinos Torres, órgão estadual que monitora o cumprimento das penas de livramento condicional, monitoramento eletrônico, dentre outras.
ConJur — Como ocorre na prática esse acompanhamento?
Maíra Fernandes — Desde 2012 fazemos ações sociais anuais que chamamos de Ações Pró-Egressos. O evento acontece durante um dia inteiro no pátio do patronato, em Benfica, e reúne empresas que aceitaram empregar egressos do sistema prisional. Muitos deles saíram empregados na hora. Só a Cedae empregou 50 pessoas em um único dia. Apenas no evento do ano passado, foram emitidas 64 carteiras de trabalho, realizados 106 atendimentos sobre benefícios previdenciários e concedidas 129 bolsas para cursos profissionalizantes promovidos pelo Senac, Sesi, Sebrae e Escola de Educação Financeira. Além de exames de saúde e atendimento odontológico. Também participam ONGs que desenvolvem ações com população carcerária. Os eventos contam inclusive com programação cultural e a participação de familiares. Esse acompanhamento do egresso é o que mais tem me dado alegrias. Estou colecionando boas histórias de pessoas que, com a ajuda do Conselho, estão hoje empregadas, reconstruíram suas vidas e estão completamente afastadas do mundo do crime.
ConJur — Lembra de alguma história em particular?
Maíra Fernandes — Outro dia um egresso que está trabalhando numa padaria foi no Conselho Penitenciário levar uma torta feita por ele, em agradecimento por estar trabalhando com carteira assinada. Isso não tem preço. É animador ver que estamos aos poucos quebrando esse preconceito no mercado de trabalho. São cada vez mais positivos os índices das empresas que empregam egresso. A Cedae, que é uma das maiores empregadoras de egressos no estado do Rio, tem dado retorno de que eles não faltam, são pontuais, têm comportamento exemplar. Um dos projetos da Cedae que mais empregam egressos é o de reflorestamento. Eles trabalham na produção de mudas. A maioria das empresas privadas não gosta de ter o nome divulgado. A conclusão a que chegamos, com base nas informações passadas por essas empresas, tanto públicas como privadas, é que o egresso tem agarrado sua oportunidade de emprego.
ConJur — Como é a composição do Conselho?
Maíra Fernandes — Somos um colegiado composto por juristas, profissionais de saúde, procuradores da República, promotores, defensores públicos estaduais, advogados e representantes da comunidade, que no momento incluem um pastor e um padre, que é o presidente do Conselho da Comunidade de Niterói. Como não há vaga institucional para Defensor Público da União, indicamos ao secretário de Administração Penitenciária uma defensora para a vaga de jurista e ele acatou. Ao todo, somos 28 membros, entre titulares e suplentes. Essa composição multidisciplinar garante o debate e a possibilidade de discutir jurisprudência sobre comutação da pena e indulto. São todos profissionais com experiência no sistema penitenciário.
ConJur — Em que situações esse perfil multidisciplinar mais ajuda?
Maíra Fernandes — Se numa inspeção identificamos um problema que a própria Defensoria Pública pode resolver, envolvendo, por exemplo, um pedido de Habeas Corpus, ela é informada e já entra no circuito. Hoje, temos no Conselho o coordenador e os dois subcoordenadores do Núcleo de Execução Penal da Defensoria estadual, o que aumenta nosso diálogo com a Defensoria Pública. O Ministério Público e a OAB também têm sido interlocutores importantes na resolução dos casos. Os profissionais de saúde dão contribuições valiosas para nós do Direito e os representantes da comunidade fazem a ponte necessária com familiares de presos. O Conselho, apesar de sua independência e autonomia, é vinculado administrativamente à Seap, isso por um lado é um desafio, mas de modo geral pode facilitar pequenas soluções.
ConJur — Poderia dar um exemplo?
Maíra Fernandes — Claro que não vou conseguir resolver de imediato o problema da superpopulação carcerária. Mas um problema pontual, eu poderei conversar diretamente com o diretor da unidade prisional, com o secretário responsável, e assim temos tido sucesso na resolução de pequenos problemas. Fica sempre a sensação de que consigo resolver as questões no varejo, mas não no atacado. Isso sem dúvida dá uma frustração muito grande a todos os conselheiros. Em alguns casos, nós conseguimos dar encaminhamento, mas é claro que precisamos de uma política criminal penitenciária que diminua esse encarceramento, se não nós não vamos conseguir resolver problema algum.
ConJur — Ao suprir eventuais falhas na execução penal o Conselho também cria jurisprudência própria.
Maíra Fernandes — Sem dúvida. Embora alguns processos sejam de análise simples, com benefícios muito óbvios que estão previstos no decreto presidencial, por exemplo, há outros mais complexos. Por conta disso, o Conselho foi responsável por criar uma doutrina sobre comutação da pena e indulto, que não está prevista nos livros de execuções penais nem no Código de Processo Penal. É algo muito dinâmico, a cada ano é um novo decreto presidencial. Embora os decretos sejam muito parecidos, sempre há uma modificação. Essa obrigação de analisar o decreto como um todo, um defensor público, um promotor e um juiz, com o acúmulo de trabalho que têm, nem sempre têm tempo de fazer. Ao passar pelo Conselho, o decreto é discutido, caso a caso, por defensores, promotores, advogados, procuradores da República, médicos, psicólogos e representantes da comunidade numa sala. Em três sessões por semana. Claro que isso vai gerar uma interpretação mais rica daquele decreto.
ConJur — A ressocialização é possível no sistema penitenciário?
Maíra Fernandes — Na verdade, o termo ressocialização é questionável se pensarmos que antes de entrar para o sistema prisional a maioria dessas pessoas não teve acesso a absolutamente nada. Se antes elas não estavam totalmente socializadas, logo, não terão como sair “ressocializadas”. Para começar, eu não acredito que o sistema seja para ressocializar. Prisão é pena. Agora, se você me perguntar se eu acredito que uma pessoa possa sair do sistema prisional, virar a página de sua vida e recomeçar, sim, eu acredito.
ConJur — Segundo o presidente da Comissão de Direito Penal do Movimento de Defesa da Advocacia (MDA), advogado Filipe Magliarelli, o índice de reincidência criminal no país está na faixa de 70%.
Maíra Fernandes — Sim, o índice ainda é altíssimo. Mas não temos uma estatística oficial. O Conselho Nacional de Justiça encomendou ao Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) uma pesquisa sobre a reincidência penal no país. A pesquisa está em andamento. Embora não tenhamos nenhum dado concreto, acredita-se que esse número gire em torno de 70%. Mas, apesar desse índice, eu acredito que a pessoa possa, não digo se ressocializar, mas se afastar do mundo do crime apesar de ter passado um tempo presa.
ConJur — Como o Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários se posicionou em relação às mais de 60 mortes registradas ano passado na penitenciária de Pedrinhas, em São Luís?
Maíra Fernandes — O defensor público Paulo Rodrigues da Costa, membro do Conselho Penitenciário do Maranhão, tem sido nosso interlocutor no estado. Ele integra a força-tarefa da Defensoria Pública estadual, iniciada há duas semanas com o objetivo de identificar o perfil dos presos. Colocamos a estrutura do Fórum à disposição deles para o que for preciso. Agora, a situação do Maranhão é uma crônica de mortes anunciadas. Em agosto de 2013, a Defensoria Pública e o Ministério Público estaduais fizeram um relatório, apontando todos os problemas daquela unidade prisional, e pedindo o remanejamento de presos à Vara de Execução Penal. E mais: que fosse feito um relatório geral dos presos por unidade, a fim de se identificar quem poderia progredir de pena. A VEP fez uma portaria, que ao que tudo indica não foi atendida. Em outubro aconteceu a primeira rebelião, com 17 mortes. Em dezembro, outra. No total, foram 60 mortes em um ano. Isso não é uma média normal. Estados com população de presos muito maior, como São Paulo, não registraram número tão alto. O Maranhão possui cerca de 5 mil presos, isso é 1% da população carcerária. E a taxa de encarceramento do Maranhão é menor do que a de outros estados. Então o Maranhão não tem motivo para não administrar bem o seu sistema prisional. Das verbas que receberam do governo federal para construir novos presídios, nada foi feito, e agora seu sistema está superlotado. O sistema penitenciário brasileiro está superlotado, não para de crescer, tem uma série de problemas, isso é fato. Mas não dá para dizer que o que aconteceu no Maranhão é um problema visto em todos os estados. Além de todos os problemas sistêmicos, como falta de assistência, de medicamento, de colchão etc., o Maranhão foi bem além na ineficiência e não soube administrar sua própria segurança, apesar de ter sido alertado diversas vezes.
ConJur — Mas há problemas em comum com outros estados, como a mistura de presos cumprindo penas menores com aqueles de facções criminosas.
Maíra Fernandes — Sim, o problema de facções é comum em quase todo o país. Resta saber como administrar isso. É um desafio do administrador do sistema evitar que os presos se matem. Porque o preso foi condenado a uma pena de prisão, não de morte. O preso não pode ser morto quando está sob custódia do Estado. No caso do Maranhão, 60 mortes no intervalo de três meses é um caso de gravíssima violação de direitos humanos. É um exemplo de total ineficiência para administrar a questão das facções. Em Pedrinhas, há casos como o de um sujeito com muito poder em determinada facção dividindo a cela com um ladrão de pneu.
ConJur — Mas isso não ocorre também no Rio, por exemplo?
Maíra Fernandes — Não tanto. Aqui, as divisões por nível de segurança são bem mais atentas. Nós temos unidades que têm divisão por crime praticado e por facção, com mapeamento de cada facção e com medidas para diminuir o poder dessas organizações. Caso seja identificado um sujeito que está começando a desenvolver um poder naquela unidade prisional, ele é transferido. O Rio tem seus problemas, mas a segurança é feita por agentes penitenciários concursados e treinados. Existe um grupo de inteligência tática. No Maranhão a segurança é feita pela Polícia Militar. Quando estourou a rebelião, o que a governadora fez? Chamou a Força Nacional de Segurança. Mas, com todo respeito, eles também não estão preparados para lidar com essa situação.
ConJur — Há uma receita para evitar rebeliões como a do Maranhão?
Maíra Fernandes — Pode ser um bom momento para analisarmos o sistema penitenciário como um todo. O fato é que estamos superlotados em praticamente todas as unidades do país. Algumas medidas podem ser adotadas para melhorar a situação em determinados estados, mas a verdade é que são todos verdadeiros barris de pólvora prontos para explodir. Deixar um preso que sabe que já devia estar no livramento condicional e nada fazer é incentivá-lo a, mais cedo ou mais tarde, se rebelar. Um ponto inicial para evitar novas rebeliões seria observar os direitos previstos na Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984).
ConJur — Criminalistas críticos à proposta de reforma da LEP dizem que mais importante é fazer cumprir seus artigos, como o que determina a construção de colônias agrícolas e industriais para o regime semiaberto.
Maíra Fernandes — A LEP é produto de um profundo debate, no sentido de que a prisão deve ser exceção e não regra. Em todas suas previsões, há um incentivo enorme às penas alternativas. Mas a verdade é que em inúmeros aspectos ela não saiu do papel. Pela LEP, que está completando 30 anos, os presos em regime semiaberto deveriam cumprir pena em unidades agrícolas e industriais. Mas quase não as temos no país. No Rio temos só uma unidade agrícola, em Magé. Hoje, o que temos na prática é um regime semifechado. Em algumas unidades, o preso pode ficar solto intramuros, no pátio, na quadra de futebol e apenas dormir na cela, mas a maioria não tem nem isso. Em algumas unidades no país, a diferença entre o regime semiaberto e o regime fechado é um corredor. Quem está no fechado fica só dentro da cela, quem está no semiaberto pode circular pelo corredor.
ConJur — Quanto à progressão de regime, por que certas decisões judiciais diferem tanto do texto da LEP? Há juízes que só a concedem se o egresso tiver oferta de emprego.
Maíra Fernandes — Isso acontece porque a lei é muito vaga ao tratar do semiaberto, não há uma norma específica sobre o trabalho extramuros. Por isso, invariavelmente, em casos de penas altas o juiz não autoriza. Ou seja, o trabalho extramuros no semiaberto, com a LEP atual, depende totalmente da discricionariedade do juiz. Virou loteria. O advogado nunca sabe se o preso em semiaberto terá direito ao trabalho extramuros. A maior parte dos que estão no semiaberto, no Rio, ficam soltos dentro da unidade, mas não têm autorização para trabalhar. Isso é desvirtuar completamente a ideia da lei, pois também não há trabalho para todos dentro das unidades. Já era para o preso estar trabalhando para, quando chegar a hora de sair, ele ter uma oportunidade concreta de emprego.
ConJur — Outra lei que não tem sido adotada é a de Medidas Cautelares. Apesar de estar em vigor há três anos, 40% da população carcerária nacional ainda é formada por presos sem decisão condenatória.
Maíra Fernandes — Cumprindo pena ao lado de presos já condenados. Esse número é vergonhoso porque se trata de presos que podem ser absolvidos ao final do processo. Imagine deixar presa uma pessoa que sabe que não cometeu aquele crime e que está presa injustamente. Isso precisa ser resolvido para ontem. Com a Lei de Medidas Cautelares, de 2011, já era para ter baixado essa taxa de presos provisórios.
ConJur — Na sua avaliação, por que os juízes relutam em aplicar a lei?
Maíra Fernandes — Na maioria das vezes, os juízes não acreditam nessas penas alternativas. Acham que a fiscalização delas é difícil e não querem se responsabilizar. E acabam adotando a lógica de, na dúvida, prenda-se. Mas hoje há inúmeras medidas que podem ser adotadas, inclusive o monitoramento eletrônico, que tem demonstrado índice altíssimo de êxito. É incompreensível que um juiz prefira prender uma pessoa sobre quem ainda não há uma sentença condenatória do que colocá-la sob monitoramento eletrônico, aguardando o julgamento. A Lei de Medidas Cautelares é muito clara no sentido de incentivar a adoção delas aos presos cuja pena não exceda quatro anos. Existem diversas pesquisas apontando o sucesso na adoção dessas medidas e das penas alternativas também. No entanto, você vai a uma unidade prisional e encontra uma quantidade enorme de presos por furto. Dos 548.003 presos do país, 54.803, ou 10%, estão presos por crimes cujas penas não excedem quatro anos de reclusão. E cumprem suas penas, muitas vezes, misturados a presos perigosos ligados a facções. Das duas, uma: ou sairão piores por ter participado dessa universidade do crime, ou serão usados como fantoche pelos que têm muito mais poder. Se os juízes têm receios sobre a forma de fiscalização, ora, fiscalizem as centrais de acompanhamento das medidas alternativas de suas comarcas. E o monitoramento eletrônico deveria ser amplamente utilizado nos casos em que houvesse receio. Porque nos casos mais simples, a regra é responder em liberdade. A prisão, para quem não tem sentença condenatória, é só para casos realmente excepcionais, não pode ser a regra.
ConJur — Os últimos mutirões carcerários do CNJ, em estados do Nordeste, identificaram uma média de 16% de presos que já deveriam estar fora da prisão.
Maíra Fernandes — Na maior parte dos casos, as pessoas ficam presas além do tempo que deveriam, seja porque já tinham direito a uma progressão de regime ou ao livramento condicional. Essa realidade tem a ver com a mentalidade, ainda predominante, de que a prisão é a solução para todos os problemas de segurança pública. Mas a lógica do encarceramento, que fez dobrar a população carcerária entre 2002 e 2012, já mostrou que não está dando certo.
ConJur — Do total de presos, quantos cometeram crimes considerados mais graves?
Maíra Fernandes — A população carcerária em todo o país, pelos dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional) de dezembro de 2012, é de 548 mil, mas hoje já deve estar em torno de 600 mil. Desse total, 267.975 são pessoas que praticaram crimes contra o patrimônio, especialmente roubo simples e qualificado, que somam 148.067 presos. Apenas por furto simples e qualificado estão presas 77.873 pessoas. Número superior ao dos que cumprem pena por terem cometido crimes contra a pessoa, como homicídio, homicídio qualificado, sequestro e cárcere privado, que somam 64.736 presos. Há 12.954 presos por estupro, outro crime grave. Mas o segundo crime que mais encarcera é o tráfico de drogas. São 138.198 pessoas presas pela Lei de Drogas (11.343/2006). Essa lei foi pensada para reduzir a população carcerária porque se pensava que os usuários não seriam mais presos. Mas o que temos visto é que muitos usuários estão sendo presos como traficantes. A lei simplesmente não vem sendo aplicada.
ConJur — Por quê?
Maíra Fernandes — Porque ela não é clara na distinção entre usuário e traficante no tocante à quantidade de droga. Fica a absoluta discricionariedade do policial que faz a abordagem. Dependendo do lugar, da condição social e de uma série de aspectos, ele tacha a pessoa de traficante, quando na verdade é um mero usuário. Além disso, como a Lei de Drogas não permite outra pena que não a prisão, pequenos traficantes estão sendo presos aos montes. Houve também um pico de prisões de mulheres por tráfico.
ConJur — Voltando ao Conselho. Com base em uma interpretação do último decreto presidencial sobre comutação de pena e indulto, desde janeiro a Vara de Execução Penal do Rio não envia mais os processos penais para análise de vocês. Como o Conselho vê a situação?
Maíra Fernandes — Como o decreto afirma que o juiz decidirá sobre a comutação de pena e indulto dentro de cinco dias, em nome da celeridade excluiu-se o Conselho. Ocorre que o Conselho estava em dia com seus pareceres. Para se ter ideia, na véspera do recesso, em dezembro, recebemos 60 processos da VEP. Colocamos em votação e devolvemos todos no dia seguinte. Fechamos 2013 sem nenhum processo pendente de análise. É claro que a princípio esse prazo é curto para decidir sobre a comutação da pena e indulto com a participação do Conselho Penitenciário, porque existe o tempo de chegada, de autuação do processo, de análise do conselheiro e de votação. Porém, nos últimos meses de 2013 nós conseguimos elaborar determinados procedimentos e formulários para dar celeridade, e o processo conseguia sair em uma semana, em dez dias, algumas vezes até menos do que isso. Tanto que, como disse, nós temos condições para analisar e devolver 60 processos de um dia para outro. Aliás, a VEP sequer junta petição em cinco dias, às vezes leva meses para isso.
ConJur — O Conselho vai questionar a medida judicialmente?
Maíra Fernandes — Em todas as esferas. Em dezembro, o Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários enviou um ofício para o ministro da Justiça (José Eduardo Cardozo) alertando para a ilegalidade do decreto presidencial. No documento, o Fórum critica o fato dos conselhos penitenciários não terem sido ouvidos, e que qualquer mudança do papel dos conselhos deve vir por meio de uma alteração na LEP. De acordo com o decreto, o juiz decidirá sobre a comutação de pena e indulto, no prazo de cinco dias, ouvindo o Ministério Público e a defesa. O texto não menciona o Conselho Penitenciário. Ou seja, é uma questão de interpretação. O ofício foi assinado por 25 estados. Só não conseguimos a assinatura de dois porque os respectivos presidentes estavam no período de férias. Aliás, há um problema gravíssimo nessa ordem de serviço, porque ela diz que nem os pedidos anteriores ao decreto de dezembro, no qual a VEP se baseia, serão enviados para o Conselho. Eu não sei como isso estará livre de uma nulidade, até porque todos os decretos anteriores fazem menção ao Conselho.
ConJur — A execução penal deixará de ser fiscalizada no estado do Rio?
Maíra Fernandes — De certa forma, sim. Muitas vezes fazíamos pareceres que opinavam em favor de outros benefícios que não aqueles solicitados. Além disso, fiscalizávamos a execução da pena como um todo. Em dezembro do ano passado, por exemplo, pegamos um caso de um pedido de indulto feito com um ano de atraso. O que mostra que essa demora na concessão da comutação de pena e indulto não pode, de jeito nenhum, ser creditada ao Conselho Penitenciário. Aliás, não raras vezes entrávamos em contato com a própria VEP para avisar que havíamos enviado um processo com tarja de “urgente”, porque o preso já tinha prazo para livramento condicional. Outras vezes o pedido vinha apenas como redução da pena, e nós observávamos que ele tinha direito a indulto, que é o perdão total da pena. Ou quando identificávamos duas cartas de execução de sentença para o mesmo preso, sendo que na primeira ele já tinha prazo para obter redução da pena. Começamos a fazer esse cálculo, e essa é uma doutrina instituída pelo Conselho e que a VEP acatou, passando a conceder comutações parciais. Isso não está escrito no Código de Processo Penal. São aspectos que podem passar despercebidos. Não é algo que um juiz, um promotor, um defensor não pode ou não saiba fazer. Mas já existe um órgão com essa função, garantido pela Lei de Execução Penal. Tirou-se o poder desse órgão fazer tal análise. Estou realmente preocupada com o efeito que isso pode gerar.
Marcelo Pinto é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 9 de fevereiro de 2014
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