terça-feira, 3 de setembro de 2013

Colaboração premiada é arma de combate ao crime

A Lei n° 12.850, de 2 de agosto de 2013, prevê em seu art. 4° que: “O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados”
O instituto da colaboração premiada, ainda que contando com denominação diversa, sempre foi objeto de análise pela doutrina, tratado que é como “delação premiada (ou premial)”, “chamamento do correu”, “confissão delatória” ou, segundo os mais críticos, “extorsão premiada”, etc.
Também é conhecido do Direito positivo, eis que introduzido em nosso ordenamento jurídico por leis anteriores. De sorte que a lei dos crimes hediondos (Lei n° 8.072/90), em seu art. 8°, parágrafo único, prevê a redução da pena para o “participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha”. Essa lei também acrescentou o § 4°, ao art. 159 do Código Penal (extorsão mediante sequestro), estendendo o mesmo benefício ao coautor do crime.
Posteriormente a revogada lei que tratava das organizações criminosas (Lei n° 9.034/95), no art. 6°, tornou a prever a redução da pena, desde que a espontânea colaboração do agente levasse ao esclarecimento de infrações penais e de sua autoria.
Também a lei de lavagem de capitais (Lei n° 9.613/98), ampliou o leque de favores, prevendo, além da redução da pena (ou sua substituição), seu cumprimento em regime semi-aberto ou aberto e a possibilidade do perdão judicial (art. 1°, § 5°). Benefícios idênticos foram cogitados na lei de proteção de vítimas e testemunhas (Lei n° 9.807/99, arts. 13 e 14).
A lei de drogas (Lei n° 11.343/2006), no art. 41, possui previsão de redução da pena àquele que, voluntariamente, contribuir com a investigação e o processo criminal. E, mais recentemente, a Lei n° 12.529/2001, que estruturou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, permite que o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), firme acordo de leniência com o autor do delito à ordem econômica, do qual resultará redução, de 1/3 a 2/3, de sua pena.
Mas, assim como ocorria com a ação controlada e a infiltração de policiais - que também possuíam anterior previsão legal - não havia um regramento mais específico e um roteiro mais detalhado que propiciassem a efetividade das medidas.
A Lei n° 12.850/2013 altera sensivelmente esse panorama, cuidando da forma e do conteúdo da colaboração premiada, prevendo regras claras para sua adoção, prevendo a legitimidade para formulação do pedido, enfim, permitindo, de um lado, maior eficácia na apuração e combate à criminalidade organizada, sem que, de outra parte, se arranhem direitos e garantias asseguradas ao delator.
A colaboração premiada poderia ser definida, já com base na Lei n° 12.850/2013, como a possibilidade que detém o autor do delito em obter o perdão judicial ou a redução da pena (ou sua substituição), desde que, de forma eficaz e voluntária, auxilie na obtenção dos resultados previstos em lei. A partir da lei posta, , portanto, incabível a conceituação do instituto com base, exclusivamente, na delação dos comparsas formulada pelo colaborador, já que o prêmio pode ser obtido ainda que ausente essa imputação, como, por exemplo, se em decorrência dela se salvaguardou a integridade física da vítima (art. 4°, inc. V da lei) (1).
Não se ignoram, outrossim, as inúmeras críticas formuladas a esse instituto, porquanto, para os que pensam assim, vem baseado na traição, deslealdade e mentira, valendo-se, o Estado, ademais, de meios imorais na busca da condenação, a demonstrar sua ineficiência “para com sua função persecutiva penal” (2).
Na lição de Eugenio Raúl Zaffaroni, “a impunidade de agentes encobertos e dos chamados ‘arrependidos’ constitui uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do Estado de Direito: [. . .] o Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço da sua impunidade para ‘fazer justiça’, o que o Direito Penal liberal repugna desde os tempos de Beccaria” (3) .
Apontam-se outras máculas ao instituto. Violaria, assim, o princípio da proporcionalidade, posto que ensejaria a aplicação de sanções diversas àqueles que perpetraram o mesmo crime (4). Invadiria, ainda, a competência jurisdicional do magistrado, posto que a colaboração é oriunda de um acordo celebrado entre Ministério Público e defesa. Mais que isso, atentaria mesmo contra os princípios da ampla defesa e do contraditório (5), posto que subtraído do Judiciário a possibilidade de julgar o feito. Diz-se, ademais, que enfraqueceria o trabalho de investigação policial, que não mais se empenharia na elucidação dos delitos, ante a facilidade advinda da colaboração (6).
Discordamos destes posicionamentos, enumerados – saliente-se - antes do advento da lei em análise. Discordamos em virtude de que muitos se acham superados em face das disposições do estatuto novel. E, outros, importam, sob nossa compreensão, em uma ótica equivocada do instituto, distante, além disso, da realidade atual, a reclamar meios mais eficazes no combate a tão séria espécie de criminalidade.
Destaque-se, de plano, argumento que nos parece fundamental para o correto enfrentamento da questão. Consiste o fato de que a colaboração premiada pressupõe, para sua admissão, a voluntariedade do agente, como se vê do “caput” do art. 4° da Lei n° 12.850/13. Em outras palavras e de forma mais direta: o colaborador, em absoluto, se vê compelido a aceitar seus termos. O juiz, aliás, somente homologará o termo de acordo se nele detectar a voluntariedade do agente (art. 4°, § 7° da lei). Caso pressinta a imoralidade da iniciativa, basta ao colaborador rejeitar a proposta de delação. Essa impressão se reforça ao se constatar que, nos termos do art. 4°, § 6° e do art. 6°, inc. III da lei, é obrigatória a presença do defensor em todo o procedimento para implantação do favor legal. Este, seguramente, também não aceitara a proposta caso nela vislumbre tal sorte de ilegalidades.
Vale ressaltar, ainda, que a crítica toma em conta apenas o fato do colaborador delatar seus comparsas (o que revelaria seu comportamento imoral e aético), não considerando, porém, que a lei não exige, como pressuposto para a concessão da mercê, essa espécie de conduta. Explicamos: se a colaboração somente fosse implantada com a condição do agente delatar os demais agentes, talvez ainda se pudesse admitir esse argumento. Ocorre que essa não é uma condição sine qua non para concessão do benefício que, na dicção do art. 4°, incs. IV e V da lei, pode ser adotado caso ocorra a recuperação total ou parcial do produto do crime ou quando preservada a integridade física da vítima.
É dizer: pode o agente dar as contribuição indicando o local na qual se encontra a vítima sem que, para tanto, tenha que delatar os comparsas. Pode, ainda, indicar aonde os bens oriundos da atividade criminosa estão escondidos e, nem por isso, terá, necessariamente, acusado seus comparsas. Em ambas as hipóteses ele merecerá o benefício, conquanto não tenha feita alusão a um nome sequer dos demais envolvidos na organização criminosa. De sorte que a colaboração premiada, pelos menos nos termos da nova legislação, não possui a marca da traição e indignidade que tanto preocupa seus críticos.
Nem mesmo o prêmio dado àquele que se arrepende pode ser considerado imoral ou inusitado em nosso ordenamento jurídico. O art. 15 do Código Penal prevê, com efeito, a figura da desistência voluntária e arrependimento eficaz, enquanto que o art. 16 do mesmo “codex” trata do arrependimento posterior. No mesmo sentido a atenuante do art. 65, inc. III, “b” do Código Penal. São formas, assim, de prestigiar o agente que, com sua conduta, se revela pesaroso pela atitude que perpetrou.
Também a confissão, prevista como atenuante no art. 65, inc. III, “d” do Código Penal, embora não se investigue o valor moral que a motivou, não deixa de se consistir em estímulo ao réu, como “forma de recompensá-lo por haver, assim, colaborado com a ação da justiça”, segundo Aníbal Bruno (7).
São formas que, conquanto diversas da colaboração, guardam alguma semelhança com o instituto e nas quais se prestigia o agente que se revela pesaroso pela atitude que perpetrou.
Não há, outrossim, qualquer ofensa ao princípio da proporcionalidade pela cominação de sanções diversas a autores do mesmo delito. Ora, quando dois agentes perpetram o mesmo delito, em co-autoria, um contando 25 e outro 19 anos de idade à época do crime, por acaso não receberão penas diversas, já que este último é beneficiado com a circunstância atenuante do art. 65, inc. I do Código Penal ? O que se considera, com efeito, é a condição subjetiva de cada um deles, assim como na lei em exame, razão pela qual aquele que contribui merece uma reprimenda menor (ou nenhuma reprimenda), quando comparado aos demais que nada auxiliaram.
Tampouco aproveita a tese de que a colaboração subtrairia do Poder Judiciário sua vocação natural para conhecer do feito e julgar o réu. Não pelo menos no sistema introduzido pela lei. É que, apesar das tratativas de acordo envolverem acusação e defesa (art. 4°, § 6° abaixo), cabe ao magistrado a última palavra, já que a ele é dado recusar a proposta (art. 4°, § 8° abaixo). Ademais, para que se conceda o perdão ou a redução da pena, é preciso que, antes, tenha transcorrido um processo. Nada impede, nessa linha de raciocínio, que o juiz absolva o colaborador, considerando, por exemplo, a fragilidade da prova. Ou que o condene, aplicando os benefícios advindos da colaboração. Mas , em ambos os casos, será proferida uma sentença, motivo pelo qual não vislumbramos qualquer amesquinhamento na função primordial do Poder Judiciário. Também por isso restam preservados os princípios da ampla defesa e do contraditório, pois há sim um processo a anteceder a sentença (8).
Nem se diga que a lei traria um esmorecimento do trabalho investigativo da polícia, acomodada com a facilidade da colaboração premiada. A um, em virtude de que tal entendimento confere uma amplitude de atuação que o instituto parece não possuir, já que não serão tantos os casos nos quais será aplicado. E, a dois, porque não faltarão outros delitos para que a polícia exerça seu trabalho investigativo. Não será, assim, a colaboração premiada a responsável por eventual insucesso na investigação policial, que – sabemos todos - é preexistente à lei em comento.
Em verdade, a criminalidade organizada, face às suas peculiaridades, reclama uma nova visão sobre os meios de prova a serem utilizados para fazer frente a seu poderio.
Alberto Silva Franco, com propriedade, destaca as características e malefícios dessa espécie de criminalidade: “O crime organizado possui uma textura diversa: tem caráter transnacional na medida em que não respeita as fronteiras de cada país e apresenta características assemelhadas em várias nações; detém um imenso poder com base numa estratégia global e numa estrutura organizativa que lhe permite aproveitar as fraquezas estruturais do sistema penal; provoca danosidade social de alto vulto; tem grande força de expansão, compreendendo uma gama de condutas infracionais sem vítimas ou com vítimas difusas; dispõe de meios instrumentais de moderna tecnologia; apresenta um intrincado esquema de conexões com outros grupos delinquenciais e uma rede subterrânea de ligações com os quadros oficiais da vida social, econômica e política da comunidade; origina atos de extrema violência; exibe um poder de corrupção de difícil visibilidade; urde mil disfarces e simulações e, em resumo, é capaz de inerciar ou fragilizar os poderes do próprio Estado” (9).
Porém, não apenas os meios de prova, porque carecem de atualização, justificam a colaboração premiada. Ela se revela, demais disso, como poderoso instrumento de combate à criminalidade, sobretudo quando, com sua concretização, se possa evitar que outros delitos se repitam e que cesse o curso daqueles que estão em marcha. Esperamos que cumpra seu objetivo.
Notas:
(1) Lembre-se o item 2, do art. 26 da Convenção de Palermo, Introduzida em nosso ordenamento jurídico pelo Decreto n° 5.015/2004), prevê que “cada Estado Parte poderá considerar a possibilidade, nos casos pertinentes, de reduzir a pena de que é passível um argüido que coopere de forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma infração prevista na presente Convenção”.
(2) V., nesse sentido, com ampla e respeitável argumentação, Luiz Rascovski in A (in)eficiencia da deleção premiada. Estudos de processo penal. São Paulo: Scortecci, 2011, p. 142.
(3) Crime organizado: uma categoria frustrada. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro: Revan, ano 1, v. 1, 1996, p. 45.
(4) Nesse sentido, Luiz Rascovski, ob. cit., p. 143.
(5) Aproximando-se dessa linha de argumentação, confira-se: Antonio Magalhães GomeAs Filho e Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró. Prova e Sucedâneos de prova no processo penal Brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Março – abril de 2007, nº 65, p. 188, RT.
(6) Nesse sentido, Walter Fanganiello Maierovitch. Apontamentos sobre a política criminal e a plea bargaining. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 28, n° 112, out-dez 1991, p. 206.
(7) Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1984, vol. III, p. 143.
(8) Quando do advento da Lei n° 9.099/95, que inovou com a possibilidade da transação penal, foi invocado o entendimento que teriamos uma pena “sem processo”, em violação ao princípio constitucional do devido processo legal. Passados quase 14 anos de vigência da lei, cujos resultados são clarísimos, ninguém mais ousa argumentar nesse sentido.
(9) O Crime Organizado e a Legislação Brasileira. São Paulo: RT, 1995, p. 75. Ressalte-se, contudo, que referido autor não é simpático ao instituto da delação premiada.
Ronaldo Batista Pinto é promotor de Justiça no estado de São Paulo, mestre em direito pela Unesp e professor universitário.

Revista Consultor Jurídico, 2 de setembro de 2013

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