A American Bar Association (ABA) divulgou, nesta semana, um documento preliminar com propostas para reformar o ensino de Direito nos EUA. O grupo de trabalho, criado no ano passado pela ABA especificamente para esse fim, apresentou cinco medidas para o debate da comunidade jurídica, até novembro. Entre elas há uma que certamente provocará controvérsias, diz o grupo: criar no país a profissão de "técnico jurídico".
O documento defende a reforma urgente do ensino porque o "sistema sofre pressões consideráveis, no momento". Entre elas, os altos custos dos cursos de Direito, que endividam seriamente os estudantes, a queda, por anos consecutivos, na quantidade de matrículas nas faculdades de Direito, porque a carreira não é mais segura, e as "mudanças dramáticas, possivelmente estruturais" no mercado de trabalho, que não tem mais empregos para abrigar a maioria dos bacharéis.
"Esses problemas resultaram em estresse econômico real para as faculdades de Direito, danos à carreira e às perspectivas econômicas dos formandos e, o que é grave, uma diminuição significativa na confiança do público no sistema de educação jurídica", afirma o grupo de trabalho, formado por ministros de supremas cortes estaduais, reitores de faculdades de Direito e advogados dirigentes da ABA.
"Essa situação desagradável, em que muitos estudantes e formandos nunca conseguem o tipo de emprego que esperavam quando se matricularam em uma faculdade de Direito e contraem uma dívida considerável [de US$ 100 mil a US$ 150 mil, na maioria dos casos] é especialmente irrefutável", diz o documento, que terá sua versão final em 20 de novembro.
Eis a cinco medidas propostas pelo grupo de trabalho:
Custo do curso
As faculdades de Direito e a ABA devem se concentrar na busca de maneiras de simplificar sua estrutura de custos e, sobretudo, seu sistema de cobrança de mensalidades dos estudantes. Um problema que complica a questão dos altos custos do ensino jurídico é a preocupação das escolas com os rankings das faculdades de Direito. Para ficarem bem posicionadas no ranking, as faculdades concedem bolsas de estudos gratuitas a estudantes com um alto desempenho escolar e no teste de admissão, mesmo aos que não precisam, a fim de ostentar um número maior do que as outras de alunos bem-sucedidos. O déficit criado com essa prática é repassado aos custos dos demais estudantes, que subsidiam o grupo de estudantes mais qualificados.
Sistema de credenciamento
Os padrões para credenciamento estabelecidos pela ABA criam uma homogeneidade entre as escolas, que não reverte na formação de melhores advogados. Elas são todas iguais, mesmo no que não funciona. Isso só resulta em maiores custos estruturais, sem benefícios proporcionais. Os padrões produziriam melhores resultados se permitissem a heterogeneidade entre as faculdades, encorajando maior atenção a serviços, rendimentos e valor proporcionado aos estudantes de Direito. O grupo "recomenda que uma quantidade de padrões da ABA seja eliminada ou dramaticamente liberalizada".
Inovação
Uma das vantagens de eliminar os padrões de credenciamento seria possibilitar a experimentação nas faculdades de Direito, especialmente nos programas de ensino jurídico. Atualmente, a ABA abre algumas exceções para experimentos, mas elas são estreitas e confidenciais. Há uma cultura nas escolas e no meio jurídico de que mudanças só podem ser processadas de forma lenta e gradual, durante um grande período de tempo. "Essa cultura precisa mudar, porque os desafios de hoje requerem uma cultura de inovação, não de tradição". O grupo recomenda transparência nesse sistema de variação, para que todos saibam o que deu certo e o que não deu.
Qualificação e competência
O grupo recomenda que as faculdades abandonem, tanto quanto possível, a instrução teórica, em favor do ensino prático. O grupo acredita que as faculdades devem se preocupar mais com a qualificação profissional e com a competência dos bacharéis para atuar como advogados. As faculdades devem oferecer mais treinamentos práticos, aprendizado experimental e desenvolvimento da competência profissional dos estudantes, conforme algumas poucas escolas já vêm fazendo com bons resultados. O ensino teórico vem como um complemento ao treinamento prático para atender bem os clientes.
Técnico jurídico
O grupo propõe a criação da profissão de "técnico jurídico com licença limitada". Eles poderão exercer tarefas específicas, sem a supervisão de um advogado — o que diferencia o técnico do "paralegal", que opera como assistente de um advogado e é sempre supervisionado por um advogado.
Os candidatos a essa profissão devem fazer um curso de qualificação, mas não precisam ter diploma universitário (nos EUA, J.D. – ou Juris Doctor), o que os coloca bem próximos dos antigos "rábulas" do Brasil. Os "rábulas" podiam exercer, em primeira instância, a postulação em juízo. Essa não é uma função prevista para o "técnico jurídico". Mas o grupo de trabalho deixa dúvidas sobre isso, quando argumenta que os técnicos podem atuar em áreas geográficas onde não há advogados.
As próprias faculdades podem, se quiserem, oferecer esses cursos, diz o grupo de trabalho. Seria um curso preparatório para exercer as funções previstas para o técnico, não as funções exclusivas dos advogados. Isso colocaria a diferença entre um advogado e um técnico jurídico bem próxima à diferença entre um contador e um técnico de contabilidade: um tem curso universitário, o outro não.
Basicamente, técnicos jurídicos iriam suprir serviços que, normalmente, não são prestados por advogados em dois casos: atuar em áreas geográficas não atendidas por advogados; e ajudar pessoas de baixo poder aquisitivo — e mesmo de classe média — que vão aos tribunais sem qualquer assistência profissional.
"Em algumas áreas rurais, por exemplo, há poucos advogados ou nenhum. Os advogados não têm vontade de morar e trabalhar em cidades pequenas ou em áreas rurais. Além disso, não há retorno financeiro para seus investimentos. Eles teriam de ser subsidiados pelo governo, mas isso não acontece", diz o documento da ABA.
"As populações pobres continuam mal servidas por causa dos altos custos da contratação de advogados. Os serviços jurídicos que deveriam suprir essa lacuna são altamente deficitários. A falta de acesso a assistência jurídica já está atingindo a população da classe média também", afirma o grupo de trabalho.
Segundo o documento da ABA, sempre haverá demanda para o serviços profissionais de advogados, porém há uma necessidade, que será ainda maior no futuro, por: pessoas que se qualificam para prestar "serviços relacionados à advocacia", sem a supervisão de advogados; sistema de licenciamento de indivíduos competentes para fornecer tais serviços; e programas educacionais para treinar esses indivíduos para prestar esses serviços limitados.
A proposta do grupo de trabalho se inspira, de uma maneira geral, em um experimento que o estado de Washington já vem realizando, recentemente, nessa área. Lá, o "Conselho de técnicos jurídicos com licença limitada" descreveu os tipos de funções que podem ser exercidas por esse novo profissional da área jurídica:
1. Obter fatos relevantes e explicar porque eles são relevantes ao cliente;
2. Informar o cliente sobre procedimentos aplicáveis, incluindo prazos, documentos que precisam ser protocolados e o curso normal dos procedimentos;
3. Explicar ao cliente os procedimentos para o serviço e o protocolo de petições;
4. Fornecer ao cliente material para se autorrepresentar, preparado por um advogado do estado ou aprovado pelo Conselho, que contenha informações sobre as exigências jurídicas relevantes, base jurídica para a queixa do cliente e exigências de fórum e jurisdição:
5. Examinar provas e outros documentos que o cliente recebe da outra parte e explicá-los ao cliente [processo de discovery];
6. Preencher formulários aprovados para o cliente e explicar o significado dos formulários ao cliente. Formulário aprovado significa qualquer formulário aprovado pelo estado de Washington, por meio de órgão governamental, do escritório de administração dos tribunais ou cujo conteúdo é especificado em lei, formulários federais, formulários preparados por um advogado licenciado pelo estado de Washington ou formulários aprovados pelo Conselho;
7. Realizar pesquisas jurídicas e escrever cartas e outros documentos, além do que é permitido de qualquer outra forma, se o trabalho for revisto e aprovado por um advogado de Washington;
8. Aconselhar o cliente sobre alegações, provas, declarações e outros documentos que podem ser necessários em seu caso e explicar como os documentos podem afetá-lo; e
9. Assistir o cliente na obtenção de documentos necessários para formar seu caso, tais como certidões de nascimento, de casamento ou de óbito.
Segundo o grupo de trabalho, a profissão de advogado nos EUA está passando por uma mudança em demanda, da representação personalizada de clientes para a transformação dos serviços jurídicos em commodities. Um exemplo disso é o sucesso do site Legal Zoom, que vende formulários para praticamente tudo na área jurídica.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 23 de setembro de 2013
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