terça-feira, 6 de julho de 2010

Artigo: Internação involuntária por ordem judicial: o uso e o abuso

Simão Bacamarte, o Alienista da obra-prima machadiana, sob o influxo do desvario positivista do final do século XIX, acreditava que a loucura era uma “ilha perdida no oceano da razão”, mas descobriu ser ela “um continente”, o que decerto explica o fato de quatro quintos da população da pequena Itaguaí ter sido internada no hospício para dementes por ele fundado, a famosa Casa Verde.
Desde então, a ciência médica evoluiu, a ponto de a moderna psiquiatria ter abandonado o modelo hospitalocêntrico em favor da desinstitucionalização e da transitoriedade do tratamento sempre que possível, o qual deve ser caracterizado pelo enfoque multidisciplinar e pela participação efetiva do paciente. A relação saúde/doença mudou, a ponto de hoje a Organização Mundial de Saúde (OMS) definir saúde como bem estar biopsicossocial, e não simplesmente como ausência de doença. Além dos sinais clínicos, as condições oferecidas pela sociedade são fundamentais no trato da questão da saúde mental. Tanto assim que, no dia 7 de abril de 2001, a OMS comemorou o Dia Mundial da Saúde dedicado à saúde mental com o tema “cuidar sim, excluir não”.
O legislador brasileiro se mostrou sensível aos novos rumos da saúde mental, editando, sob a influência do movimento antimanicomial, a Lei 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Referido diploma assegura à pessoa portadora de transtorno mental, entre outros: o direito de acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo com as suas necessidades; o direito de ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; o direito de ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; o direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; o direito de receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; e o direito de ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis.
Fenômeno parecido com o bacamartismo machadiano tem se verificado no caso de pessoas envolvidas com crack e outras substâncias capazes de causar dependência, notadamente os indivíduos menores de dezoito anos, objeto de internações compulsórias em hospitais psiquiátricos decretadas a granel.
Deixando de lado a demonização das chamadas drogas ilegais, especialmente do crack, substância proibida que hoje desempenha o papel de origem e causa de todos os males que afligem a lavoura nacional, o que certamente não contribui para a definição de uma abordagem adequada do tema, tanto em relação à prevenção quanto ao tratamento, e impede a compreensão de que o problema não está na substância, mas na relação que os indivíduos com ela mantêm, é certo que o abuso na decretação de internações involuntárias tem causado inúmeras perplexidades, dentre as quais merece destaque a equivocada ideia de que, tendo sido a medida decretada por meio de decisão judicial, somente o juiz poderia determinar a desinternação.
Como sabido, a internação involuntária, por seus aspectos negativos para o indivíduo – como, por exemplo, a ruptura dos laços familiares, afetivos, sociais e profissionais – deve ser utilizada apenas quando as possibilidades de tratamento extra-hospitalar se mostrarem inadequadas, sendo vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares desprovidas dos recursos necessários ao oferecimento de assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais. Nada obstante a internação involuntária possuir natureza de ultima ratio, o que se tem visto na prática judiciária, notadamente nos grandes centros urbanos, é justamente o oposto, vale dizer, a medida é aplicada como primeira opção.
Não é ocioso lembrar que qualquer medida interventiva estatal, entre as quais se destaca a internação involuntária, deve ser utilizada, antes e acima de tudo, a serviço do indivíduo, não bastando a mera alegação de necessidade e utilidade para a defesa social. A medida deve ser eticamente admitida como meio dirigido à recuperação da plena dignidade humana. O que fundamenta sua aplicação não é somente a tranquilidade da maioria, mas o dever estatal de remover os obstáculos que impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana. A internação, por ser mais gravosa, deve ser reservada às hipóteses concretamente mais graves e, ainda assim, deve durar somente o tempo necessário.
Uma das características marcantes de uma instituição total – como, por exemplo, um hospital psiquiátrico ou mesmo uma prisão – é a primazia de um certo papel social decorrente do estigma (de doente mental, no caso do hospício, e de delinquente, no caso da prisão) que se sobrepõe às demais identidades e máscaras sociais, de modo que a autoimagem e interação social tendem a se polarizar em torno desse papel (role engulfment), o que por sua vez tem o efeito de uma profecia que a si mesmo se cumpre e que põe em movimento um conjunto de mecanismos que compelem a pessoa a transformar-se e a corresponder à imagem que o público tem dela, conforme observa Howard Becker.(1) A vida em uma instituição total, verdadeira “estufa humana”, é uma espécie de exílio, de morte civil e desencadeia sobre o indivíduo um intenso e nefasto processo de manipulação da identidade e do status. A institucionalização opera um modelo de expropriação, que reduz a existência humana a um mínimo necessário: o internado é submetido a um processo de desculturação em relação ao mundo externo, ao mesmo tempo em que lhe são impostas uma série de rebaixamentos, humilhações, degradações e profanações que levam ao sentimento de mortificação. Para Erving Goffman, “o estudioso de hospitais psiquiátricos pode descobrir que a loucura ou o ‘comportamento doentio’ atribuídos ao doente mental são, em grande parte, resultantes da distância social entre quem lhes atribuiu isso e a situação em que o paciente está colocado, e não são, fundamentalmente, um produto de doença mental”.(2) O mesmo autor observa que as transgressões desencadeadoras da hospitalização variam de acordo com status socioeconômico, visibilidade da transgressão, proximidade de um hospital, recursos financeiros disponíveis, desejo da família etc., e questiona a legitimidade do modelo médico de hospitalização psiquiátrica, na medida em que se exige do paciente uma “servidão moral autoalienadora” que o afasta da cura, concluindo que a distinção entre saúde mental e doença mental é menos científica e mais sociológica, pois os “mentalmente doentes” fora dos hospitais se aproximam numericamente dos internados ou até os superam, de modo que os doentes mentais internados sofrem não de doença mental, mas de “outras circunstâncias”.
Por fim, calha trazer à lembrança o isolamento curativo em casas de sobriedade por tempo absolutamente indeterminado dos ébrios e toxicômanos habituais previsto na Ley de Vagos e Maleantes, de triste memória, que se propunha a resolver o problema da periculosidade sem delito radicalizando a prevenção e a defesa social por meio de medidas de segurança indeterminadas e que se tornou instrumento de opressão da ditadura franquista na Espanha dos anos 1930.
Urge aprofundar a reflexão sobre o assunto, incrementando-se os mecanismos de controle e fiscalização sobre os casos de internação involuntária como forma de combater a sua banalização e evitar abusos.


Notas
(1) BECKER, Howard. Outsiders. Studies in the Socioloy of Deviance. Nova Iorque. 1963. Free Press.
(2) GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo. 1996. Perspectiva.

Internação involuntária por ordem judicial: o uso e o abuso. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 01-02, jul., 2010. 

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